segunda-feira, 7 de novembro de 2022

Manifesto Internacionalista contra a guerra e a paz capitalista na Ucrânia - TŘÍDNÍ VÁLKA (2022)

 

O presente manifesto foi traduzido a partir do produzido em inglês pelo grupo TŘÍDNÍ VÁLKA. Já havíamos realizado um compilado de traduções a respeito desse tópico e consideramos essencial continuar essa tarefa.

 

***

Josef Čapek - Oheň 
(Josef Čapek, 1938)


SUAS GUERRAS! NOSSOS MORTOS!” foi sob essa bandeira que proletários radicais se distanciaram dos desfiles pacifistas organizadas nas ruas da Espanha, em março de 2004, após os massacres em Madrid que deixaram mais de 200 mortos. Eles avançaram esse lema derrotista em resposta à participação militar da Espanha no Iraque e à “Guerra ao Terror” imposta pelo Estado capitalista mundial e seu ramo espanhol, ecoando dessa forma as muitas manifestações históricas de derrotismo revolucionário que entremeiam o desenvolvimento de sociedades de classe e, portanto, da luta de classes, da guerra de classes.

Como proletários socialistas revolucionários, comunistas, anarquistas..., não temos absolutamente nenhum interesse material em tomar partido, de qualquer maneira que seja, com o Estado capitalista e sua democracia, qualquer que seja sua aparência, com nossos inimigos de classe, com nossos exploradores, com aqueles que sempre nos retribuíram severamente com “tiros, metralhadoras e prisão” quando lutamos e tomamos as ruas para reivindicar nossa humanidade. E é assim independente da natureza e da orientação política do regime de turno na pátria A ou na pátria B, que estão em um conflito interestatal por seus próprios interesses de conquista e poder. Nós nunca expressaremos qualquer solidariedade com qualquer um de nossos exploradores!

SEUS INTERESSES! NOSSOS MORTOS! Não tomamos posição por nenhum dos Estados em conflito, seja ele categorizado, de acordo com a moralidade política burguesa dominante, como “o agressor” e o outro como “o agredido” ou vice-versa. Seus respectivos interesses em jogo são exclusivamente seus e em total oposição aos da classe explorada, ou seja, nós proletários; é por isso que, por fora e contra todo nacionalismo, todo patriotismo, todo regionalismo, todo localismo e todo particularismo, afirmamos em alto e bom som nosso internacionalismo!

O proletariado, como uma classe revolucionária, não mostra nenhuma neutralidade em relação a qualquer um de seus exploradores que se confrontam na redistribuição de suas participações no mercado, mas ao contrário, ele rejeita-as igualmente como dois lados da mesma realidade, o mundo de exploração de uma classe por outra, e expressa sua profunda solidariedade com todos os setores de nossa classe que estão passando pelas agressões multiplicadas de um ou outro de seus inimigos históricos. Mas sejamos claros, nós nunca negaremos aos proletários a necessidade imperativa de se defenderem contra qualquer agressão, repressão, tortura, massacre...

E aqui, na circunstância atual, os proletários na Ucrânia não mais possuem a sua frente apenas seu inimigo costumeiro e diário, isto é o Estado ucraniano “agredido” e sua burguesia local (chamada de “oligarca” para melhor esconder sua verdadeira natureza de classe, como se fossem diferentes de todos os outros capitalistas em outros lugares do mundo), não têm apenas de passar pelos ataques de sua própria burguesia (com cortes salariais, demissões, economia de guerra, repressão dos subsequentes movimentos grevistas), mas desde 24 de fevereiro desse ano também têm de confrontar a ofensiva militar do Estado “agressor” dos capitalistas russos com seu exército, seus bombardeamentos, seus mísseis, seus massacres diários...

SUAS NAÇÕES! NOSSOS MORTOS! E para todos os belicistas da esquerda e da extrema-esquerda do Capital, que acusarão mais uma vez os revolucionários de serem “neutros” e de não “tomarem posição”, respondemos que é bem o contrário que propomos nesse manifesto e em nossa atividade militante no geral: defendemos firmemente o partido do proletariado e a defesa de seus interesses históricos e imediatos, defendemos sua ação de subversão desse mundo de guerra e miséria, defendemos o desenvolvimento, a generalização, a coordenação e a centralização dos atos de fraternização, deserção, motim já existentes em ambos os lados do fronte, contra ambos os beligerantes, contra ambos os Estados, contra ambas as nações, contra ambas as frações locais da burguesia mundial... Defendemos a extensão dessas lutas e sua conexão orgânica, como momentos de uma totalidade com todas as lutas que têm acontecido há meses e em todos os lugares sob o Sol negro da ditadura social do Capital, seja no Sri Lanka, Peru, Irã, Equador ou Líbia.

Advogamos pelo desenvolvimento do terceiro campo, o único campo que defende os interesses globais do proletariado em sua luta imediata e histórica contra a exploração, o trabalho assalariado, a miséria e a guerra. Esse terceiro campo é o do proletariado internacionalista revolucionário, o qual se opõe a todos os campos burgueses em guerra, é o campo de nossos irmãos e irmãs de classe que lutam por seus próprios interesses, que são antagônicos aos interesses de todos aqueles que defendem a propriedade privada, o dinheiro e a ordem social que esses portam...

SUA PAZ! NOSSA EXPLORAÇÃO! Se rejeitamos categoricamente todas as guerras burguesas, nas quais o proletariado serve apenas como carne de canhão, não importando a qual campo é incorporado, rejeitamos a “paz” da mesma forma e com a mesma força, a “paz” não é nada mais do que o momento invertido, mas complementar, da “guerra”. A paz é somente um momento de reconstrução entre duas guerras, porque a guerra é necessária ao Capital de modo a temporariamente resolver a crise inerente ao seu modo de produção. Mas a guerra é também o momento supremo de paz social, e a última é somente a materialização da guerra permanente travada contra nossa classe através da exploração de nossa força de trabalho, a mercantilização de nossas vidas e a alienação de nossas existências.

Voltando à Ucrânia, gostaríamos de salientar aqui que se nos opomos fortemente ao apoio a qualquer lado na presente guerra, que não é nada além de uma guerra entre Estados, se recusamos tomar lados com uma ou outra burguesia beligerante, tanto a ucraniana que é “invadida” e “agredida” como a russa que é “invasora” e “agressora”, nosso julgamento é diferente e mesmo antagônico quando analisamos os eventos que transcorreram algumas semanas antes do estalar da guerra na Ucrânia. Estamos nos referindo à repressão militar no Cazaquistão e a “ocupação” desse país por tropas de elite do exército russo: uma “ocupação” não é necessariamente igual a outra!

NOSSAS REVOLTAS! NOSSOS MORTOS! Obviamente, ninguém, ou apenas alguns, ficou chocado com a repressão do levante de trabalhadores no Cazaquistão em janeiro e por uma boa razão. Nem mesmo no Ocidente, onde por fim os capitalistas entenderam rapidamente que a burguesia russa, ao “invadir” o Cazaquistão que havia se tornado incontrolável socialmente, ao esmagar o proletariado em revolta, ao restaurar através do terror a ordem dos grandes negócios, a ordem dos negócios internacionais, estava na verdade agindo objetivamente em serviço dos interesses de todos os capitalistas, e portanto também das multinacionais que têm suas sedes no Ocidente. Eis aqui a absoluta diferença em natureza entre a “ocupação” do Cazaquistão para reprimir um movimento social que ameaçava parcialmente a atual ordem das coisas, por um lado, e a “ocupação” de uma parte da Ucrânia em um conflito que responde aos interesses geoestratégicos entre diferentes frações do mesmo Capital mundial, por outro.

Todo mundo entenderá facilmente que a abordagem proletária a esses dois tipos de ocupação, e como se posicionar, será totalmente diferente. No caso, como na Ucrânia, onde existem dois atores burgueses que se confrontam, se posicionar e se empenhar contra um deles, contra o “agressor” (nesse caso, o Estado russo), mas não contra o outro, o “agredido” (o Estado ucraniano), acaba de maneira objetiva, e especialmente em um sentido eminentemente prático, quer se goste ou não, apesar de sua vontade, apesar do que se afirma, em se empenhar com e apoiar o último, e ainda mais na ausência de qualquer dinâmica de autonomização em relação às estruturas militares e de abastecimento que concebe esse comprometimento. Porque não nos enganemos, não existia antes do eclodir da guerra, e não existe no momento, qualquer movimento revolucionário forte na Ucrânia, suficientemente antagônico para que pudesse afirmar o poder social de nossa classe e defender seus interesses imediatos e históricos.

Por outro lado, no caso de um levante proletário em uma dada região que a burguesia é obrigada a reprimir através da contribuição de uma força interventora “externa” (por conta do derrotismo que enfraquece as forças de repressão locais), a “ocupação” resultante tem um caráter completamente diferente. Nosso inimigo é nossa própria burguesia, claro, mas é acima de tudo a burguesia que temos diretamente em frente de nós, a que está nos reprimindo, bombardeando, massacrando, a que está tomando o lugar da fração burguesa que inicialmente nos explorava, que está a substituindo. Obviamente, entendemos que contra uma “agressão”, contra uma “ocupação”, contra massacres e repressão, os proletários querem resistir, pegar armas, defenderem-se... Mas enquanto no Cazaquistão essa resistência armada teria como objetivo a defesa do levante social, a defesa de um embrião de dinâmicas revolucionárias, na Ucrânia a resistência dos proletários, mais uma vez se for limitada somente a um dos protagonistas da confrontação bélica, arrisca rapidamente aniquilar-se nas mãos do Estado ucraniano, de seus aliados e de seus interesses burgueses. Pelo menos é isso que a história das lutas de nossa classe sempre nos mostrou, até que se prove ao contrário... e o exemplo histórico da Espanha de 1936-37 é revelador nesse aspecto, já que a revolução foi sacrificada lá em nome do “mal menor” a ser defendido, a república burguesa, a frente popular antifascista, confrontado com o que era representado como o “mal absoluto”: o fascismo.

Na Espanha ontem, como em Rojava e na Ucrânia hoje, “o povo em armas” não é, e está longe de ser, o proletariado armado; armado com as armas da crítica para permitir o desenvolvimento da crítica real pelas armas...

Portanto, podemos apenas saudar os proletários que recusam se posicionar em um ou outro dos campos burgueses presentes e que, ao contrário, afirmam seu internacionalismo e se organizam para confrontar os dois irmãos inimigos. Como nos anos 80 do último século, quando desertores “iraquianos” se organizaram com desertores “iranianos”, durante a terrível carnificina que durou oito longos anos, e quando eles juntaram forças para lutar juntos contra ambos os exércitos burgueses.

Saudações, então, às proletárias na Ucrânia, tanto na região ocidental de Transcarpathia (portanto, sob administração militar ucraniana) e no Donbass, nas “províncias orientais” (portanto, sob administração militar russa), que foram às ruas para expressar seu desprezo pela “defesa da pátria” e para exigir o retorno de seus filhos, irmãos e parentes enviados aos frontes para defender interesses que não são seus.

Saudações aos proletários na Ucrânia que estão secretamente abrigando soldados russos que desertaram, por risco próprio já que quando são presos, seja pelas autoridades militares russas ou pelas ucranianas, são forçados a entender onde a força legal está nesse mundo nojento, qual lado e qual pátria eles têm de defender e que nenhuma fraternidade será tolerada.

Saudações aos proletários na Ucrânia que, apesar do alistamento obrigatório, escapam de sua incorporação em unidades militares através de todos os meios disponíveis, legais ou não, e dessa forma recusam se sacrificar e servir sob as dobras do trapo nacional ucraniano.

