Apresentação
Essa publicação tem o objetivo de manter viva a memória histórica das revoltas que eclodiram em um período de tempo relativamente próximo (e até mesmo simultâneo) em diferentes partes do mundo entre os anos de 2018 a 2020.
Diante da efervescência dos acontecimentos, minorias revolucionárias do proletariado de distintas regiões interviram tanto prática, quanto teoricamente nessas lutas, legando uma série de textos com avaliações e proposições para o movimento que se formava. Fizemos uma seleção dessas publicações (geralmente em inglês e espanhol), traduzindo-as ao português para ampliar o alcance desses textos subversivos.
O movimento de revoltas que vamos abordar recebeu seus impulsos iniciais ainda em 2018, como no caso dos “gilets jaunes” (coletes amarelos) na França e a luta contra a reforma da previdência na Nicarágua e na Rússia, mas será em 2019 que atinge seu ponto culminante, expressando de modo mais significativo o conteúdo geral dessas lutas. A convergência e intensificação das revoltas sinalizaram uma reemergência global da luta proletária em sua fase de luta difusa e espontânea, com ações subversivas que se tornaram exemplares para a experiência contemporânea da luta de classes. Nas situações mais avançadas, isso resultou em um franco processo de ruptura das amarras conciliadoras, embora se reconheça os seus limites (que serão abordados nessa publicação, no sentido de identificá-los e propor sua superação).
Os materiais que traduzimos e buscamos difundir expressam de alguma maneira o sentido internacional das lutas e também contribuem com avaliações críticas de situações específicas. Nesse sentido, a primeira parte de nossa publicação consistirá de análises mais gerais que abordam as lutas em seu conjunto, enquanto que a segunda parte focará nas expressões locais das revoltas, analisando os dilemas que enfrentam o proletariado nas regiões onde se insurgiu. Pensamos essa publicação (e mesmo essa introdução) como um esforço crítico no sentido de compreender a luta de classes contemporânea, enfatizando o caráter interdependente da comunidade de luta proletária.
Sumário
- Introdução;
- Dez notas acerca da perspectiva revolucionária (Fevereiro de 2019) - Barbaria;
- A Invasão Alienígena (Novembro de 2019) - Barbaria;
- Revolta Internacional contra o Capitalismo Mundial (Novembro de 2019) - Proletarios Internacionalistas;
- Onda mundial de revoltas e situação revolucionária (31 de Dezembro de 2019) - Barbaria;
- Contra a pandemia do capital: Revolução Social! (Abril de 2020) - Proletarios internacionalistas;
- O contágio da revolta se espalha: lutas em todos os lugares! (28 de junho de 2020) - Proletarios Internacionalistas;
- Iraque, de um motim a uma reforma impossível 2018-2019 (novembro de 2019) - Tristan Leoni;
- Segunda parte: 2019, reforma política ou guerra civil?
- Não somente arde Paris... (Maio de 2019) - Proletarios Internacionalistas;
- Revolta no Equador (novembro de 2019) - La Oveja Negra;
- CONVENÇÃO CONSTITUINTE OU ASSEMBLÉIAS TERRITORIAIS AUTÔNOMAS? (dezembro de 2019) - Vamos Hacia La Vida;
- NOTAS SOBRE A REVOLUÇÃO QUE COMEÇA (fevereiro de 2020) - Vamos Hacia La Vida;
- Continua na segunda parte
Introdução
Em nossa avaliação, a onda de revoltas que se espalhou rapidamente ao redor do mundo pode ser compreendida como uma reação generalizada diante de uma década marcada pela deterioração global das condições de vida do proletariado em função da crise de 2008 e das medidas adotadas como modo de recuperação da mesma. As reformas pós-crise geralmente consistiram de políticas de ajuste fiscal com base nas diretrizes do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial, mesmo quando os governos que as adotavam fossem de esquerda (a esquerda do Capital).
Podemos constatar essa conexão global através de dados do Institute for Economics and Peace (IEP)[1], que demonstram que o número de manifestações violentas vem aumentando desde 2008 (em 61 países). De 2010 em diante, o número de conflitos em todo o mundo aumentou em 88%. No total, ocorreu globalmente um aumento de 244% em revoltas, greves gerais e manifestações contra governos entre 2011 e 2019[2].
A primeira reação à crise de 2008 ocorreu através de uma primeira onda internacional de revoltas, que passou pela “primavera árabe” de 2011-12, com levantamentos ao norte da África, em Magreb, e no Oriente Médio, alcançando depois a África Subsaariana e inspirando movimentos no Ocidente (“Indignados” na Europa, “Occupy Wall Street” nos EUA, as revoltas operárias de 2011 no Brasil assim como os protestos de 2013).
No entanto, essa onda de lutas foi paulatinamente assimilada aos quadros da institucionalidade burguesa de diversas formas: a derrubada das ditaduras do norte africano ao Oriente Médio foi enquadrada ao integralismo democrático para conter a revolta proletária nos limites de um mero movimento cívico (e disso se seguiu uma série de políticas neoliberais como reação); os “Indignados” foram cooptados pela farsa eleitoral do “Podemos” na Espanha e pelo “Syriza” na Grécia, desfigurando a luta proletária com políticas de conciliação de classes; as revoltas brasileiras continuaram até as grandes manifestações de 2013 que foram traídas pelo “Movimento Passe Livre” (MPL) em negociações com o então governo Dilma (que se seguiram pela mobilização das forças repressivas para barrar o movimento “não vai ter copa”, aprovar a Lei Antiterrorismo e, finalmente, abrir o caminho para o movimento reacionário, inicialmente financiado pela FIESP). Da mesma forma, buscou-se cooptar o Occupy nos EUA para uma luta meramente contra a “financeirização” do Capital (e não contra o capitalismo em sua totalidade), mas a revolta tinha continuado, apesar disso, com a rebelião contra a violência policial em ocasião dos assassinatos de Mike Brow e Eric Garner em 2014. No entanto, também foram assimilados após o “primeiro presidente negro dos EUA” (Obama) exigir uma “resposta construtiva” para os tumultos em Ferguson, onde a polícia reprimiu com violência os protestos ao mesmo tempo em que o movimento negro colaborava institucionalmente na mesa de negociações.
Não obstante essa primeira assimilação, um novo ciclo de lutas se formou na segunda metade da década e teve seu ponto culminante em 2019. Dessa vez os disparadores imediatos dos movimentos estavam cada vez mais ligados entre si e associados com questões econômicas que atingiam principalmente os proletários: alta nos preços dos combustíveis (Haiti, Equador), dos alimentos básicos (Sudão), reformas previdenciárias (Rússia, Nicarágua, em 2018), dentre outras formas de aumento do custo de se viver no capitalismo.
Para se ter noção da magnitude e extensão dessas revoltas, considere essa visão panorâmica de 2019: no Haiti, dezenas de pessoas morreram (entre meados de setembro até o ano seguinte) em protestos pela renúncia do presidente Jovenel Moïse, motivados principalmente pela escassez de combustível. No Equador, o país ficou paralisado por quase duas semanas em meio a protestos intensos após o cancelamento dos subsídios aos combustíveis. No Chile, uma onda de manifestações violentas contra as desigualdades socioeconômicas deixaram mais de vinte mortos e mais de 2.000 feridos. Na Bolívia, ocorreu o cancelamento da reeleição de Evo Morales, após quatro semanas de protestos que causaram dezenas de mortes. Na Colômbia, o governo de Iván Duque também enfrentou uma série de protestos, marcados por três greves nacionais e manifestações em massa nas ruas. No Sudão, Omar Al Bashir, que esteve no poder durante 30 anos, foi derrubado pelo Exército após quatro meses de revolta social desencadeada pela triplicação do preço do pão (em agosto, o país passou a ser governado por um Conselho de Transição e isso desencadeou novas manifestações contra o então regime militar). No Iraque, um protesto social contra a corrupção, o desemprego e o declínio dos serviços públicos começou em 1º de outubro, até se transformar em uma crise política para o regime (no início de dezembro, mais de 420 pessoas morreram nos protestos e milhares ficaram feridas, a maioria manifestantes). No Líbano, o anúncio, em 17 de outubro, de um imposto – posteriormente suspenso – em chamadas feitas pelo WhatsApp provocou uma forte reação popular, ocasionando a demissão do primeiro-ministro, Saad Hariri. Em novembro, o Irã é palco de vários dias de agitação, após o aumento no preço da gasolina (as autoridades relataram cinco mortes, mas de acordo com a Anistia Internacional, foram mais de 200)[3].
Diante desse aumento contínuo na instabilidade política, representantes do Capital começaram a soar o alerta. O ex-economista-chefe do FMI, Raghuram Rajan, afirmou em março de 2019 que “o capitalismo está sob grave ameaça porque não conseguiu atender às necessidades de muitos, e quando isso acontece, há muitas revoltas contra o capitalismo”, durante o programa Today da BBC Radio[4]. Ele também considera necessário estar “sempre alerta” diante da iminência de crises para evitar que “o pior aconteça”. Rajan acredita que a “democracia de livre mercado” poderia ser uma solução e trazer “equilíbrio”.
Como podemos ver, os ideólogos do capitalismo possuem consciência de que as revoltas expressam um antagonismo diante da privação de necessidades que o sistema impõe ao proletariado. No entanto, eles se colocam como defensores do sistema, buscando preservar a “ordem democrática” contra os distúrbios sociais e também tentam oferecer “soluções” para as crises econômicas, pois imaginam que esses eventos resultam de “interferências” no “bom funcionamento” da economia e da política. Mas tanto as condições de vida cada vez mais precárias quanto as crises são inerentes ao próprio capitalismo e resultam de suas contradições internas. É com base nessa perspectiva que buscamos traçar o fio histórico que conecta essas lutas e demonstrar o caráter de classes delas.
Muitos falaram de um “despertar” diante do “neoliberalismo” e em prol de outra forma de gerir o capitalismo, apenas reformando seu Estado. É contra essa narrativa que também nos posicionamos. Com efeito, como demonstrado por Robert Kurz [5], o neoliberalismo não passou de uma resposta política subjetiva para um problema objetivo do capitalismo, pois na medida em que os investimentos se tornavam cada vez menos financiáveis com os lucros correntes devido aos custos progressivamente superiores do uso do capital constante acumulado (máquinas, etc.), foi necessário uma expansão do sistema de crédito a todos os níveis (para empresas e Estados). Nesse sentido, a desregulamentação do mercado financeiro foi um imperativo histórico do sistema (não o resultado da manipulação voluntária de governos). Em seguida as dívidas se transformaram em bolhas (de ações e imobiliárias). Tudo isso culminou na crise de 2008, que marcou a ruptura da sustentabilidade dessa financeirização. Assim, a crise é o resultado imanente da “contradição em processo” da acumulação de capital e não um “erro” dos financistas, seus “juros exorbitantes” e especulações. Os empréstimos do FMI e as exigências de uma política fiscal de austeridade para controlar os défices públicos, o desemprego, o rebaixamento dos salários, a inflação, dentre outras coisas, são paliativos para assegurar a manutenção do capitalismo.
No cenário brasileiro, as consequências da crise de 2008 chegaram mais tarde do que em outros países devido ao superciclo de commodities que caracterizou o período de 2001 até 2014, acabando com a recessão da economia brasileira. É na esteira desses acontecimentos e na tentativa de recuperação da crise, para recompor as taxas de lucro pelo barateamento da força de trabalho, que podemos compreender os cortes realizados no governo de Dilma e subsequentes.
Como forma de mostrar seu compromisso com o chamado “Ajuste Fiscal”, Dilma colocou Joaquim Levy (representante do capital financeiro) a cargo do Ministério dasFinanças em seu segundo mandato. É assim que, de modo a manter o crescimento da economia nacional e a possibilidade de pagamento da dívida externa, foram sendo demandadas uma série de cortes, como na Educação, que no ano de 2015 teve um corte de R$10,5bi[6], e em auxílios[7].
Contudo, os desentendimentos do governo que provocaram a saída de Levy, que representava um “bastião de estabilidade” para o mercado financeiro e era considerado a causa da “manutenção do grau de investimento do Brasil” [8], ao final de 2015 foi considerado um alerta para frações da burguesia, em especial a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP), um sinal de hesitação de Dilma em passar todas as reformas necessárias. Nesse sentido, o impeachment que se seguiu foi tão somente a continuidade desse processo, lá onde a Dilma havia se tornado apenas mais um obstáculo para o ajuste fiscal necessário ao sistema.
As reformas que foram os gatilhos imediatos das revoltas de 2018, 2019 e 2020 (como as mudanças em leis trabalhistas, na seguridade social, etc.) são medidas congruentes com as necessidades de recuperação e reprodução do capitalismo. Essas mudanças continuarão ocorrendo a despeito das falsas polarizações que a burguesia busca criar (“esquerda” x “direita”, “entreguistas” x “nacionalistas”, etc), pois são as condições econômicas que as determinam (problema objetivo) e não as mudanças governamentais que apenas administram a situação (resposta subjetiva). O assalto às nossas vidas para manter a reprodução desse modo de produção será cada vez mais violento, assim como serão mais intensas as respostas que surgem da classe explorada cada vez que se insurge contra a espoliação capitalista.