Saudações aos soldados russos que, desde o começo das “operações especiais” na Ucrânia, têm fugido da guerra e seus massacres, abandonando tanques e veículos armados funcionando e buscando sua salvação em voos, através de redes de solidariedade com desertores de ambos os exércitos.

Saudações também (embora a informação a esse rspeito seja menos precisa, a guerra das notícias e da propaganda militar obriga!) aos 600 soldados da marinha russa que recusaram no começo do conflito a desembarcar, sabotando então um desembarque na área de Odessa.

Saudações também (com as mesmas ressalvas) aos soldados russos que fizeram motim e se recusaram a atacar Kharkov, também no início do conflito.

Saudações aos soldados do exército da “República Popular de Donetsk”, forçadamente incorporados e enviados ao fronte de Mariupol, que recusaram continuar a lutar, a servir como “carne de canhão” (de acordo com eles mesmos!), enquanto dessa vez eles eram enviados para defender a vizinha “República Popular de Lugansk”.

Saudações aos rebeldes e sabotadores que, na Federação Russa, já queimaram dezenas de escritórios de recrutamento militar e outros escritórios dos porcos por todo o país.

Saudações aos ferroviários na Bielorrússia, que têm repetidamente sabotado os trilhos, essenciais para a manutenção de linhas de abastecimento do exército russo mobilizado na Ucrânia.

Saudações aos proletários na Ucrânia que, no início dos bombardeios, começaram a organizar saques coletivos de lojas abandonadas por seus donos, de supermercados e shoppings, como reportado em Mariupol, Kherson e até em Kharkov, avançando a satisfação das suas necessidades básicas de sobrevivência contra todas as leis e morais que protegem a propriedade privada.

Saudações a todos os proletários na frente doméstica, que organizam greves e se recusam a oferecer seu trabalho e seu suor para a economia de guerra, a economia da paz social, e portanto a economia de todas as formas, estejam conscientes ou não disso.

E finalmente, saudações aos proletários, ferroviários, estivadores... na Europa, Grécia, Inglaterra.. que recusam transportar equipamento militar para a OTAN para Ucrânia.

Saudações, portanto, para todos você que recusam se sacrificar no altar da guerra, da miséria e da pátria!!!

E o dia, que esperamos ser em breve, em que os proletários tomarão as ruas de Moscou e Kiev, e de todas as grandes áreas urbanas da Rússia e da Ucrânia, entoando com uma voz “Putin e Zelenski, fora!”, responderemos de nossa parte, nos referindo aos camaradas que bradavam nas ruas da Argentina há mais ou menos vinte anos atrás o lema “¡Que se vayan todos!”, que todos sumam, que vão para os infernos, Biden, Johnson, Macron, Scholz, Sanchez, von der Leyen, Michel, Stoltenberg... todos esses promotores da guerra e da miséria... e todos aqueles, com certeza todos aqueles, que estão na fila da alternância política!

Mas sejamos claros: eles são somente intermediários nesse sistema de prostituição generalizada que é o trabalho assalariado, a venda obrigatória de nossa força de trabalho. Para além de todas as pessoas que personificam a ditadura social do Capital, o último é acima de tudo uma relação social impessoal que pode ser, é e tem sido reproduzido por qualquer elemento, burguês ou proletário, cooptado a fazê-lo. Então, mesmo que compartilhemos por completo a alegria dos proletários no Sri Lanka que, depois de ter expulso o presidente vigente alguns dias atrás, invadiram seu palácio presidencial e mergulharam em sua luxuosa piscina, a pergunta que devemos nos fazer é: como empurrar a dinâmica revolucionária rumo a suas últimas consequências, como expropriar a classe proprietária e reapropriar nossos meios de existência... e acima de tudo, como não retroceder?! É aqui que a genuína aventura humana começa... 


Guerra de Classes, 31 de Julho de 2022

quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Notas acerca da farsa eleitoral: anarquistas votam em Lula?

Duas vias distintas: parlamentarismo ou ação direta. Fonte: IWW.

 

Introdução

Nas vésperas das eleições brasileiras, a revista Jacobin resolveu publicar um Manifesto intitulado Anarquistas em defesa do voto em Lula, de autoria dos Anarquistas mascarados, um grupo de anarquistas que resolveu se manter anônimo por medo de represálias.

Ficamos sempre curiosos como nas vésperas das eleições sempre aparecem esses anarquistas bem intencionados que querem explicar como estivemos sempre errados em nossas posições ou como somos coniventes com o assassinato de tal ou qual minoria por não votar. O linguajar é sempre o mesmo e o objetivo também é sempre o mesmo.

Embora a polarização presente na política brasileira tenha conseguido enquadrar a classe trabalhadora em duas alternativas dentro do mesmo sistema, coisa que já era prevista, os anarquistas permanece em sua grande maioria aquém disso. Obviamente, a importância do anarquismo não está em seu aspecto quantitativo (coisa que esses tipos de texto sempre parecem buscar reforçar), mas em uma diferença qualitativa por conta da prática anarquista de oposição à farsa eleitoral e portanto a essa própria repolarização em diferentes frações burguesas. Consideramos ser esse o motivo do reaparecimento desses textos em todas as eleições.

Decidimos realizar uma réplica que busca ser breve, da mesma forma que o Manifesto, já que consideramos que nossas posições já foram muito mais desenvolvidas através das traduções que realizamos e publicamos, além do público-alvo desse tipo de material.


 

O abstencionismo revolucionário como arma de luta dos explorados

Desde logo, ao contrário do que propõe o Manifesto, não consideramos a defesa da abstenção revolucionária como a defesa de um solo improdutivo ou como um fator que enfraquece nossa potência por si só. A defesa da abstenção já foi amplamente discutida por teóricos do movimento anarquista e não achamos que aqui é o espaço para retomar suas proposições, mas buscaremos explicá-la a partir de nossas concepções.

Primeiramente, é preciso entender que os anarquistas não defendem a abstenção pura e simplesmente, mas sim uma abstenção fruto do desenvolvimento da consciência revolucionária de como funcionam as relações de poder no mundo capitalista. Não se trata simplesmente de não votar porque nenhum candidato lhe agrada, mas de não votar por entender a ineficácia dessa ação para a luta contra a propriedade privada e o Estado, por exemplo.

Da mesma forma, os anarquistas não equivalem os diversos candidatos. Todos possuem suas diferenças e entendemos isso, porém é justamente por entendermos que a ação no Estado e o voto se encontram no terreno de classe da burguesia que entendemos que eles apenas representam interesses de diferentes frações da mesma. No fim das contas, todos eles estão dispostos a defender a propriedade privada, o controle nos locais de trabalho e a existência da polícia e do exército para reprimir qualquer tipo de revolta que aconteça nesse território. Por isso, a crítica aos anarquistas como “aliados fracos” cai por terra quando se analisa esse mesmo terreno de classe. Somos fracos para quê? Do ponto de vista de quem? Se somos fracos para defender os interesses burgueses que estão financiando o PT (Partido dos Trabalhadores) de que posição partimos ao realizar essa crítica? Acreditamos que do ponto de vista anarquista e da classe trabalhadora, que continuará sendo explorada e reprimida no governo petista, o PT também é um aliado fraco na defesa de seus interesses.

Por um lado, temos a luta no terreno da classe trabalhadora, que se dá com as armas da própria: greves, expropriação, sabotagem, entre outros exemplos de associação proletária; por outro, temos a luta no terreno burguês, utilizando as ferramentas e métodos legitimados pela ordem vigente: mudança de uma liderança estatal pela outra, com toda a estrutura permanecendo mais ou menos inalterada, como exemplo de atomização cidadã e negação da força coletiva da classe. Tudo é aceito através da noção de “mal menor”, tudo no sistema capitalista anteriormente criticado é reabilitado pela necessidade de derrotar Bolsonaro. É por isso que não consideramos o ato de votar como algo momentâneo e individual, como propõe aqueles que buscam justificá-lo de um ponto de vista imediatista, mas sim como uma ação baseada em certas premissas e que legitima todo o sistema capitalista.

De uma maneira menos imediatista, a mobilização para a defesa das instituições burguesas também realiza a redução do proletariado a simples engrenagem do capital, reafirmando, renovando e desenvolvendo esse, negando a própria potência dos proletários (pela negação de seus próprios métodos de combate e de sua contraposição ao modo de produção capitalista) e afirmando sua reprodução enquanto capital variável – parte do capital (Grupo Comunista Internacionalista, 2008). A mobilização para essa negação negativa semeia a confusão no meio da classe, ao travestir como interesses seus aqueles de outros. Como colocado por Malatesta:

Se existem classes e indivíduos que são privados dos meios de produção e, consequentemente, dependentes de outros com o monopólio sobre esses meios, o assim chamado sistema democrático pode ser somente uma mentira, que serve para enganar as massas do povo e mantê-las dóceis com um aspecto externo de soberania, enquanto o governo da classe privilegiada e dominante está de fato sendo salvaguardado e consolidado. De tal maneira é a democracia e de tal maneira tem sido sempre na estrutura capitalista, seja qual for a forma que assuma, da monarquia constitucional ao assim chamado governo direto. (Nem democratas, nem ditadores: anarquistas, 1926).

Portanto, nós anarquistas não temos medo de ficar isolados de outros grupos, não quando esses grupos são grupos que defendem a sociedade capitalista. Também não temos medo de nadar a contracorrente. Numa época em que a contrarrevolução impera, sujeitar-se ao pensamento dominante no seio da classe trabalhadora seria sucumbir ao pragmatismo e às concepções contrarrevolucionárias presentes. Ao contrário disso, os anarquistas precisam defender intransigentemente seu programa, como forma de preservar o fio histórico que nos conecta como classe em luta às nossas outras experiências, preservando seus ensinamentos históricos, e também como forma de referencial para ações mais combativas.

Como veremos a seguir, ao observarmos nossas experiências históricas enquanto classe e os ensinamentos legados por essas, percebemos que a propaganda eleitoral não atua em defesa dos interesses da classe trabalhadora, nem é a eleição de personagens de esquerda que o faz. Usaremos o mesmo exemplo da Espanha de 1936 citado no Manifesto para ilustrar essa questão.

 


O apelo à tradição ... reformista

Apesar de sua crítica a um suposto tradicionalismo anarquista, o texto não hesita em tentar criar sua própria tradição dentro do anarquismo, apelando a eventos históricos para afirmar uma tradição reformista dentro desse. O apelo a um evento histórico nada mais faz do que dar premissa para que outros tipos de prática sejam justificadas no corpo teórico e prático do anarquismo por "já terem ocorrido".

O que sempre deve ser avaliado é primeiramente o conteúdo dessas ações. Dessa forma, e como já falamos acima, a posição partidária de alguns anarquistas não é só a prática anarquista tomando uma forma partidária, mas é carregada de uma série de implicações anteriores e posteriores. Ou seja: a aceitação do mal menor, a abdicação da análise do papel do Estado no sistema capitalista, a conciliação interclassista, o conteúdo é a própria negação da prática anarquista e do terreno de classe em favor da preservação da sociedade capitalista. Consideramos essa uma forma muito melhor de proceder na avaliação das formas e conteúdos que nossa luta incarna do que a maneira feita pelo Manifesto.

Aqui citam o período espanhol que vai de 1931 até 1936. Vejamos o que dizem.