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Não obstante, sem um meio próprio de articulação e difusão dessas lutas, o proletariado permanecerá à mercê de think tanks e outras agências de informações da burguesia (com seus jornalistas, “formadores de opinião”, etc.) que ocultam a razão estrutural dessas “explosões sociais” através das diversas ideologias mobilizadas para impedir a radicalização e a consciência de classe (por exemplo: as formas identitárias de distorcer a luta de classes em frações étnicas, de gênero, etc.). Neste sentido, podemos elencar algumas formas de apreensão burguesa dessas lutas[9]:
1. Ocultação: essa tática é a mais simples e não exige muita explicação, consiste simplesmente em silenciar notícias de uma revolta até ela cessar, geralmente se valendo de “polêmicas” e “escândalos” morais inflados pelo sensacionalismo para abafarem os tumultos sociais;
2. Ideologia economicista: outra forma de ideologia burguesa consiste na identificação dessas lutas como simples revoltas “economicistas”, sobrevalorizando os disparadores imediatos dos conflitos: o aumento da passagem, o preço da gasolina, etc., como se nós estivéssemos lutando “apenas por vinte centavos” e não contra todo um sistema que provoca a deterioração geral das nossas condições de vida (mesmo que, em um primeiro momento, nossa luta não seja autoconsciente de seus motivos reais, nos tornando suscetíveis ao controle ideológico burguês na ausência de uma direção revolucionária);
3. Ideologia da “crise institucional” (instabilidade): modo de classificação das lutas como meras situações de instabilidade social que correspondem a crises institucionais ou ao próprio regime político. Nesse caso, as revoltas são apreendidas e apresentadas como algo “atípico”, uma “anomalia” no “bom” funcionamento dessa ordem social putrefacta. Assim, contra a noção de que os levantes proletários são uma “anomalia”, é preciso avançar no sentido de demonstrar que o ataque contra nossas necessidades mais básicas é imperativo às necessidades de acumulação do Capital e nossa insurgência diante disso surge de pequenos estopins que, tão logo acendam o pavio histórico que nos une como classe, tornam-se grandes explosões sociais;
4. Isolamento nacional: a mídia burguesa também realiza uma distorção, conscientemente ou não, que faz com que aquilo que ocorre “lá” pareça diferente do que ocorre “aqui”, como se as “economias nacionais” fossem independentes do “mercado internacional”, como se o capitalismo não fosse um sistema mundial integrado e a “coincidência” das lutas não tivessem origens comuns. Assim, fala-se, por exemplo, em “instabilidade política e econômica do Líbano” no lugar de enfatizar que essa situação deriva necessariamente das condições globais do capitalismo. É preciso entender que nossa luta em qualquer canto do mundo não “se torna” internacional, mas se assume, pois se nossa condição é mundial é lógico também que nossa luta local não é senão uma expressão imediata da oposição global contra a precarização de nossas condições de vida;
5. Polarização burguesa nacional: situação em que as lutas são taxadas como “revoltas da oposição”: uma oposição meramente política contra um líder em particular (quando essa figura pública se tornou excessivamente impopular), uma oposição entre políticas econômicas distintas que representam frações diferentes do capital, como os “neoliberais” contra os “desenvolvimentistas”, uma oposição entre moralidades distintas para diferentes setores da burguesia, como os “conservadores” e seus “valores tradicionais” (geralmente ruralistas) contra os “progressistas” e seus “valores liberais” (geralmente associados com grandes conglomerados urbanos), ou mesmo uma oposição entre regimes burgueses distintos como “militar” e “democrático de direito”. Essas polarizações burguesas buscam manter o proletariado separado de seus interesses de classe próprios e desorganizado de sua luta autônoma, enquadrando-o em frentes que representam os interesses de diferentes frações da burguesia de um país.
6. Polarização burguesa internacional: Essa distorção consiste em enquadrar as revoltas nos interesses de frações da burguesia de distintos campos geopolíticos. É aqui que podemos situar as práticas dos imperialistas e dos supostos “anti- imperialistas”, na medida em que polarizam as lutas proletárias em uma “geopolítica burguesa”, por exemplo: quando dizem que revoltas proletárias em países não alinhados ao “Ocidente” são simplesmente “guerras híbridas”[10] contra a “soberania nacional” desse ou daquele país ou, do ponto de vista “Ocidental”, que essas revoltas são “em prol da democracia”. Uma vez enquadrados nessa polarização, nossa classe é chamada a perecer em combate mútuo em prol dos interesses distintos de frações burguesas rivais.
Em suma, consideramos que essa é uma das armas centrais da contrarrevolução: negar qualquer conexão internacional entre as revoltas a partir de um conteúdo proletário e independente, negar qualquer capacidade de autonomia do proletariado e ainda torná-lo bucha de canhão de uma ou outra fração burguesa em seus conflitos imperialistas ou em conflitos de distintas frações capitalistas no interior de um mesmo Estado nacional.
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As primeiras ondas contestatórias que decorreram da crise de 2008 foram polarizadas em alternativas burguesas e derrotadas em função desse enquadramento (“democracia” x “ditadura”; “neoliberal” x “desenvolvimentismo”; “OTAN” x “soberania nacional”, etc.). E embora a simultaneidade das revoltas aumentem cada vez mais, nem por isso haverá uma mudança de caráter qualitativo. Ou seja, embora a simultaneidade internacional das revoltas aumente em quantidade, esta não se traduz numa conexão real entre elas, na medida em que não existem grandes demonstrações de internacionalismo ou solidariedade internacional efetiva, assim como não dispomos de uma direção revolucionária internacional.
Portanto, consideramos que a superação da mídia burguesa (como pretensão do “monopólio das true news”), é uma das condições necessárias, embora não a única, para que essa mudança qualitativa ocorra. A necessidade de superação da mídia burguesa como meio de divulgação de nossas lutas impõe:
1. A manutenção de contato entre as minorias revolucionárias ativas em diferentes regiões;
2. A criação de um meio de propaganda internacional que funcione através dessa articulação, realizando a tradução de materiais, balanço das diferentes lutas e práticas em conjunto internacionalmente.
Como mencionamos, a burguesia está plenamente consciente de certas tendências nesse sistema e está ciente das diversas armas que pode utilizar para combater e canalizar contestações que ameacem seu domínio. Não é à toa que John Authers, no portal Bloomberg, fornecedor de serviços de informação financeira, chegou a comentar, 4 dias após o estallido chileno, que um dos motivos do descontentamento social ter estourado no Chile foi que: “[O] Chile está em falta de um movimento populista, ou um líder político prudente. Tal figura poderia ter sido capaz de usar a raiva pública para seus próprios propósitos, mas também teria tido uma melhor chance de controlá-la. […] Ou seja, embora os populistas carismáticos da América Latina tendem, compreensivelmente, a fazer líderes ocidentais nervosos, o Chile mostra que eles podem exercer uma função vital”[11]. O que é Boric atualmente se não essa cartada da burguesia chilena de uma suposta renovação política? Boric é “contra tudo que está aí” à moda chilena, usado para canalizar as contestações reais para os meios institucionais, usando como recurso a mobilização do discurso antifascista.
É com base na necessidade de uma exposição proletária e revolucionária das nossas lutas que desenvolvemos essa publicação, com a tradução e difusão de um material legado por distintas minorias revolucionárias de nossa classe que se situam em diferentes expressões dessas revoltas. Nosso objetivo é manter viva a comunidade de lutas do proletariado e contribuir nos esforços já existentes de internacionalismo socialista[12].
Amanajé e Communismo Libertário
Notas
[1] O fundador e presidente do IEP é Steve Killelea, um empresário que busca fornecer dados sobre a “paz social” para organismos como o Banco Mundial e a ONU. Nesse sentido, esse instituto é um centro de pesquisas que atende às necessidades administrativas da burguesia. Utilizamos essa fonte tanto para ilustrar o aumento considerável de conflitos, quanto para demonstrar que a classe dominante tem recursos para monitorar a situação de estabilidade de seu domínio internacionalmente. Não obstante, o IEP não passa de uma agência de informações usada para preservar a ditadura do Capital, a democracia.
[2] Institute for Economics & Peace. Global Peace Index 2021: Measuring Peace in a Complex World, Sydney, June 2021. Disponível em: <http://visionofhumanity.org/reports> acesso em: 31 out 2021.
[3] Relembre quais foram os principais acontecimentos de 2019 no mundo. Disponível em: <https://domtotal.com/noticias/?id=1411848>. Acesso em: 21 out. 2022. & CHADE, Jamil. Protestos em 2019 encerraram década de transformações sociais. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2019/12/29/protestos-em-2019-encerraram-decada-de-turbulencias.htm>. Acesso em: 22 out. 2022.
[4] Capitalismo está “sob séria ameaça”, alerta economista que previu crise global de 2008. BBC News Brasil. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/geral-47609260>. Acesso em: 18 nov. 2021.
[5] Robert Kurz – ENTREVISTA À REVISTA ON-LINE “TELEPOLIS” (18-19.07.2010). Disponível em: <http://www.obeco-online.org/rkurz372.htm>. Acesso em: 18 nov. 2021.
[6] No ano do lema ‘Pátria Educadora’, MEC perde R$10,5bi, ou 10% do orçamento. Estadão. Disponível em: <https://educacao.estadao.com.br/noticias/geral,no-ano-do-lema-patria-educadora--mec-perde-r-10-5-bi--ou-10-do-orcamento,1817192>. Acesso em: 21 out. 2022.
[7] Dilma sanciona lei que altera regras do seguro-desemprego com vetos. Disponível em: <https://g1.globo.com/economia/noticia/2015/06/dilma-sanciona-lei-que-altera-regras-do-seguro-desemprego-com-vetos.html>. Acesso em: 21 out. 2022.
[8] Ministro Joaquim Levy: “Não tenho a intenção de deixar o Governo”. El País. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2015/09/03/politica/1441303660_632275.html>. Acesso em: 21 out. 2022.
[9] Não necessariamente são formas voluntárias de distorcer os eventos, mas simplesmente a consciência ideológica que manifesta os interesses de classe da burguesia espontaneamente.
[10] Sobre o conceito de “guerra híbrida”, veja-se: MEDEIROS, Jonas. “Guerras Híbridas”, um panfleto pró-Putin e demofóbico. Passa Palavra. Disponível em: <https://passapalavra.info/2020/01/129676/>. Acesso em: 22 out. 2022.
[11] Chile's Violence Has a Worrisome Message for the World. Bloomberg, Disponível em: <https://www.bloomberg.com/opinion/articles/2019-10-22/chile-s-violent-protests-have-a-worrisome-message-for-the-world>. Acesso em: 24 dez. 2021.
[12] Aqui podemos citar alguns exemplos: TŘÍDNÍ VÁLKA [Guerra de Classes], disponível em: <https://www.autistici.org/tridnivalka/>; Crimethinc, disponível em: <https://pt.crimethinc.com/>; Proletarios Internacionalistas, disponível em: <https://proletariosinternacionalistas.org/> e Panfletos Subversivos, disponível em: <https://panfletossubversivos.blogspot.com/>. Parte do material que traduzimos é proveniente desses sites inclusive.
Análises da situação mundial do ciclo de revoltas
Dez notas acerca da perspectiva revolucionária (Fevereiro de 2019)
Barbaria
Estas notas buscam responder à duas necessidades históricas através das quais as minorias revolucionárias refletiram sobre suas tarefas. De um lado, o comunismo é um movimento real que abole o estado de coisas existente. Quando falamos de revolução, de classe ou de partido estamos falando de realidades que nascem das contradições do capital, do próprio solo da sociedade capitalista, de antagonismos sociais que se desenvolvem, como o magma vulcânico, através da acumulação incessante de contradições materiais e sociais. Essas contradições provocam o enfrentamento entre as classes, o enfrentamento que tem lugar muito antes nos fatos que nas cabeças de seus protagonistas: o ser antecede a consciência.
Por outro lado, as minorias revolucionárias sempre trataram de analisar e compreender o período histórico no qual se encontram, no seu sentido amplo e mundial. É o que pretendemos fazer neste material semielaborado, no qual defendemos que estamos entrando em um novo período de ascensão da luta de classes, um período caracterizado pelo reinício da experiência histórica do proletariado através de uma agudização da polarização social.
I
A revolução é um fato físico, de ionização social, de modelação factual que constitui a classe em seu processo de fortificação como partido. Esse processo real é o que pode conectá-la à sua linha histórica e que a permite voltar a alinhavar e a se relacionar com seu programa comunista.
II
Por outra parte, que a revolução devenha comunismo, comunidade humana universal, é a única possibilidade realista que pode evitar o colapso humano e civilizatório ao qual quer nos conduzir o capital.
III
É importante localizar essa possibilidade no período histórico da luta de classes. A revolução não é decretada pelo mero desejo ou a vontade de um partido, senão que é precisamente a classe que se constitui como tal. Nesse sentido, é importante individualizar os momentos históricos – excepcionais – nos quais se rompe de modo generalizado e profundo, em extensão e perspectiva, a paz social do capital, seu fetichismo mercantil e democrático, sua constituição em força contrarrevolucionária.