O Manifesto coloca a culpa da abstenção e da derrota do governo de coalizão republicano-socialista nas costas dos anarquistas, mas será que foi só isso? Se a segunda república espanhola era tão boa com os camponeses e trabalhadores, temos de nos perguntar como os anarquistas conseguiram tamanha influência para fazer esses se absterem de votarem em favor de algo que só lhes trazia benesses.

Como Leval (1975) coloca, o segundo período da Segunda República espanhola foi uma consequência do primeiro. A Segunda República não apenas estava disposta a utilizar a guarda civil para reprimir as ocupações em terras incultivadas, até mesmo atirando contra camponeses, mas também contra greves de trabalhadores. A tragédia de Casas Viejas é um episódio que deve ser resgatado em nossas memórias.

Obviamente, esse não foi um caso isolado. Como coloca Jaime Bailus (1978), o primeiro conflito entre os trabalhadores e a República já foi encontrado com uma chuva de balas, em favor do capital norte-americano. Este foi o caso da greve da Telefônica, em 1931. Como colocado por Miquel Rigo (2011), o ministro de interior da República não hesitou em utilizar todos os meios disponíveis para reprimir os grevistas, disparando contra os operários sem aviso prévio. Como colocado no mesmo texto: “a República da ilusão começava a tornar-se “realista”” (tradução nossa).

Além disso, e como explicitado pelos episódios de luta acima mencionados, como Leval (1975) mesmo complementa, os camponeses e trabalhadores que antes, na monarquia, comiam pouco mais que pão e usavam sandálias continuaram na mesma situação na Segunda República. Esses foram alguns dos motivos que realmente levaram à derrota dos socialistas-republicanos nas eleições de 1933.

Levando isso em conta, é incompreensível ver anarquistas colocando a culpa em outros anarquistas, ou mesmo em trabalhadores e camponeses, pela derrota da coalizão republicano-socialista nas eleições. Isso soa como as acusações que hoje em dia mesmo verificamos contra o anarquismo como a força secreta que causa a derrota da esquerda, mesmo quando por outro lado dizem que somos incapazes de realizar qualquer ação social em nível maior que o local.


Sobre Malatesta

Por fim, gostaríamos de responder a um ponto específico do texto, que é a citação de Malatesta. Entendemos a atividade teórica de militantes comunistas e anarquistas como a tentativa de “expressar teoricamente a prática comunista de ruptura com a sociedade capitalista inteira” (Theses of Programmatical Orientation, Grupo Comunista Internacionalista, tradução nossa), dessa forma o programa comunista e anarquista não é de propriedade de nenhum de seus militantes em particular, mesmo sendo a herança de todos. Assim, contribuímos com as formulações e teorizações cada vez mais condizentes com a real prática de ruptura com essa sociedade, não tendo nenhum valor de autoridade como militantes mais ou menos conhecidos. Dizemos tudo isso porque para nós não importa se Malatesta disse isso ou aquilo, mas sim a validez de suas posições para uma ação de ruptura com o capitalismo.

Dito isso, ainda achamos importante trazer algumas contribuições de Malatesta a respeito da democracia, com intuíto de melhor informar possíveis leitores desse manifesto de que Malatesta ao longo de sua vida, desde sua fase mais atrelada à Internacional (fase jovem) até sua fase mais madura, foi um arduo defensor da anarquia como contraposição à democracia e à ditadura como sistemas de governo capitalistas. Seguiremos com alguns trechos de materiais que situam as teorizações de Malatesta no terreno de nossa classe, em contraposição com a defesa da democracia ou da tomada de lados nos conflitos intraburgueses.

Um legalista, no melhor dos casos, vê o sufrágio universal como um ganho que pode dar um grande impulso ao partido socialista; enquanto eu acredito ser a melhor maneira que a burguesia tem para alegremente oprimir e explorar o povo. Ele vê o sufrágio universal como o primeiro passo na direção da emancipação; eu vejo como o segredo para fazer o escravo firmar suas próprias correntes e uma garantia contra a revolta, fazendo o escravo pensar que ele é o mestre.

Então como você nos veria unidos? Enquanto ele estará fazendo campanha para garantir tais direitos ao voto e, quando os conseguir, para persuadir o povo a usá-lo, eu estarei me esforçando para prevenir que tais direitos sejam concedidos ou, se forem, para garantir que as urnas eleitorais estejam vazias e sejam vistas com desprezo. (Queridos companheiros do Ilota, 1883, tradução nossa).

 

Estamos contra a classe burguesa, colocamo-nos contra e fora do Estado — e incitamos os trabalhadores a fazerem outro tanto — tanto na paz quanto na guerra.

Os socialistas democráticos, que enquanto dizem querer revolucionar toda a ordem capitalista fazem obra de conservação social, procurando tornar mais suportável e mais suportado o estado de coisas atual, ou melhor, procurando fazer esperar que novas leis possam reparar os males mais gritantes, podem pois interessar-se pelas relações com os Estados estrangeiros [...]. Os republicanos, que em vez de pensarem em fazer a república ocupam-se de moralizar a monarquia [...] podem tomar partido pela tripla aliança ou o triplo acordo, e preocupar-se com a força e o prestígio da Itália. Socialistas e republicanos aspiram a ir para o poder — alguns talvez com a monarquia — e é natural que se exercitem nas artes do homem de Estado.

Mas nós, que queremos verdadeiramente derrubar o atual sistema social, nós que não nos contentamos com simples melhorias, que acreditamos que essas limitadas melhorias que o sistema capitalista poderia conceder sem se negar a si mesmo não serão obtidas, ou não serão úteis nem eficazes, se não forem arrancadas pela resistência e pela ameaça do proletariado em luta contra os patrões — nós não podemos ter qualquer relação voluntária com o Estado, e dele não nos ocupamos a não ser na medida em que lhe pudermos minar a força e a existência. (A nossa política estrangeira, 1914).

É suficiente pensar no que fizeram os socialistas e comunistas quando chegaram ao poder, quer traindo seus princípios e seus camaradas, quer hasteando cores em nome do socialismo e do comunismo.

É por isto que não somos nem a favor do governo duma maioria, nem do duma minoria; nem pela democracia nem pela ditadura.

Somos a favor da abolição do gendarme. Somos a favor da liberdade de todos e do livre acordo, que estará aí para todos quando ninguém tenha os meios para forçar os outros, e todos estejam envolvidos na contribuição da sociedade. Somos a favor da anarquia. (Nem democratas, nem ditadores: anarquistas, 1926).


Referências Bibliográficas

LEVAL, Gaston. Collectives in the Spanish revolution: detailed account of worker-controlled agriculture, industry and public services in revolutionary spain during the civil war.. Londres: Freedom Press, 1975. Disponível em: https://theanarchistlibrary.org/library/gaston-leval-collectives-in-the-spanish-revolution.pdf. Acesso em: 24 set. 2022.

MALATESTA, Errico. Nem democratas, nem ditadores: anarquistas. 1926. Disponível em: https://ielibertarios.wordpress.com/2020/08/06/nem-democratas-nem-ditadores-anarquistas-por-errico-malatesta/. Acesso em: 23 set. 2022.

MALATESTA, Errico. A nossa política estrangeira. 1914. Disponível em: https://ultimabarricada.wordpress.com/2019/08/22/a-nossa-politica-estrangeira/. Acesso em: 23 set. 2022.

RIGO, Miquel. La huelga de Telefónica de 1931: el primer conflicto de la cnt en la república. El primer conflicto de la CNT en la República. 2011. Disponível em: https://www.portaloaca.com/historia/iirepublicayguerracivil/la-huelga-de-telefonica-de-1931-el-primer-conflicto-de-la-cnt-en-la-republica/. Acesso em: 24 set. 2022.

MALATESTA, Errico. Queridos companheiros do Ilota. 1883. Disponível em: https://amanajeanarquista.blogspot.com/2022/01/queridos-companheiros-do-ilota-1883_11.html. Acesso em: 22 set. 2022.  

GRUPO COMUNISTA INTERNACIONALISTA. Theses on Programmatical Orientation. 1989. Disponível em: https://redtexts.org/html/icg_1989_theses.html. Acesso em: 24 set. 2022. 

GRUPO COMUNISTA INTERNACIONALISTA. Eu, Proletário? 2008. Disponível em: https://amanajeanarquista.blogspot.com/2021/11/eu-proletario-grupo-comunista.html. Acesso em: 23 set. 2022.

sábado, 24 de setembro de 2022

1936: Como a "Frente Popular" na França e na Espanha mobilizou a classe trabalhadora para a guerra (2006)

 

 

Apresentação

A presente tradução foi realizada através do texto disponibilizado aqui pela ICC (International Communist Current), publicado em 2006. 

Consideramos a tradução deste artigo importantíssima visto os tópicos citados e sua relevância para o contexto atual da luta de classes no território brasileiro, em que impera a mobilização da classe trabalhadora para a defesa da democracia. Não consideramos isso uma particularidade de nossa classe nesse país, mas a maneira através da qual a burguesia vem esmagando e recuperando as diferentes revoltas que tem acontecido, como por exemplo no Chile. Isso também não nos é surpresa, como já dito em um material compartilhado anteriormente nesse blog a dominação e retomada de controle pela burguesia opera através da falsificação do conteúdo das lutas e pela repolarização do proletariado em diferentes frentes a favor de um ou outro lado burguês. 

No contexto brasileiro e no Chile, essa repolarização se dá no presente principalmente pelos polos do fascismo e do antifascismo, em que a defesa da democracia se torna a batalha mais importante para salvar o mundo da barbárie fascista e a democracia é colocada como o maior interesse dos explorados, que representaria um mundo capitalista completamente livre e justo.  

Por esse motivo, consideramos que a tradução desse artigo e seu fazer conhecer entre os círculos brasileiros seria de muita serventia, de modo a nos conectar com o fio histórico que liga nossas lutas atuais com esses ensinamentos históricos das experiências passadas de nossa classe.


1936: Como a "Frente Popular" na França e na Espanha mobilizou a classe trabalhadora para a guerra (2006)

 

Setenta anos atrás, em maio de 1936, uma enorme onda de lutas dos trabalhadores irrompeu espontaneamente contra a exploração ampliada provocada pela crise econômica e o desenvolvimento da economia de guerra. Na Espanha, em julho do mesmo ano, a classe operária iniciou imediatamente uma greve geral e pegou em armas em resposta à revolta militar de Franco. Muitos revolucionários, incluindo alguns dos mais conhecidos como Trotsky, interpretaram estes eventos como o início de uma nova onda revolucionária internacional. Na verdade, eles foram enganados pelo apoio entusiasta das multidões, por uma compreensão superficial das forças presentes e pela natureza "radical" de alguns dos discursos.


Com base em uma análise clara do equilíbrio de forças em nível internacional, a esquerda comunista italiana (em sua revista, Bilan) percebeu que as Frentes Populares estavam longe de ser a expressão de um desenvolvimento do movimento revolucionário. Pelo contrário, elas mostraram que a classe estava ficando cada vez mais enredada pela ideologia nacionalista e democrática e estava abandonando a luta contra os efeitos da crise histórica do capitalismo. "A Frente Popular mostrou ser o processo concreto da dissolução da consciência de classe do proletariado, a arma destinada a manter os trabalhadores no terreno da preservação da sociedade burguesa em todos os aspectos de suas vidas social e política". (Bilan n°31, maio-junho de 1936). Com grande rapidez, tanto na França como na Espanha, o aparato político da esquerda "socialista" e "comunista" se colocaria à frente desses movimentos. Ao encerrar os trabalhadores na falsa alternativa do fascismo/antifascismo, eles sabotaram o movimento de dentro, orientaram-no para a defesa do Estado democrático e por fim alistaram os trabalhadores na França e na Espanha no segundo massacre imperialista mundial.


Hoje há um lento ressurgir da luta de classes e novas gerações aparecem em busca de alternativas radicais ao fracasso cada vez mais manifesto do capitalismo. Neste contexto, movimentos "antiglobalização", como o ATTAC, denunciam o liberalismo desenfreado e a "ditadura do mercado", que "arrebata o poder político das mãos dos Estados, e portanto dos cidadãos" e clama pela "defesa da democracia contra a ditadura financeira". Este "outro mundo" proposto pelos partidários da "antiglobalização" frequentemente toma medidas inspiradas nas políticas dos anos 30, 50 ou 70, quando o Estado supostamente desempenhou um papel muito mais importante como ator econômico imediato. Deste ponto de vista, as políticas dos governos da Frente Popular, com seus programas de controle estatal da economia, "da unidade de todos os estratos da população trabalhadora contra os capitalistas e a ameaça fascista", desencadeando uma "revolução social", são exageradas a fim de apoiar a afirmação de que "outro mundo", que outras políticas, são possíveis dentro do capitalismo.


Portanto, é absolutamente essencial, por ocasião deste 70º aniversário, lembrar o contexto e o significado dos acontecimentos de 1936:

  • recordar as trágicas lições destas experiências, em particular a armadilha fatal para a classe trabalhadora de abandonar o terreno da defesa intransigente de seus interesses específicos para submeter-se às necessidades de um ou outro campo burguês;

  • denunciar as mentiras espalhadas pela "esquerda", de que foram a encarnação dos interesses da classe trabalhadora ao longo destes acontecimentos, mostrando que eles foram de fato o seu executor.

     

A década de 1930 foi caracterizada pela derrota da onda revolucionária de 1917-23 e pelo triunfo da contrarrevolução. Eles foram fundamentalmente diferentes do atual período histórico de ressurgimento das lutas e do lento desenvolvimento da consciência. Entretanto, a nova geração de proletários que tentam fugir da ideologia contrarrevolucionária, se depara continuamente com essa mesma "esquerda", suas armadilhas e manipulações ideológicas, embora agora use as novas roupas de "antiglobalização". Só é possível escapar delas reapropriando-se das lições, conquistadas de maneira tão difícil, da experiência passada do proletariado.

 

A Frente Popular fortaleceu a luta contra a exploração capitalista?


A Frente Popular afirmou que estava "unificando a força do povo contra a arrogância dos capitalistas e a ascensão do fascismo". Mas será que elas realmente deram início a uma dinâmica que fortaleceu a luta contra a exploração capitalista? Foram realmente um passo para o desenvolvimento da revolução? Para responder a isso, uma abordagem marxista não pode se basear exclusivamente no tom radical dos discursos e na violência das erupções sociais que sacudiram vários países da Europa Ocidental na época. Ela toma como base uma análise do equilíbrio de forças entre as classes a nível internacional e para todo o período histórico. Qual foi o contexto geral de forças e fraquezas do proletariado e de seu inimigo mortal, a burguesia, no qual ocorreram os acontecimentos de 1936?


O produto da derrota histórica do proletariado


A poderosa onda revolucionária forçou a burguesia a terminar a guerra, levou a classe trabalhadora ao poder na Rússia e abalou as fundações do poder burguês na Alemanha e em toda a Europa Central. Em seguida, durante toda a década de 1920, o proletariado sofreu uma série de derrotas sangrentas. O esmagamento do proletariado alemão em 1919 e depois em 1923 pelos social-democratas do SPD abriu o caminho para a ascensão de Hitler ao poder. O trágico isolamento da revolução na Rússia assinou a sentença de morte da Internacional Comunista e deixou o caminho aberto para o triunfo da contrarrevolução estalinista, que aniquilou toda a velha guarda dos bolcheviques e a força viva do proletariado. Finalmente, a última centelha proletária foi impiedosamente extinta na China em 1927. O curso da história havia sido invertido. A burguesia havia obtido vitórias decisivas sobre o proletariado internacional e o curso rumo à revolução mundial foi substituído por uma marcha inexorável rumo à guerra mundial. Isto significou o mais horrível retorno à barbárie capitalista.


Entretanto, apesar de tais derrotas esmagadoras dos batalhões da vanguarda mundial do proletariado, ainda havia episódios de combatividade, às vezes importantes, dentro da classe. Este foi particularmente o caso nos países em que não havia sofrido uma derrota direta, nem física nem ideologicamente, no contexto dos confrontos revolucionários de 1917-1927. Assim, no ponto alto da crise dos anos 30, em julho de 1932, uma greve selvagem irrompeu entre os mineiros na Bélgica, que rapidamente assumiu dimensões insurrecionais. Ela partiu de um movimento contra as reduções salariais nas minas de Borinage. Quando os grevistas foram demitidos, o movimento se espalhou por toda a província e houve violentos confrontos com a polícia. Na Espanha de 1931 a 1934, a classe trabalhadora se engajou em várias lutas, que foram brutalmente reprimidas. Em outubro de 1934, todas as áreas de mineração nas Astúrias e o cinturão industrial de Oviedo e Gijon explodiram em uma insurreição suicida, que foi esmagada pelo governo republicano e seu exército, acabando em uma repressão brutal. Também na França, embora a classe trabalhadora estivesse profundamente desmoralizada e exausta pela política "esquerdista" do PC, segundo a qual até 1934 a revolução era iminente e era necessário "criar sovietes em toda parte", ela ainda manifestava uma certa combatividade. Durante o verão de 1935, diante da legislação que decretava grandes cortes salariais para os trabalhadores do setor estatal, ocorreram manifestações impressionantes e confrontos violentos com a polícia nas docas de Toulon, Tarbes, Lorient e Brest. Em Brest, depois que um trabalhador foi espancado até a morte por soldados com a coronha de seus fuzis, os trabalhadores exasperados lançaram violentas manifestações e tumultos entre 5 e 10 de agosto de 1935. Estas terminaram em 3 mortes e centenas de feridos; dezenas de trabalhadores foram presos[1].


Essas expressões de militância contínua, muitas vezes marcadas pela raiva, desespero e desorientação política, foram realmente "explosões de desespero" que mostraram todas as fraquezas da situação internacional de derrota e dispersão dos trabalhadores. A análise de Bilan traz isto à tona em relação à Espanha: 

"Se os critérios internacionais significam alguma coisa devemos dizer que, dada a evidência de um desenvolvimento da contrarrevolução a nível internacional, a orientação da Espanha entre 1931 e 1936 só pode seguir uma direção paralela [isto é, o curso contrarrevolucionário dos acontecimentos], ao invés do curso oposto de desenvolvimento revolucionário. A revolução só pode evoluir plenamente como resultado de uma situação revolucionária em nível internacional." (Bilan n°35, janeiro de 1937). 

 

Entretanto, a fim de mobilizar os trabalhadores daqueles países onde o movimento revolucionário não havia sido esmagado, as burguesias nacionais foram obrigadas a recorrer a uma mistificação específica. Nos países onde o proletariado já havia sido esmagado em um confronto direto entre as classes, a mobilização ideológica para a guerra por trás do fascismo ou do nazismo, ou por trás da ideologia estalinista da "defesa da pátria socialista", eram as formas específicas de desenvolvimento da contrarrevolução. Naqueles regimes políticos que haviam permanecido "democráticos", a mesma mobilização pela guerra foi empreendida em nome do antifascismo. Para isso, a burguesia francesa e espanhola (e outras como a burguesia belga, por exemplo) utilizaram a chegada da esquerda ao poder para mobilizar a classe em suporte ao antifascismo em defesa do Estado "democrático" e para estabelecer a economia de guerra.

A posição assumida pela esquerda em relação às lutas proletárias mencionadas acima mostra claramente que as políticas da Frente Popular não foram desenvolvidas para fortalecer a dinâmica das lutas dos trabalhadores. Durante as greves insurrecionais na Bélgica em 1932, o Parti Ouvrier Belge (POB) e sua comissão sindical se recusaram a apoiar o movimento. Isto serviu para direcionar a raiva dos trabalhadores também contra a socialdemocracia. Os grevistas atacaram a Maison du Peuple em Charleroi e rasgaram ou queimaram seus cartões de filiação ao POB e ao sindicato. A partir do final de 33, o POB apresentou o "Plano de Trabalho", como uma "alternativa popular" à crise capitalista, a fim de canalizar a raiva e o desespero dos trabalhadores.

A Espanha é também uma ilustração particularmente clara do que o proletariado pode esperar de um governo "republicano" e "de esquerda". Desde o início de sua existência, a República Espanhola mostrou que não precisava aprender nada com os regimes fascistas sobre como massacrar trabalhadores. Um grande número de lutas nos anos 30 foram esmagadas pelos governos republicanos ou pelo PSOE até 1933. O PSOE, que estava em oposição na época, incitou a insurreição suicida nas Astúrias, em outubro de 34, com papeado "revolucionário". Em seguida, isolou completamente o movimento, em conjunto com sua união, a UGT, o que impediu qualquer extensão do movimento. Daí em diante, Bilan expôs claramente o caráter dos regimes democráticos "de esquerda": 

"De fato, desde sua fundação em 31 de abril de 1931 até dezembro de 1931, a "guinada à esquerda" da República Espanhola - a formação do governo Azana-Caballero-Lerroux, a amputação de sua direita representada por Lerroux em dezembro de 1931 - não oferece de forma alguma condições favoráveis para o desenvolvimento de posições de classe proletárias ou para a formação de órgãos capazes de liderar a luta revolucionária. Não se trata de forma alguma de ver o que o governo republicano e radical-socialista deveria fazer para o bem da (...) revolução comunista. É uma questão de analisar o significado desta mudança para a esquerda ou para a extrema esquerda, este concerto unânime dos socialistas aos sindicalistas em defesa da república. Criou as condições para o desenvolvimento das conquistas da classe trabalhadora e a direção revolucionária do proletariado? Ou este movimento à esquerda foi ditado pela necessidade do capitalismo de entorpecer os trabalhadores, que haviam sido arrebatados por uma profunda explosão revolucionária, para garantir que não seguiriam o caminho da luta revolucionária. O caminho que a burguesia trilharia em outubro de 1934 era muito perigoso em 1931 (...)" (Bilan n°12, novembro de 1934).


Finalmente, é especialmente significativo que os violentos confrontos em Brest e Toulon no verão de 1935 eclodiram no exato momento em que a Frente Popular foi formada. Como estes se desenvolveram espontaneamente contra os slogans dos líderes políticos e sindicais da "esquerda", esta última não hesitou em caluniar como "provocadores" aqueles que estavam perturbando a "ordem republicana": "nem a Frente Popular, nem os comunistas que estão na linha de frente, quebram janelas, saqueiam cafés ou rasgam a bandeira nacional" (editorial Humanité, 7 de agosto de 1935).

Assim, desde o início, como Bilan mostrou em relação à Espanha a partir de 1933, as políticas da Frente Popular e dos governos de esquerda não se baseavam de forma alguma numa dinâmica de fortalecimento das lutas proletárias. Pelo contrário, desenvolveram-se contra ela, colidiram deliberadamente com os movimentos operários que estavam num terreno de classe para sufocar estas últimas explosões de resistência contra a "dissolução total do proletariado dentro do capitalismo" (Bilan n°22, agosto-setembro de 1935): 

"Na França, a Frente Popular, fiel a sua tradição traiçoeira, não deixará de apelar para o assassinato daqueles que recusam se curvar diante do 'desarmamento francês' e que, como em Brest e Toulon, se engajam em greves por suas próprias exigências, em batalhas de classe contra o capitalismo e para além do domínio dos pilares da Frente Popular" (Bilan n°26, dezembro-janeiro de 1936).