Esses períodos revolucionários – que não podemos separar da contrarrevolução, preparada imediatamente pela força do capital – expressaram-se em três ondas nas quais o proletariado tratou de atacar a sociedade de classes, através de seu processo de constituição em classe e em partido. A primeira onda, de 1848 até 1851, vai incendiar todo o continente europeu e viverá seu ápice nas lutas do proletariado parisiense em junho de 1848, que foi tão bem analisado por nosso partido em textos como As lutas de classes na França de 1848 a 1850 ou o 18 de Brumário. Dessa onda existe, além disso, uma preparação prévia que podemos observar já na década dos anos 30, na França, ou no movimento ludita no Reino Unido, ainda que sejam muitos os exemplos em outras regiões. A segunda onda, de 1917 a 1923, vai ter momentos prévios nas greves em massa de 1904-1905 na Bélgica, Alemanha, Holanda e, sobretudo, na Rússia, ou na Revolução no México de 1910, e acabará na derrota do proletariado nas barricadas de Maio de 1937 em Barcelona. Finalmente, a terceira onda atravessará a década de sessenta e setenta e pode ser considerada como acabada na derrota do proletariado da região polaca em 1980.
IV
É muito importante localizar nesses períodos de generalização e extensão da luta proletária o processo de constituição em classe, de ruptura com o fetichismo mercantil e democrático. De um lado, situa-nos em processos reais, factuais, de constituição física da classe, e, de outro lado, permite-nos fugir do voluntarismo típico da esquerda do capital. Tratam-se de momentos em que se rompe a atomização e separação cidadã, onde os proletários tendem a unir-se e lutar por seus interesses imediatos e históricos, onde começam a levar a cabo as mesmas práticas e as experiências que tiveram em
outras épocas e lugares seus irmãos de classe. Isso é o que pode permitir realmente – e sem nenhuma concepção iluminada – retomar a linha programática do passado e aprofundá-la. É o que permite entender a tarefa ingrata que realizamos os comunistas e as minorias revolucionárias em tempos de contrarrevolução, quando estamos na contracorrente de nossa classe. Nos momentos de ascensão de classe, de constituição e fortificação do proletariado, ocorre essa inversão da práxis onde milhões de proletários são protagonistas diretos do programa comunista, entendido como posições reais e não como princípios ideológicos.
V
Tão importante quanto é localizar os períodos contrarrevolucionários, de esmagamento físico e ideológico do proletariado, que parecem lhe derrotar definitivamente e que geram sequelas inquestionáveis sobre ele. Porém, a revolução, como expressão do comunismo na época do capital, volta repetidas vezes, e continua levantando-se. É fundamental entender o caráter irregular da luta proletária – como a velha toupeira que passa a maior parte de seu tempo a cavar nas profundezas da crosta do capital – para não cair nas ideologias comuns, socialdemocratas, que negam, em tempos de paz social, a possibilidade da revolução, a realidade da classe e, por fim, a falsa eternidade do capital.
VI
Temos que analisar a especificidade histórica de cada período e suas diferentes fases. Por exemplo, falando dos períodos contrarrevolucionários, o momento atual não é o mesmo que o da década dos anos quarenta ou cinquenta do século XX, que foi o momento histórico no qual nossa classe esteve mais desestruturada pelos efeitos materiais de distintas contraposições e dicotomias burguesas: fascismo, bolchevismo/stalinismo, democracias ocidentais, terceiro-mundismo, etc. Nos anos sessenta houve uma nova onda revolucionária cujos efeitos fizeram-se ver em toda a década de setenta. Nos anos oitenta, embora com um nível de intensidade inferior, houve importantes elementos de luta de classes – pensamos nas lutas na mesma região espanhola a partir de 1986-1987 ou o Caracazo na Venezuela – que sofreram uma clara recaída nos anos noventa e que também se pode comprovar na crise ou dissolução de muitas minorias revolucionárias nesse momento. De qualquer modo, não é um fenômeno comparável – apesar do cretinismo democrático da época – ao dos anos quarenta ou cinquenta.
De modo geral, podemos falar de períodos concentrados de revolução e contrarrevolução como os descritos até agora e fases menos intensas de avanço da luta de classes e da revolução: por exemplo, o momento compreendido 1864 e 1871, quando a classe tende a organizar-se em partido através da I Internacional e que vê seu auge em 1871 com a Comuna de Paris. Também podemos identificar os períodos de recaída contrarrevolucionária, como foi todo o período dos anos 90 do século XX, no qual embora a luta de classes permanecesse presente, encontrávamo-nos, como proletariado, em uma situação desfavorável no geral. Em síntese, visualizamos processos
concentrados de ascensão revolucionária, períodos contrarrevolucionários que nascem da derrota física e ideológica do proletariado e períodos de transição, períodos de charneira, em que se recupera a autoatividade e a luta de classes e que podem preparar momentos mais intensos de caráter revolucionário. Em linhas gerais, a revolução e a contrarrevolução são sempre mais intensas. E, acima de tudo, a revolução tende a ser cada vez mais sincronizada a nível global.
VII
Para nós a classe possui uma dupla determinação que, por conforto expositivo, apresentamos de modo separado. De um lado, o proletariado encontra-se suspendido no ar, como gostava de dizer um companheiro nosso, porque não tem garantida sua reprodução através da vinculação material com a vida. Pelo outro, o proletariado é uma classe que se constitui no movimento de contraposição a esse mundo. É ato e potência de modo inseparável. Estamos falando do mesmo movimento, que a socialdemocracia separa em economia e política, em classe em si e para si. Seu ser precário, o estar suspendido no ar se não consegue vender sua força de trabalho, implica uma contraposição antagônica com o capital, sua negação categórica. Existe, portanto, um antagonismo entre as necessidades humanas e as categorias do capital. É isso que nos faz afirmar enfaticamente que o proletário, ao defender suas necessidades, nega as categorias do capital para afirmar a comunidade humana. Por isso o comunismo é um movimento real.
VIII
Nesse sentido, é importante combater as ideologias da derrota que apresentam um papel contrarrevolucionário em nossa época: seja através da negação do proletariado e da proposta de uma impossível separação desse mundo, ou mesmo reduzindo a classe a uma engrenagem do capital, que luta contra ele, porém que nunca poderá negá-lo, ou reduzindo-a a uma realidade a mais entre outras, de tal maneira que a luta geral é pensada como uma soma de lutas específicas: lutas de classe, lutas feministas, ecológicas, antirracistas, etc.