O antifascismo amarra os trabalhadores à defesa do Estado burguês


As Frentes Populares não "uniram as forças populares contra a ascensão do fascismo", pelo menos? Quando Hitler chegou ao poder na Alemanha no início de 1933, a esquerda usou o avanço das facções de extrema direita ou fascistas nos países "democráticos" para mostrar que era necessário defender a democracia por meio de uma ampla frente antifascista. Esta estratégia foi posta em prática pela primeira vez na França a partir do início de 1934 e foi posta em marcha por meio de um grande artifício. Um pretexto foi dado pela violenta manifestação de 6 de fevereiro de 1934 em protesto contra os efeitos da crise e da corrupção nos governos da Terceira República. Grupos da extrema direita (Croix de Feu, Camelots du Roi) estavam envolvidos nesta manifestação, assim como militantes do PC. Alguns dias depois, houve uma reviravolta completa na atitude do PC, devido a uma mudança de estratégia por parte de Stalin e do Komintern. Este último havia decidido substituir a tática de "classe contra classe" por uma política de reaproximação com os partidos socialistas. A partir daquele momento, o dia 6 de fevereiro foi apresentado como uma "ofensiva fascista" e uma "tentativa de golpe de estado" na França.

O motim de 6 de fevereiro de 1934 permitiu à esquerda exagerar a existência de uma ameaça fascista na França e, consequentemente, lançar uma ampla campanha para mobilizar os trabalhadores em nome do antifascismo para a defesa da "democracia". A greve geral convocada tanto pelo PC como pela SFIO (Section française de l'Internationale ouvrière) a partir do dia 12 coroou o antifascismo com o slogan "Unidade! Unidade contra o fascismo!". O PC francês assimilou rapidamente a nova orientação e na conferência nacional em Ivry, em junho de 1934, declarou Thorez: "No momento atual, o fascismo é o principal perigo. É contra isto que devemos concentrar toda a força de nossa ação proletária de massas e conquistar para esta ação todos os estratos de trabalhadores da população". Esta perspectiva resultou na rápida assinatura de um acordo bilateral entre o PC e a SFIO em julho de 1934.

Desta forma, o antifascismo tornou-se o ponto em torno do qual foi possível reagrupar todas as forças burguesas que estavam "apaixonadas pela liberdade" atrás da bandeira da Frente Popular. Também permitiu que os interesses do proletariado fossem ligados aos do capital nacional, formando a "aliança da classe trabalhadora com os trabalhadores das classes médias" para poupar a França "da vergonha e dos males de uma ditadura fascista", como disse Thorez. Como extensão disto, o PC francês desenvolveu o mote "200 famílias que saqueiam a França e vendem a baixo custo o interesse nacional". Assim, todos, com exceção destes "capitalistas", estavam sofrendo por causa da crise e se solidarizavam uns com os outros. Desta forma, a classe trabalhadora, e seus interesses de classe, foram afogados no povo e na nação em oposição a "um punhado de parasitas".

Por outro lado, o fascismo era denunciado diariamente e histericamente como o único elemento que levava à guerra. A Frente Popular mobilizou a classe trabalhadora em defesa da pátria contra o invasor fascista e o povo alemão foi identificado com o nazismo. Os slogans do PC francês chamavam todos a "comprar francês!" e glorificavam a reconciliação nacional. Assim, a esquerda arrastou o proletariado para defesa do estatismo por meio do nacionalismo mais ultrajante, a pior expressão do chauvinismo e da xenofobia. 

O ponto alto desta intensa campanha foi uma aliança eleitoral e a formação pública da Frente Popular em 14 de julho de 1935. Para a ocasião, os trabalhadores foram obrigados a cantar o hino nacional francês sob retratos conjuntos de Marx e Robespierre e foram obrigados a gritar "Viva a República Francesa dos soviets!". Ao concentrar todas as ações no desenvolvimento da campanha eleitoral para a "Frente Popular pela Paz e pelo Trabalho", os partidos de "esquerda" redirecionaram as lutas para fora do terreno de classe em direção ao da democracia eleitoral burguesa, afogaram o proletariado na massa amorfa do "povo francês" e o canalizaram para a defesa dos interesses nacionais. 

"Isto foi o resultado das novas posições de 14 de julho, que foram uma conseqüência lógica da política chamada antifascismo. A República não era o capitalismo, era o reino da liberdade, da democracia que é, como conhecemos, a plataforma do antifascismo. Os trabalhadores juraram solenemente defender esta República contra os agitadores internos e externos, enquanto Stalin lhes dizia para aprovar o armamento do imperialismo francês em nome da defesa da URSS" (Bilan n°22, agosto-setembro de 1935).


A mesma estratégia de mobilização da classe trabalhadora no terreno eleitoral em defesa da democracia foi utilizada em vários países. Ela os integrou na generalidade dos estratos populares e os mobilizou para a defesa dos interesses nacionais. Na Bélgica, a mobilização dos trabalhadores por trás da campanha em torno do "Plan de Travail" utilizou meios de propaganda psicológica que de forma alguma ficaram aquém da propaganda nazista ou estalinista. Isso resultou na entrada do POB no governo em '35. A propaganda antifascista, liderada pela esquerda do POB em particular, atingiu o clímax em 1937 em um duelo em Brusselles entre Degrelle, o líder do partido fascista Rex, e o primeiro ministro Van Zeeland, que teve o apoio de todas as forças "democráticas" incluindo o PC belga. No mesmo ano, Spaak, um dos líderes da ala esquerda do POB, enfatizou o "caráter nacional" do programa socialista belga. Ele também propôs que o partido se tornasse um partido do povo porque defendia o interesse comum e não mais os interesses de uma classe só!

Entretanto, foi na Espanha que o exemplo francês inspirou mais claramente as políticas da esquerda. Após o massacre nas Astúrias, o PSOE ainda focava sua propaganda em torno do antifascismo, a "frente unida de todos os democratas" e apelava para um programa da Frente Popular contra a ameaça fascista. Em janeiro de 1935 eles assinaram uma aliança da "Frente Popular" com a união UGT, os partidos republicanos e o PC espanhol, com o apoio crítico da CNT e do POUM. Esta "Frente Popular" chamava abertamente à substituição da luta dos trabalhadores pela luta no terreno burguês contra sua facção fascista e a favor de sua ala "antifascista" e "democrática". A luta contra o capitalismo foi enterrada em favor de um ilusório "programa de reforma" do sistema, que tinha que realizar uma "revolução democrática". Ao iludir o proletariado através desta falsa frente antifascista e democrática, a esquerda o mobilizou no terreno eleitoral e obteve um triunfo eleitoral em fevereiro de 1936: 

"Esta [coalizão republicano-socialista em 1931-33] foi uma demonstração conclusiva sobre o uso da democracia como meio de manobra para manter o regime capitalista. Mas depois disso, em 1936, e da mesma forma, foi novamente possível empurrar o proletariado espanhol a alinhar-se, não em defensa de interesses de classe, mas na defesa da "República", do "Socialismo" e do "Progresso" contra a monarquia, o fascismo clerical e a reação. Isto mostra a profunda desordem dos trabalhadores na Espanha, onde o proletariado só recentemente deu provas de sua combatividade e de seu espírito de autossacrifício." (Bilan n°28, fevereiro-março de 1936).

 

De fato, a política antifascista da esquerda e a formação de "Frentes Populares" conseguiram atomizar os trabalhadores, diluí-los dentro da população, mobilizá-los para uma transformação democrática do capitalismo a ponto de imbuí-los de veneno chauvinista e nacionalista. Bilan mostrou-se certo quando a Frente Popular foi formada oficialmente em 14 de julho de 1935: 

"Impressionantes manifestações de massa sinalizam a dissolução do proletariado francês no regime capitalista. Apesar de haver milhares e milhares de trabalhadores marchando pelas ruas de Paris, não há mais uma classe operária lutando por seus próprios objetivos na França, assim como existe na Alemanha. Neste sentido, o 14 de julho marca um momento decisivo no processo de desintegração do proletariado e na reconstrução de uma unidade sagrada da nação capitalista. (...) Os trabalhadores carregaram pacientemente a bandeira nacional, cantaram o hino nacional e até aplaudiram Daladier, Cot e outros ministros capitalistas que, junto com Blum e Cachin, juraram solenemente "dar pão aos trabalhadores, trabalho aos jovens e paz ao mundo". Isto significa balas de chumbo, quartéis e guerra imperialista para todos." (Bilan n°21, julho-agosto de 1935).


As medidas econômicas da Frente Popular: o Estado a serviço dos trabalhadores?


Mas será que a esquerda não limitou pelo menos os horrores da livre concorrência do capitalismo "monopolista" através de suas medidas para reforçar o controle do Estado sobre a economia? Não protegeu, portanto, as condições de vida e de trabalho da classe trabalhadora? Mais uma vez, é necessário colocar as medidas exaltadas pela esquerda dentro do quadro geral da situação do capitalismo.

No início da década de 1930, havia uma anarquia total na produção capitalista. A crise mundial atirou milhões de proletários nas ruas. A crise econômica, produzida pela decadência do sistema capitalista, manifestou-se através de uma grande depressão na década de 1930 (o crash da bolsa de 1929, taxas de inflação recorde, queda na produção e crescimento industrial, aceleração dramática no desemprego). Isto empurrou a burguesia vitoriosa inexoravelmente para a guerra imperialista pela redivisão do mercado mundial super saturado. "Exportar ou morrer" tornou-se o slogan de toda burguesia nacional e foi expresso claramente pelos líderes nazistas.

 

Movimento em direção à guerra e ao desenvolvimento da economia de guerra


Após a Primeira Guerra Mundial, a Alemanha foi privada de suas poucas colônias pelo tratado de Versalhes e ficou com dívidas e reparações de guerra esmagadoras. Foi isolada no centro da Europa e a partir daí surgiu o problema que determinou as políticas de todos os países europeus durante as duas décadas seguintes. Conforme reconstruía sua economia, a Alemanha foi confrontada com a necessidade urgente de encontrar saídas para seus produtos e sua expansão só poderia ocorrer dentro do quadro europeu. Os acontecimentos aceleraram-se quando Hitler chegou ao poder em 1933. As necessidades econômicas que impulsionaram a Alemanha para a guerra encontraram sua expressão política na ideologia nazista: o desafio do Tratado de Versalhes, a demanda por "espaço vital", que só poderia ser na Europa.

Isto convenceu certas facções da burguesia francesa de que a guerra era inevitável e que a Rússia soviética seria um bom aliado para bloquear as aspirações pan-germânicas. Tanto mais que, em nível internacional, a situação estava se tornando mais clara: enquanto a Alemanha deixava as Nações Unidas, a URSS se unia a ela. Anteriormente, esta última havia jogado a carta alemã para se opor ao bloqueio continental, imposto pelas democracias ocidentais. Mas então a relação da Alemanha com os EUA se estreitou à medida que estes últimos investiram na economia alemã, ressuscitaram-na graças ao plano Dawes e apoiaram a reconstrução econômica de um "bastião" ocidental contra o comunismo. Neste momento, a Rússia estalinista reorientou sua política externa para romper esta aliança. De fato, até muito tarde, importantes setores da burguesia dos países ocidentais acreditavam ser possível evitar a guerra com a Alemanha, fazendo algumas concessões e, sobretudo, dirigindo a necessária expansão da Alemanha para o leste. Munique 1938 expressou esta contínua incompreensão da situação e da próxima guerra.

A viagem a Moscou feita pelo ministro francês das Relações Exteriores, Laval, em maio de 1935, sublinhou dramaticamente este posicionamento de peões imperialistas no tabuleiro de xadrez europeu com a aproximação franco-russa. A assinatura por Stalin de um tratado de cooperação, significou seu reconhecimento implícito da política de defesa da França e encorajou o PC francês a votar a favor dos créditos militares. Alguns meses mais tarde, em agosto de 1935, o 7° Congresso do PCUS[2] delinhou as conseqüências políticas para a Rússia de uma possível aliança com os países ocidentais, a fim de enfrentar o imperialismo alemão. Dimitrov nomeou o novo inimigo que tinha que ser combatido: o fascismo. Os socialistas que haviam sido violentamente criticados até então, tornaram-se uma força democrática (entre outras) com a qual era necessário aliar-se para derrotar o inimigo fascista. Os partidos estalinistas de outros países seguiram a virada de 180° de seu irmão mais velho, o PCUS, tornando-se assim os mais ardentes defensores dos interesses imperialistas da chamada "pátria socialista".

Em resumo, todos os países industriais sentiram uma poderosa necessidade de desenvolver a economia de guerra; não apenas a produção maciça de armamentos, mas também toda a infraestrutura necessária para esta produção. Todas as grandes potências, tanto "democráticas" quanto "fascistas", desenvolveram uma política semelhante de grandes obras públicas sob o controle do Estado e uma indústria de armamento inteiramente voltada para a preparação de uma segunda guerra mundial. A indústria se organizou em torno delas; impôs uma reorganização do trabalho, da quais o "taylorismo" foi uma das progênies mais escolhidas.

 

A esquerda e o controle do estado


Uma das principais características das políticas econômicas da "esquerda" foi o fortalecimento das medidas de intervenção do Estado para apoiar a economia em crise e o controle do Estado sobre vários setores da economia. Justificava tais medidas como sendo as "de uma 'economia controlada', de socialismo de Estado, amadurecendo as condições que permitiriam aos 'socialistas' a conquistarem 'pacificamente' gradualmente os principais postos do Estado" (Bilan n°3, janeiro de 1934). Tais medidas foram geralmente elogiadas por toda a socialdemocracia europeia. Elas foram retomadas no programa econômico da Frente Popular na França, conhecido como o plano Jouhaux. Na Espanha, o programa da Frente Popular continha uma ampla política de créditos agrários e um plano de grandes obras públicas para reabsorver os desempregados, bem como uma legislação trabalhista que fixava, por exemplo, um salário mínimo. Podemos ver seu real significado examinando um de seus principais modelos, o "New Deal", que foi desenvolvido nos Estados Unidos após a crise de 1929 pelos democratas sob Roosevelt. Também analisando uma das materializações teóricas mais desenvolvidas deste "Socialismo de Estado", o "Plan de Travail" do socialista belga Henri De Man.

O "New Deal", criado nos Estados Unidos em 1932, era um plano de reconstrução econômica e de "paz social". A intervenção do governo teve como objetivo restabelecer o equilíbrio do sistema bancário e reativar o mercado financeiro, realizar grandes obras públicas (a construção de barragens pela Autoridade do Vale do Tennessee data deste período) e lançar certos programas sociais (sistema de pensão, seguro-desemprego, etc.). O papel da nova agência federal, a National Recovery Administration [Administração de Recuperação Nacional] (NRA), era estabilizar preços e salários em cooperação com empregadores e sindicatos. Ela criou a Public Works Administration [Administração de Obras Públicas] (PWA) para administrar a política de grandes obras públicas.

O governo Roosevelt abriu o caminho - sem saber - para que os partidos de trabalhadores conquistassem as principais alavancas do poder estatal? Para Bilan, o oposto aconteceu: "A intensidade da crise econômica, juntamente com o desemprego e a miséria de milhões de pessoas, acumulou a ameaça de graves conflitos sociais que o capitalismo americano teve que dissipar ou sufocar por todos os meios ao seu alcance" (Bilan n°3, janeiro de 1934). Portanto, longe de serem medidas em benefício dos trabalhadores, as medidas de "paz social" eram ataques diretos contra a autonomia de classe do proletariado. "Roosevelt tinha como objetivo, não dirigir a classe trabalhadora para a oposição de classe, mas dissolvê-la dentro do regime capitalista, sob o controle do Estado capitalista. Assim, os conflitos sociais não poderiam mais surgir a partir da verdadeira luta (de classe) entre os trabalhadores e os patrões e seriam restritos a uma oposição entre a classe trabalhadora e o NRA, um órgão capitalista estatal. Assim, os trabalhadores deveriam desistir de qualquer iniciativa na luta e renunciar o seu destino ao seu inimigo" (Idem.).

Um dos principais arquitetos destas medidas de controle estatal e o homem que foi a inspiração por trás da maioria delas, foi Henri De Man. Ele foi o chefe do instituto do nuúcleo do POB e foi vice-presidente e a luz guia do partido desde 1933. Suas medidas foram postas em prática pelas Frentes Populares, bem como pelos regimes fascistas (Mussolini era um grande admirador seu). Para De Man, que havia feito um estudo detalhado do desenvolvimento industrial e social nos Estados Unidos e na Alemanha, os "velhos dogmas" tinham de ser abandonados. Para ele, a base da luta de classes era a sensação de inferioridade social dos trabalhadores. Assim, em vez de orientar o socialismo em torno da satisfação das necessidades materiais de uma classe (os trabalhadores), ele deveria ser direcionado para valores espirituais universais, tais como justiça, respeito pela personalidade humana e uma preocupação com o "interesse geral". Desta forma, as inevitáveis e irreconciliáveis contradições entre a classe trabalhadora e os capitalistas foram eliminadas. Não somente a revolução deve ser rejeitada, mas também o "velho reformismo", que se torna inaplicável em períodos de crise. Não adianta exigir um pedaço maior de bolo, este que está constantemente encolhendo. Um bolo novo e maior deve ser feito. Este era o objetivo do que ele chamou de "revolução construtiva". Dentro deste quadro, para o congresso de "Natal" do POB de 1933 ele desenvolveu seu "Plan de Travail", que esperava "reformas estruturais" do capitalismo:

  • a nacionalização dos bancos, que continuariam a existir, mas que venderiam parte de suas ações a uma instituição de crédito estatal e se submeteriam às orientações do plano econômico;
  • esta mesma instituição de crédito compraria algumas das ações dos grandes monopólios em certos setores industriais básicos (como o energético), de modo que estes se tornariam empresas mistas sob a propriedade conjunta dos capitalistas e do Estado;
  • além dessas empresas "associadas", um setor capitalista livre continuaria a existir, estimulado e apoiado pelo Estado;
  • os sindicatos estariam diretamente envolvidos na coordenação desta economia mista por meio do "controle dos trabalhadores", uma orientação que De Man defendeu com base na experiência das grandes fábricas nos EUA.


De que forma estas "reformas estruturais", exaltadas por De Man, levaram à defesa da luta da classe trabalhadora? Para Bilan, De Man queria "mostrar que a luta dos trabalhadores deve se restringir naturalmente a objetivos nacionais em termos de forma e conteúdo, que a socialização significava a nacionalização progressiva da economia capitalista ou a economia mista. Sob o pretexto da 'ação imediata', De Man pregou a adaptação nacional dos trabalhadores dentro da 'nação única e indivisível' e ofereceu isto como o refúgio supremo dos trabalhadores que haviam sido controlados pela reação capitalista". Em conclusão, "As reformas estruturais de H. De Man visam colocar a verdadeira luta dos trabalhadores - e este é seu único objetivo - no domínio do irreal. Elas excluem qualquer luta pela defesa dos interesses imediatos ou históricos do proletariado em nome de uma reforma estrutural que, em termos de sua concepção e seus meios, só pode ajudar a burguesia a fortalecer seu Estado de classe, reduzindo a classe trabalhadora à impotência". (Bilan n°4, fevereiro de 1934).

Mas Bilan foi além e situou a proposta do "Plano de Trabalho" no contexto do papel que a esquerda desempenhou no marco histórico do período. "O advento do fascismo na Alemanha encerrou um período decisivo de lutas dos trabalhadores. (...) A socialdemocracia, que foi um elemento essencial nestas derrotas, foi também um elemento na reforma orgânica da vida do capitalismo (...) Ela usou uma nova linguagem para continuar sua tarefa. Rejeitou o internacionalismo verbal, por não ser mais necessário, e passou a uma franca preparação ideológica dos trabalhadores para a defesa de 'sua nação'. (...) É aí que se encontra a verdadeira origem do plano do De Man. Este último foi uma tentativa concreta de sancionar, por meio de uma mobilização adequada, a derrota do internacionalismo revolucionário e a preparação ideológica para incorporar o proletariado na luta em torno do capitalismo rumo à guerra. É por isso que seu nacionalsocialismo tem o mesmo papel que o nacional-socialismo dos fascistas". (Bilan n°4, fevereiro de 1934).

A análise do New Deal e do Plano de De Man ilustra bem que estas medidas não vão de forma alguma no sentido de fortalecer a luta do proletariado contra o capitalismo. Pelo contrário, elas visam reduzir a classe trabalhadora à impotência e fazê-la se submeter às necessidades da defesa nacional. Como diz Bilan, o plano de De Man não pode de forma alguma ser distinguido do programa de controle estatal dos regimes fascistas e nazistas ou dos planos de cinco anos do estalinismo, que haviam sido implementados na URSS a partir de 1928 e que no início inspiraram os democratas nos EUA.

Estes tipos de medidas foram generalizadas porque correspondiam às necessidades do capitalismo decadente. Neste período, a tendência geral ao capitalismo de estado é uma das características dominantes da vida social. "Neste período, cada capital nacional, porque não pode expandir-se de forma irrestrita e confrontado com severas rivalidades imperialistas, é obrigado a organizar-se da forma mais eficiente possível, para que externamente possa competir economica e militarmente com seus rivais e lidar internamente com o agravamento crescente das contradições sociais. O único poder na sociedade que é capaz de cumprir estas tarefas é o Estado. Somente o Estado pode:

  • assumir o controle da economia nacional de forma centralizada e mitigar a concorrência interna que enfraquece a economia, a fim de fortalecer sua capacidade de manter uma face unida contra a concorrência no mercado mundial;
  • desenvolver a força militar necessária para a defesa de seus interesses diante do crescente conflito internacional;
  • finalmente, devido a um aparelho repressivo e burocrático cada vez mais pesado, reforçar a coesão interna de uma sociedade ameaçada de colapso através da crescente decomposição de sua base econômica, (...)" (Plataforma da ICC).


Na realidade, todos esses programas que visavam uma reorganização da produção nacional sob o controle do Estado foram, então, inteiramente voltados para a guerra econômica e para a preparação de outro massacre mundial (a economia de guerra). Eles correspondem perfeitamente à necessidade dos estados burgueses de sobreviverem dentro do capitalismo no período decadente. 


Vitória das Frentes Populares: "revolução social" em marcha?


Mas não seriam estas análises pessimistas varridas pelas greves maciças de maio-junho de 1936 na França e pelas medidas sociais tomadas pelo governo da Frente Popular, e pela "revolução espanhola" que começou em julho de 1936? Estes acontecimentos não confirmam, ao contrário, na prática, o acerto da abordagem das frentes "antifascista" ou "popular"? Quando se trata disso, não foram estas uma expressão concreta da "revolução social" em ação? Examinemos a realidade destes acontecimentos.