Essas ideologias tendem a confundir a fase imediata com o processo histórico e, acima de tudo, reduzem a revolução a um fato ideológico, de pura convicção ou eleição individual, e não a uma realidade material e física que surge da contraposição irreversível entre necessidades humanas e capital. A classe constituída em partido não nasce de uma eleição voluntária, nem de um agregado estatístico e sociológico, senão do processo material de afirmação como classe, de recuperação da linha histórica e das posições que a fortificam para levar a cabo tal tarefa.
IX
Nosso momento histórico é o do esgotamento do capital como relação social, o momento em que o valor está alcançando historicamente seus limites internos. O
capital, a partir de seus próprios mecanismos, condenará cada vez mais os proletários do mundo a serem uma humanidade supérflua.
Isso incentiva e incentivará cada vez mais processos intensos de luta de classes. Uma realidade falsamente compreendida trata de fazer-nos acreditar que vivemos em um mundo sem revoluções e revoltas. Bastar olhar desde Roménia a Albânia, de Argélia a Iraque, de Bolívia a Equador, de Argentina a Oaxaca, para ver a intensidade das revoltas e revoluções que ocorreram na face da Terra nos últimos 25 anos, para não falar do intenso processo de luta de classes que ocorreu em 2011 no mundo árabe, justo quando muitos socialdemocratas haviam pronunciado o fim das revoluções. Nossa velha toupeira age dessa maneira, gosta de dar surpresas nesses medíocres profetas.
Assim, apoiando-nos nessas lutas recentes que se manifestaram no início do milênio na região latino-americana e as mais generalizadas do ciclo 2008-2013 – como as revoltas da fome, a luta na Grécia, a onda vivida no mundo árabe, etc. –, sustentamos que está em desenvolvimento um início de transição que rompe com o período historicamente desfavorável da década de noventa.
O futuro imediato será, portanto, de intensa luta de classes. É algo que já é observado há alguns meses em regiões como China, Irã, Iraque, Curdistão, Haiti... E que de modo mais recente está atravessando também a França com o movimento dos gilets jaunes, Hungria ou Tunísia. Trata-se de uma luta de classes que até o momento não recuperou a linha histórica de seu passado, de sua perspectiva, de seu programa. Esse é o grande drama de nossa época, a discrepância entre a intensidade da luta e a ruptura com a linha histórica anterior. Algo similar, e inclusive muito mais forte, foi vivido nos anos cinquenta, quando a contrarrevolução estalinista era um fardo aparentemente insuperável. Hoje em dia, o que se vive no geral é uma ausência de perspectiva comunista, uma renúncia à possibilidade da comunidade humana universal. E, contudo, a velha toupeira comunista segue escavando seu caminho, como o fez ao destruir todos os Estados capitalistas que no leste europeu haviam sido os principais protagonistas da contrarrevolução.
Entender essa fase peculiar da luta de classes é fundamental. O proletariado, apesar da ruptura histórica, reinicia sempre sua experiência. E isso porque sua constituição em classe não é uma invenção iluminada, senão que nasce do solo da sociedade do capital. Vivemos em uma fase de transição que está acabando com um momento de refluxo da luta proletária – depois da onda de 2008-2013 – e que voltará a retomar o ciclo internacional de lutas. Esse processo é um combate, é o combate pela constituição em partido da classe. Cristalizar esse processo como algo já dado, como uma derrota a priori, é simplesmente criminoso, e é o que fazem todas as correntes do catastrofismo socialdemocrata.
Hoje em dia vivemos uma fase sectária como minorias revolucionárias, um isolamento semelhante ao que podiam viver alguns companheiros do século XIX, porém com o lastro das contrarrevoluções do século XX, um isolamento das posições de classe do proletariado que luta, porém com uma dificuldade de aprofundar em suas necessidades imediatas e históricas, muitas vezes tendo suas lutas desviadas pela gigantesca quantidade de ideologias modernas e pós-modernas que lhe são apresentadas.
No entanto, estamos convencidos de que nas ondas revolucionárias que tornarão a surgir daqui não muito tempo, o proletariado terá necessidade de lutar conjuntamente por sua perspectiva de classe, de aprofundar nela, de desenvolver uma inversão da práxis onde a luta pelas suas necessidades históricas, pela abolição do Estado e da relação salarial, estará cada vez mais em primeiro plano. E isso porque a luta pelo comunismo não é uma luta a mais entre outras, é aquilo que surge da natureza e do ser profundo do proletariado, de uma natureza que é ao mesmo tempo revolucionária e explorada. A única maneira que o proletariado tem de lutar contra sua exploração é sua associação, sua solidariedade, sua autoatividade, sua constituição em classe e em partido para abolir o capital. Assim foi e tornará a ser. Às minorias revolucionárias do presente nos cabe ser parte plenamente atuante do proletariado nos momentos de enfrentamentos decisivos que acontecerão, lutando de modo inflexível para que nossa classe se reaproprie de seu programa e o desenvolva.
X
Em síntese, vivemos uma época de charneira em que convive o reinício da experiência histórica do proletariado, através das revoltas e rebeliões que vão desde 2011 às atuais e as contrarrevoluções e derrotas que nos mantém separados da memória de nossa classe e que negam toda possibilidade de revolução. As rebeliões em curso constituem as veias de ligação entre a experiência atual e os processos de constituição do proletariado em classe, as revoluções do futuro.
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A Invasão Alienígena (Novembro de 2019)
Barbaria
Neste último ano vimos acontecer, uma após a outra, revoltas nas quatro pontas do mapa: revoltas que levam Macron a rever os bunkers do Élysées, que fazem Lenin Moreno mover a sede do governo para Guayaquil, que atacam quartéis e sedes de partidos burgueses no Iraque enquanto reavivam a memória da insurreição de 91, que tiram um após o outro os primeiros-ministros no Haiti ou colocam uma bandeira negra no parlamento de Hong Kong. A burguesia mundial começa a ter medo.
Como disse há alguns dias Cecilia Morel, a “Primeira Dama” do Estado chileno, ao falar da revolta social em curso: “Estamos absolutamente ultrapassados, é como uma invasão estrangeira, alienígena, não sei, e não temos as ferramentas para combatê-las [...] O que vem aí é muito, muito, muito grave”.