Maio-Junho de 1936 na França: os trabalhadores se mobilizaram por trás do Estado democrático


A grande onda de greves que se seguiu imediatamente à ascensão ao governo da Frente Popular após sua vitória eleitoral de 5 de maio de 1936 confirmaria os limites do movimento operário, marcado como foi por uma derrota na onda revolucionária e curvado sob o peso da contrarrevolução.

 

Os "ganhos" de 1936


No dia 7 de maio, uma onda de greves eclodiu na indústria aeronáutica, seguida pelas indústrias de engenharia e automobilística, acompanhada de ocupações espontâneas de fábricas. Apesar de sua combatividade, estas lutas foram um sinal de quão limitada era a capacidade dos trabalhadores de empreender o combate em seu próprio terreno de classe. Nos primeiros dias do movimento, a esquerda conseguiu disfarçar como "vitória dos trabalhadores" o descarrilamento da combatividade dos trabalhadores para o terreno do interesse nacional. É verdade que esta foi a primeira vez que as ocupações de fábrica ocorreram na França: foi também a primeira vez que alguém viu os trabalhadores cantando a Marselhesa junto com a Internacional, ou marchando atrás da bandeira vermelha junto com a tricolor nacional. O aparelho de controle do PC e dos sindicatos continuava a dominar a situação e conseguiu manter os trabalhadores fechados nas fábricas ao som calmante do acordeão, enquanto seu destino era resolvido no topo, nas negociações que iriam levar aos acordos de Matignon. A unidade certamente existia, mas era a do aparelho de controle da burguesia sobre a classe trabalhadora, não a da classe trabalhadora em si. Quando alguns poucos opositores se recusaram a entender que, uma vez assinados os acordos, era hora de voltar ao trabalho, a Humanité lhes explicou que "é necessário saber como parar uma greve... é até mesmo necessário saber como concordar com um compromisso" (Maurice Thorez, discurso de junho de 1936), e que "não devemos assustar nossos amigos radicais".

Durante o julgamento de Riom, realizado pelo regime de Vichy para punir os responsáveis pela "decadência moral da França", o próprio Léon Blum explicou como as ocupações da fábrica haviam sido parte da mobilização nacional: "os trabalhadores estavam lá como guardiães, como supervisores e também, em certo sentido, como co-proprietários. E do ponto de vista especial que lhe diz respeito, o fato de observar a comunidade de direitos e deveres em relação ao patrimônio nacional não leva a garantir e preparar sua defesa comum e unânime? (...) é assim que se cria para os trabalhadores, pouco a pouco, uma propriedade conjunta na pátria; é assim que se ensina a defender a pátria".

A esquerda conseguiu o que queria: levou a combatividade dos trabalhadores ao terreno estéril do nacionalismo, do interesse nacional. "A burguesia é obrigada a recorrer à Frente Popular para canalizar uma inevitável explosão da luta de classes em seu próprio benefício, particularmente na medida em que a Frente Popular aparece como a emanação da classe trabalhadora e não como a força capitalista que dissolveu o proletariado para mobilizá-lo para a guerra" (Bilan n°32 junho-julho de 1936).

Para acabar com qualquer resistência operária, os estalinistas usavam seus porretes contra aqueles que "se deixavam levar à realizar ações imprudentes" (M Thorez, 8 de junho de 1936) e o governo da Frente Popular chamou a polícia para abater os trabalhadores em Clichy em 1937. Ao espancar ou matar as últimas minorias recalcitrantes de trabalhadores, a burguesia conseguiu arrastar todo o proletariado francês para a defesa da nação.

Fundamentalmente, não havia nada no programa da Frente Popular que preocupasse a burguesia. No dia 16 de maio, Daladier, o presidente do Partido Radical, foi tranquilizador: "nenhum artigo do programa da Frente Popular contém nada que possa incomodar os legítimos interesses de qualquer cidadão, preocupar os investidores, ou prejudicar qualquer força de trabalho saudável da França. Não há dúvida de que nem mesmo foi lido por muitos dos que mais apaixonadamente lutaram contra ele" (L'Oeuvre, 16 de maio de 1936). No entanto, para inculcar sua ideologia antifascista e permanecer totalmente credível em seu papel de defensora da pátria e do Estado capitalista, a esquerda teve que distribuir algumas migalhas. Os acordos de Matignon e as pseudo-conquistas de 1936 tornaram possível apresentar a esquerda no poder como "uma grande vitória dos trabalhadores", para ganhar a confiança dos trabalhadores na Frente Popular e sua defesa do Estado burguês mesmo em tempo de guerra.

Este famoso acordo Matignon, assinado em 7 de junho de 1936 e celebrado pela CGT como "uma vitória sobre a pobreza", e que até hoje ainda é apresentado como um modelo de "reforma social", foi portanto a cenoura usada para vender o programa da Frente Popular aos trabalhadores. O que exatamente ele oferecia?

Sob a aparência de "concessões" à classe trabalhadora, tais como aumentos salariais, a semana de 40 horas e feriados remunerados, a burguesia assegurou acima de tudo a organização da produção sob a liderança de um estado "imparcial", como o líder da CGT Léon Jouhaux apontou: "(...) o início de uma nova era (...), a era das relações diretas entre as duas grandes forças econômicas organizadas do país (...) As decisões foram tomadas de forma totalmente independente, sob a égide do governo, este último desempenhando o papel de árbitro quando necessário, o que corresponde à sua função de representante do interesse geral" (discurso de rádio de 8 de junho de 1936). O objetivo era conseguir que os trabalhadores aceitassem aumentos sem precedentes na velocidade das filas através da introdução de novos métodos de organização do trabalho destinados a aumentar em dez vezes a produtividade por hora, especialmente na indústria de armamento. Isto significou a generalização do taylorismo, do funcionamento da linha de produção e a ditadura do cronômetro na fábrica.

Foi Léon Blum pessoalmente quem tirou o véu "social" que havia escondido as leis de 1936, em seu discurso no julgamento de Riom em 1942, que tinha a intenção de lançar a culpa da pesada derrota infligida ao exército francês pelos nazistas em 1940 à porta da Frente Popular e da semana de 40 horas: "O que está por trás da produtividade de hora em hora? (...) depende da boa coordenação e da adaptação dos movimentos do trabalhador à sua máquina; depende também da condição moral e física do trabalhador.

"Há toda uma escola de pensamento na América, a escola de Taylor e os engenheiros Bedeau, que você pode ver na inspeção da linha de fábrica, que realizaram estudos muito minuciosos dos métodos materiais de organização que maximizam a produtividade por hora das máquinas, sendo este precisamente seu objetivo. Mas há também a escola Gilbreth que estudou e pesquisou os dados sobre as condições físicas que permitirão ao trabalhador obter esta produtividade. O ponto essencial é limitar o cansaço do trabalhador (...) você não acha que toda nossa legislação social foi do tipo que melhorou esta condição moral e física do trabalhador: a jornada de trabalho mais curta, mais lazer, feriados pagos, a sensação de ter conquistado uma certa dignidade e igualdade, tudo isso foi pensado como elementos para maximizar a produtividade horária que o trabalhador poderia extrair da máquina".


Foi assim e por isso que as medidas "sociais" do governo da Frente Popular foram necessárias para adaptar e acalmar o proletariado aos novos métodos de produção destinados ao rápido rearmamento da nação antes da eclosão da guerra. Além disso, é notável que os feriados pagos, de uma forma ou de outra, foram concedidas ao mesmo tempo na maioria dos países desenvolvidos rumo à guerra e, portanto, impondo a sua força de trabalho os mesmos aumentos na velocidade de produção.

Em junho de 1936, inspirado pelos movimentos na França, uma greve dos estivadores eclodiu na Bélgica. Depois de primeiro tentar detê-la, os sindicatos reconheceram o movimento e o orientaram para exigências semelhantes às da Frente Popular na França: aumento dos salários, semana de 40 horas e uma semana de férias pagas. Em 15 de junho, o movimento se generalizou em direção a Borinage e às regiões de Liège e Limburg: 350.000 trabalhadores em todo o país estavam em greve. O principal resultado do movimento foi refinar o sistema de consulta social através da criação da conferência nacional do trabalho, onde patrões e sindicatos acordaram o plano nacional para otimizar a competitividade da indústria belga.

Uma vez terminadas as greves e atingido um aumento duradouro na produtividade por hora, restava apenas ao governo da Frente Popular retomar o que havia concedido. Os aumentos salariais foram consumidos pela inflação em questão de meses (os preços dos alimentos aumentaram 54% entre 1936 e 1938), a semana de 40 horas foi posta em questão pelo próprio Blum um ano depois, e completamente esquecida quando o governo Radical de Daladier em 1938 acelerou toda a máquina econômica em preparação para a guerra: abolindo os pagamentos extras para as primeiras 250 horas extras, pondo fim aos contratos de trabalho que proibiam o trabalho à peça e sancionando todos aqueles que recusaram as horas extras na causa da defesa nacional. "Nas fábricas que trabalham para a defesa nacional, sempre foram concedidas dispensas na semana legal de 40 horas. Na maioria das outras coisas, em 1938 obtive o acordo da organização dos trabalhadores para uma semana de 45 horas nas fábricas que trabalham direta ou indiretamente para a defesa nacional" (Blum no julgamento do Riom). Finalmente, com o apoio do governo Blum e o acordo dos sindicatos, os patrões recuperaram seus feriados remunerados. O Natal e o Ano Novo foram incorporados ao período de feriados pagos, e isto foi seguido pela abolição de todos os feriados públicos existentes: o total somou até 80 horas extras de trabalho - o que correspondeu exatamente às duas semanas de feriados pagos concedidas pela Frente Popular.

Quanto ao reconhecimento dos delegados sindicais e dos contratos de trabalho, isso representou nada mais do que o fortalecimento do domínio dos sindicatos sobre os trabalhadores, ampliando sua presença nas fábricas. Para isso, Léon Jouhaux, o socialista e líder sindical, explicou nestes termos: "a organização dos trabalhadores [isto é, os sindicatos] querem a paz social. Em primeiro lugar para não envergonhar o governo da Frente Popular e, em segundo lugar, para não dificultar o rearmamento". Quando a burguesia se prepara para a guerra, o Estado deve controlar toda a sociedade de modo a direcionar toda sua energia para este fim sangrento. E, nas fábricas, são os sindicatos que permitem ao Estado policiar a força de trabalho.

Se houve vitória, foi a sinistra vitória do capital preparando sua única "solução" para a crise: a guerra imperialista.


A preparação para a guerra


Desde o início da Frente Popular na França, com seu slogan "paz, pão, liberdade", seu antifascismo e pacifismo, a defesa dos interesses imperialistas da burguesia francesa foi misturada com ilusões democráticas. Dentro deste quadro, a esquerda explorou habilmente os preparativos internacionais para a guerra para demonstrar que o "perigo fascista está em nossa fronteira", organizando, por exemplo, toda uma campanha sobre a agressão italiana na Etiópia. De forma ainda mais clara, a SFIO e o PC desempenharam papéis diferentes em relação à Guerra Civil espanhola: enquanto a SFIO se recusou a intervir na Espanha em nome do pacifismo, o PC pediu a intervenção em nome da "luta antifascista".

Se havia uma coisa pela qual o capital francês podia agradecer ao governo da Frente Popular, era sua preparação para a guerra.