De fato, o que vem aí é um novo ciclo de luta de classes que está diante de nossos olhos. De Iraque ao Líbano, de Irã a Argélia, de Sudão a França, de Haiti ao Equador, de Hong Kong ao Chile: lutas que nascem desde as necessidades imediatas, humanas, de nossa classe, e que desde ali abrem a perspectiva histórica, longe ainda, da revolução social, do comunismo. No Chile é pelo aumento do metrô, na Argélia pela corrupção política, no Haiti pelo Petrocaribe e a subida dos preços da gasolina, como ocorre também no caso de França e Equador. Em Hong Kong começou contra a repressão, no Iraque pelas condições de vida e de água, no Líbano pela subida dos impostos na internet. Porém, essas necessidades imediatas tendem a generalizar-se e ir mais além do motivo que causou a faísca inicial. Como se pode perceber não incluímos Catalunha, e o motivo é que se trata de um processo localizado totalmente no terreno da liberação nacional, que nasce da defesa da condenação de alguns políticos burgueses e que busca a criação de um Estado catalão independente. A vontade ou o que creem defender aqueles que lutam nesses tumultos conta pouco em relação ao que toda reivindicação nacional prepara: guerras e conflitos imperialistas. A prova para determinar a natureza de um movimento não é seu caráter violento ou não, que não quer dizer nada, senão aquilo que nega e questiona: não se nega um Estado-nação construindo outro. O Curdistão é outro bom exemplo disso.
Podemos obter algumas lições iniciais sobre esta polarização social em curso, a partir das “Dez notas acerca da perspectiva revolucionária” que escrevemos há alguns meses.
I
Quase todo o mundo está polarizado. Estamos entrando no início de uma mudança de época caracterizada pelo enfrentamento entre as classes, pondo fim ao longo período de refluxo da década de noventa. Na verdade, estamos vivendo o desenvolvimento cada vez mais intenso e forte de processos de ascensão social de nossa classe, que vão desde o 2001 na Argentina ao 2006 em Oaxaca (passando previamente por Equador ou Bolívia), desde as revoltas pela fome em 2008 em metade do mundo até 2011, o ano em que nossa classe generalizou suas lutas desde o mundo árabe até a Espanha, Reino Unido, Estados Unidos ou a mesma Grécia.
II
O capitalismo esgotou-se. Estamos entrando em um período de revolução social porque o capitalismo está esgotado como relação social: gera cada vez mais humanidade supérflua, expulsa trabalho vivo da produção social, consome com crescente voracidade a energia e as matérias-primas para tentar resolver com mais mercadorias o que perde ao expulsar o trabalho humano. Suas crises são e serão cada vez mais catastróficas.
III
Não podemos entender as ondas de luta que emergem a nível mundial (2001, 2008, 2011, 2019) como eventos em si mesmos, como fotografias isoladas uma das outras. Trata-se de um mesmo filme, no tempo e espaço, que tem um protagonista em comum: a velha toupeira da revolução que reivindica fortemente suas necessidades e interesses.
IV
As rebeliões e revoluções têm um caráter físico, material: luta-se pelas necessidades imediatas. O importante é analisar os fatos materiais que movem as práticas. O que o movimento diz é importante, porém agora é mais importante o que o movimento faz, desde que a luta surja das necessidades imediatas de nossa classe: é muito diferente das lutas nacionalistas ou político-eleitorais que se movem completamente no terreno da política burguesa. A revolução inicia um processo de ionização no qual as moléculas sociais tendem a organizar-se em uma perspectiva de combate, polarizada, independente da consciência que tenham inicialmente dos fins da luta. É o que temos visto nos últimos meses através das diferentes revoltas em curso. Nada a ver com a iluminação burguesa.
V
Essa desordem social, esse choque de placas tectônicas, tem uma origem comum e por isso tendem a acontecer de maneira cada vez mais síncrona. Uma revolta contagia a outra, do Equador ao Chile, do Sudão à Argélia, do Irã ao Iraque ou ao Líbano. A origem comum são as necessidades humanas que o capital ataca por suas necessidades de reprodução.
VI
Contudo, é necessário entender que a abertura de uma nova época, caracterizada pelo enfrentamento entre as classes, não quer dizer que se abriu um período insurrecionário. Ainda estamos muito longe disso, já que um período insurrecionário necessitaria de uma determinação consciente, um programa, uma vontade reconhecida por parte de nossa classe: por fim, uma inversão da práxis que necessita de um nível superior de organização, que necessita de partido, como explicaremos a seguir. E ainda assim, é verdade que o choque de placas tectônicas ao qual estamos assistindo será cada vez mais intenso e constante, extenso e concentrado, apesar dos refluxos que conhecerá nos próximos anos.
VII
Quais tarefas nós, revolucionários, podemos assumir? Estamos no início de um novo período histórico no qual é muito importante que os processos aprendam por si mesmos. Nosso partido, como força social, que luta pelo comunismo, vive e se forma no próprio solo dessas revoltas. Nós, minorias revolucionárias, somos parte do proletariado e dessas lutas, não somos um partido separado, senão aqueles que, como dizia Marx, tratam de estimular e levar além as determinações do movimento, ao mesmo tempo em que tratam de clarificar teoricamente sua prática entorno dos objetivos gerais da classe. Como dissemos, o início de uma nova fase da luta de classes, de um longo período de revolução social marcado pela crise terminal do capitalismo, não quer dizer que o comunismo esteja na próxima esquina. Estamos muito longes de uma situação revolucionária: para tanto é fundamental a capacidade do proletariado de constituir-se em classe, em partido; é essencial a convergência entre os processos materiais da luta de classes e o programa histórico comunista que nasce dessas mesmas lutas. Portanto, as questões de clarificação teórica e programática são hoje em dia tão importantes. Nossa luta não está somente nas barricadas do presente, senão nas lições que podem ser extraídas das barricadas do passado.
O caminho ainda é longo e, contudo, não pode haver recuo. Temos que viver a paixão da luta, porém também a luta pela claridade teórica e programática.
Muitas vezes, quando debatemos em espaços “radicais” e fazemos alusão à necessidade da revolução, sentimo-nos como alienígenas que desembarcaram de Marte. “O quê! A revolução? Mundial? Vade retro [expressão latina para “afaste-se!”]: isso é totalitário, reacionário”. O que pretendem? Pois não se trata nem de um desejo piedoso, nem de um feito de vontade. As revoltas e revoluções serão um fato presente de nosso tempo histórico, cada vez mais síncronas. Não se trata de desejar que se produzam, já que o fazem espontaneamente: trata-se de dirigi-las na perspectiva da abolição das classes, do Estado e da mercadoria.
Por isso dedicamos essas notas aqueles que haviam lançado a revolução à lata de lixo da história, àqueles que reduziam o proletariado a massa manipulada e que podia ser manipulada à vontade, que submeteram as necessidades imediatas do proletariado, da humanidade, aos jogos dos movimentos do capital. Não esqueçamos jamais a força e a potência de nossa classe.