Em primeiro lugar, a esquerda pôde usar a enorme massa de trabalhadores em greve como meio de pressão contra as forças mais retrógradas da burguesia, impondo as medidas necessárias para salvaguardar o capital nacional diante da crise e fazendo com que tudo parecesse uma vitória para a classe trabalhadora;

Em segundo lugar, a Frente Popular lançou um programa de rearmamento através da nacionalização da indústria bélica sobre o qual Blum deveria declarar durante o julgamento do Riom: "Propus um grande projeto fiscal... cujo objetivo era dirigir todas as forças da nação para o rearmamento e fazer deste intenso esforço de rearmamento uma condição para uma recuperação industrial e econômica definitiva. Isso deixou objetivamente para trás a economia liberal, para substituí-la por uma economia de guerra".

E de fato, a esquerda estava ciente de que a guerra estava chegando: foi a esquerda que impulsionou a entente franco-russa, e que denunciou mais violentamente as tendências a Munique da burguesia francesa. Suas "soluções" para a crise não eram diferentes daquelas da Alemanha nazista, da América do New Deal ou da Rússia estalinista: o desenvolvimento do setor improdutivo da indústria de armamento. Como Bilan assinalou: "não é por acaso que estas grandes greves eclodiram na indústria da engenharia, a começar pelas fábricas de aeronaves (...) estes setores estão trabalhando a todo vapor, graças à política de rearmamento que está sendo seguida em todos os países. Este fato é sentido pelos trabalhadores e eles foram forçados a lançar seu movimento para reduzir o ritmo embrutecedor da linha de produção".

Finalmente e acima de tudo, a Frente Popular levou a classe trabalhadora ao pior terreno possível para ela, o de sua derrota esmagadora: o nacionalismo.

Graças à histeria patriótica desenvolvida pela esquerda através do antifascismo, o proletariado foi levado a defender uma fração da burguesia contra outra, a democrata contra a fascista, e um estado contra outro, a França contra a Alemanha. O PC francês declarou: "chegou o momento de colocar em prática o armamento generalizado do povo, de empreender as reformas fundamentais que aumentarão dez vezes o poder militar e técnico do país. O exército do povo, o exército de trabalhadores e camponeses, bem ensinado e bem dirigido por oficiais fiéis à República". Em nome deste "ideal" os "comunistas" celebraram o nome de Joana D'Arc, "a grande libertadora da França", e o PC apelou para uma frente francesa com o mesmo slogan utilizado pela extrema-direita apenas alguns anos antes: "A França para os franceses"! Sob o pretexto de defender as liberdades democráticas ameaçadas pelo fascismo, o proletariado foi levado a aceitar os sacrifícios necessários para a saúde do capital francês, e finalmente a sacrificar suas vidas no massacre da Segunda Guerra Mundial.

A Frente Popular encontrou aliados efetivos em sua tarefa de executor entre seus críticos de esquerda: O Parti Socialiste Ouvrier et Paysan de Maurice Pivert ("Partido Socialista dos Trabalhadores e Camponeses", PSOP), os trotskistas e os anarquistas. Todos desempenharam o papel de promotores entre os elementos mais combativos da classe e estavam constantemente se fazendo passar como "os mais radicais", embora a única coisa radical neles fosse a mistificação que eles vendiam. O Jeunesses Socialistes de la Seine ("Juventude Socialista do Sena"), ou Trotskistas como Craipeau e Roux, praticaram o entrismo, e foram os primeiros a defender e organizar a milícia antifascista; os amigos de Pivert dentro do PSOP foram os mais virulentos na crítica à "covardia" de Munique. Todos foram unânimes na defesa da República Espanhola ao lado dos antifascistas e todos participariam mais tarde do banho de sangue interimperialista como parte da Resistência. Todos fizeram a sua parte em defesa da capital nacional, todos eles mereceram bem da pátria!


Espanha, julho de 1936: o proletariado enviado para o abatedouro


Graças à formação da Frente Popular, e sua vitória nas eleições de fevereiro de 1936, a burguesia injetou a classe trabalhadora com o veneno da "revolução democrática" e conseguiu vincular os trabalhadores à defesa do Estado burguês "democrático". De fato, quando uma nova onda de greves irrompeu imediatamente após as eleições, ela foi retida e sabotada pela esquerda e pelos anarquistas porque "entrar greve é fazer o jogo dos patrões e da direita". Isto encontraria uma expressão concreta e trágica durante o Pronunciamento militar de 19 de julho de 1936. Os trabalhadores reagiram imediatamente ao golpe de estado entrando em greve, ocupando quartéis e desarmando os soldados, contra as ordens do governo que exigia calma. Onde quer que os apelos do governo fossem respeitados ("o governo comanda, a Frente Popular obedece"), os militares assumiram o controle e uma repressão sangrenta se seguia.


"A luta armada na frente imperialista é o túmulo do proletariado" (Bilan n°34)


Entretanto, a ilusão da "revolução espanhola" foi reforçada pelo suposto desaparecimento do Estado capitalista republicano e pela inexistência da burguesia, todos eles escondidos atrás do pseudo-"governo dos trabalhadores" e ainda mais outras organizações de esquerda como o "Comitê Central das Milícias Antifascistas" ou o "Conselho Central da Economia" que mantiveram a ilusão do duplo poder. Em nome desta "mudança revolucionária", tão facilmente conquistada, a burguesia exigiu e obteve dos trabalhadores a unidade nacional, com o único objetivo de derrotar Franco. Entretanto, "A alternativa não é entre Azaña e Franco, mas entre a burguesia e o proletariado; qualquer um dos dois parceiros que for vencido, o verdadeiro perdedor será o proletariado que pagará o preço de uma vitória de Azaña ou Franco" (Bilan n°33, julho-agosto de 1936).

Rapidamente, o governo republicano da Frente Popular, com a ajuda do CNT e do POUM, transformou a reação dos trabalhadores ao golpe de Estado franquista em uma luta antifascista e manobrou para substituir a batalha social, econômica e política contra todas as forças da burguesia por um confronto militar nas trincheiras apenas contra Franco, enquanto os trabalhadores podiam pegar armas apenas para serem mortos na frente militar da "guerra civil", longe de seu terreno de classe. "Poderíamos supor que o armamento dos trabalhadores tinha uma virtude congênita do ponto de vista político e que, uma vez armados materialmente, os trabalhadores podiam se livrar de seus líderes traiçoeiros e dar a sua luta uma forma superior. Nada poderia estar mais longe da verdade. Os trabalhadores que a Frente Popular consegue incorporar à burguesia, já que lutam sob a liderança e pela vitória de uma fração burguesa, são assim impedidos até mesmo de evoluir para posições de classe" (Bilan n°33, julho-agosto de 1936).

Além disso, não havia nada de "civil" nesta guerra. Ela rapidamente se tornou um conflito puramente interimperialista e um prelúdio para a Segunda Guerra Mundial, conforme as democracias e a Rússia tomaram o lado dos republicanos enquanto a Itália e a Alemanha tomaram o lado dos falangistas. "As fronteiras de classe, que por si só poderiam ter desmantelado os regimentos de Franco e renovado a confiança dos camponeses aterrorizados pela direita, foram substituídas por outras fronteiras especificamente capitalistas. A unidade nacional foi alcançada para a matança imperialista, região contra região, cidade contra cidade na Espanha e, por extensão, Estado contra Estado nos dois blocos democrático e fascista. Se a guerra mundial já começou ou não, a mobilização do proletariado espanhol e internacional está agora pronta para a matança mútua sob a bandeira imperialista do fascismo e do antifascismo" (Bilan n°34, agosto-setembro de 1936).


As ilusões de uma "revolução social"


A guerra na Espanha ainda desenvolveu outro mito. Ao substituir a guerra entre "democracia" e "fascismo" pela guerra de classes do proletariado contra o capitalismo, a Frente Popular desfigurou o próprio conteúdo da revolução: seu objetivo central não é mais a destruição do estado burguês através da tomada do poder político pelo proletariado, mas as supostas medidas de socialização e gestão dos trabalhadores nas fábricas. São sobretudo os anarquistas e certas tendências que se identificam com o conselhismo que exaltaram este mito, chegando ao ponto de afirmar que nesta Espanha republicana, antifascista e estalinista, a conquista de posições socialistas foi muito mais longe do que foi possível na revolução de outubro na Rússia.

Sem desenvolver esta questão aqui, deve-se dizer que estas medidas, mesmo que tivessem sido mais radicais do que foram na realidade, não teriam mudado nada da natureza fundamentalmente contrarrevolucionária dos acontecimentos na Espanha. Tanto para a burguesia quanto para o proletariado, o ponto central da revolução não pode ser outra coisa senão a destruição ou a preservação do Estado capitalista.

O capitalismo não só pode tolerar perfeitamente, temporariamente, medidas de autogestão ou a chamada socialização da terra (a criação de cooperativas), enquanto espera a oportunidade de restaurar a ordem na hora certa, mas pode até mesmo encorajá-las como meio de mistificação, canalizando a energia do proletariado em conquistas ilusórias e longe do objetivo central que está em jogo na revolução: a destruição do poder capitalista e seu estado.

A exaltação das chamadas medidas sociais como ponto alto da revolução nada mais é do que radicalismo verbal, o que afasta o proletariado de sua luta revolucionária contra o Estado e camufla sua mobilização como carne de canhão a serviço da burguesia. Tendo abandonado seu terreno de classe, o proletariado não só seria alistado nas milícias anarquistas e POUMistas antifascistas e enviado para o massacre no fronte, como também seria submetido a uma exploração cada vez mais brutal e a cada vez mais sacrifícios em nome da produção bélica e da economia bélica antifascista: reduções salariais, inflação, racionamento, militarização do trabalho e prolongamento da jornada de trabalho. E quando o proletariado se levantou em desespero, em Barcelona em maio de 1937, a Frente Popular com o Generalitat de Barcelona, e com a participação ativa dos anarquistas, reprimiu abertamente a classe trabalhadora da cidade, enquanto os franquistas interromperam as hostilidades até que a esquerda tivesse esmagado a revolta dos trabalhadores.

Dos socialdemocratas aos esquerdistas, e mesmo incluindo certas frações da direita, todos concordam que a ascensão da esquerda ao governo em 1936 na França e na Espanha (mas também, sem dúvida de maneira menos espetacular, em outros países como Suécia e Bélgica) foi uma grande vitória para a classe trabalhadora e um sinal de sua militância e força durante os anos 30. Contra estas manipulações ideológicas, os revolucionários de hoje, como seus antecessores de Bilan, devem afirmar alto e claro que as Frentes Populares e suas chamadas "revoluções sociais" não foram nada além de uma mistificação. A chegada da esquerda ao poder neste período, ao contrário, expressou a profundidade da derrota do proletariado mundial e tornou possível o alistamento da classe trabalhadora na França e na Espanha na guerra imperialista que a burguesia inteira preparava, alistando-os en masse sob as bandeiras da ideologia antifascista.

"E eu pensava, acima de tudo, que era uma grande conquista e um grande serviço aquele que eu havia prestado: ter conduzido estas massas e esta elite da classe trabalhadora de volta aos seus sentimentos de amor e dever para com a pátria" (declaração de Blum no julgamento do Riom).

Para a classe operária, 1936 marca um dos períodos mais sombrios da contrarrevolução, quando as piores derrotas da classe operária lhe foram apresentadas como vitórias; quando a burguesia podia, quase sem oposição, impor ao proletariado ainda cambaleante da derrota da onda revolucionária iniciada em 1917, sua própria "solução" para a crise: a guerra.

 

 

Jos

[1] Ver B Kermoal : “Colère ouvrière à la veille du Front populaire”, Le Monde Diplomatique June 2006. 

[2] Communist Party of the Soviet Union [Partido Comunista da União Soviética].