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Revolta Internacional contra o Capitalismo Mundial (Novembro de 2019)
Proletarios Internacionalistas
A revolta proletária explodiu em todo o mundo, convergindo violentamente em vários cantos dele. Chile, Equador, Iraque, Haiti, França, Líbano, Hong Kong, Colômbia, Bolívia, Honduras, Argélia, Sudão… são alguns dos lugares onde nos últimos meses temos saído às ruas desencadeando toda a raiva acumulada ao longo dos anos. Bastou anunciar o aumento do metrô no Chile, o imposto sobre os combustíveis na França, o preço do pão no Sudão, um imposto sobre ligações nas redes sociais e sobre a gasolina no Líbano, ou a retirada dos subsídios aos combustíveis no Equador, para que, como no Iraque ou no Haiti, saíssemos desesperados e furiosos com a impossibilidade absoluta de viver.
A sede insaciável de lucro da burguesia mundial está levando a vida na Terra a limites inimagináveis, a contradição entre as necessidades de valorização e a vida humana explodiu durante anos em revoltas que hoje, com a concentração no tempo de dezenas de revoltas, anunciam uma nova intensificação do antagonismo de classe em nível internacional. Cada barricada, cada protesto levantado contra os sucessivos aumentos da nossa exploração, cada bloqueio de estrada, cada pilhagem, é um apelo do proletariado mundial para lutar contra a deterioração das nossas condições de vida, para estender e afirmar a negação deste mundo, para empunhar e erguer novamente a bandeira da revolução social.
O que as revoltas generalizadas no mundo capitalista hoje nos anunciam nada mais é do que o ressurgimento do proletariado, a volta da velha toupeira que nunca parou de cavar. A chamada Primavera Árabe, a revolta social na Grécia, Turquia, Ucrânia ou as lutas recentes no Brasil ou na Venezuela, foram o prelúdio de um movimento internacional e internacionalista que hoje traz medo a todos os representantes do capitalismo mundial e insufla esperança e força nos proletários de todo o planeta.
Desde o governo de turno que executa as medidas impostas pelas necessidades econômicas e que sempre implicam em uma elevação dos preços do que é essencial para viver; desde o patrão que nos explora diretamente no trabalho, extraindo nossa última gota de energia; desde o mercado que nos joga no desemprego em um mundo em que, se você não tem contas extras no bolso, vai direto para o matadouro; passando pelo banco, ou melhor, pelos bancos mundiais que aumentam nosso grau de exploração com todo tipo de medidas saqueadoras que fazem com que essas mesmas notas valham cada vez menos em nossas mãos; a cada lucro a mais que a burguesia mundial executa às custas de envenenar o ar, a água, a terra, o nosso sangue ou o que comemos, passando por todas aquelas inúmeras organizações, sindicatos e partidos de esquerda e de direita que representam “alternativas” dentro do capital e que servem para nos perpetuar em nossa condição de escravos… cada um deles está sendo apontado pelo fogo da revolta como responsáveis por nossos sofrimentos, como representantes do capitalismo mundial.
A potência que a nossa classe demonstrou nestes meses conseguiu perturbar até os enquadramentos que em alguns lugares a burguesia conseguiu impor para fagocitar nossa luta. Em Hong Kong, o enquadramento interburguês recua pela força da luta internacional que encurrala alguns dos slogans do nosso inimigo e determina que os proletários se separem deles. Mesmo na Catalunha, onde o nacionalismo parece onipotente, dirigindo um espetáculo que arrasta o proletariado a se recusar como força revolucionária, surgiram slogans e práticas de minorias que expressam que a força revolucionária só fará seu caminho fora e contra a armadilha das bandeiras nacionais.
Claro, dito tudo isso, sublinhando a importância histórica do que estamos vivenciando e que tende a se afirmar na prática como um movimento proletário internacional e internacionalista em face de todas as tentativas da burguesia de reprimi-lo, oculta-lo, canaliza-lo, deforma-lo, dividi-lo… não duvidamos por um momento que este não é mais que o início de um longo e complexo processo. É difícil prever os impulsos e desenvolvimentos que terá, as idas e vindas, mas, sem dúvida, caminha para um confronto cada vez mais internacional e generalizado, cada vez mais violento, cada vez mais decisivo.
Embora já estejamos rebentando de fome, adoecendo de todas as formas possíveis e sufocando com tudo o que impulsiona a economia à custa de nossas vidas e de nosso planeta, o que está por vir é ainda pior. A catástrofe capitalista que se avizinha é incomparável com o que foi vivido até agora. As necessidades vitais insaciáveis da economia capitalista exigem o sacrifício dos seres humanos e de todas as coisas vivas no altar do lucro. Mas nós, proletários, percorremos o caminho que abre as portas para outro futuro: a luta, a luta intransigente para impor uma transformação radical, o ataque às várias instâncias e representantes do capital, a afirmação nas ruas de incontáveis cantos do mundo da comunidade de luta contra o capital.
Diante da força da revolta internacional, o capitalismo mundial responde, como não poderia ser de outra forma, com todo o seu arsenal terrorista. Nessas semanas de protestos, a democracia do capital nos lembra que sua ditadura é a mais brutal que a humanidade já conheceu. Policiais, tropas de choque e soldados saem para encher as ruas de sangue, para destruir corpos, para nos trancar, para nos assassinar, para nos deixar sem suprimentos e sem abastecimento, para nos fazer recuar, para nos amedrontar para que deixemos as ruas, para mostrarem-se invencíveis. Centenas de mortos, dezenas de milhares de detidos e presos, homens, mulheres e crianças mutilados e torturados pelas armas que usam contra nós, cidades e bairros sem suprimentos para que voltemos às nossas casas ansiosos pelo retorno à tranquilidade dos cemitérios.
Apesar de em alguns locais tentarmos responder a todo este terrorismo criando panelas e cozinhas comunitárias, abrigos, espaços para cuidar dos nossos filhos mais novos enquanto outros lutam nas ruas, centros para tratar os feridos e abrigar companheiros, nós também respondemos com violência revolucionária, tomamos locais de abastecimento à força, atacamos os meios de comunicação do capital, obtemos e distribuímos armas para nos defendermos e atacar o terrorismo de Estado, tentando fazer com que o medo mudasse de campo, tentando responder ao seu terrorismo expressando-nos como uma comunidade de luta, como comunidade solidária, o certo é que ainda não temos forças suficientes para responder como é necessário ao terrorismo de Estado. É verdade, os militares e todo o seu arsenal assassino não nos fizeram recuar e a resistência nas ruas nos enche de determinação e coragem. Porém, quando o exército sai às ruas para mostrar todo o seu terror, apesar da existência de minorias que mantêm o pulso da luta e tentam dar diretrizes, ainda não conseguimos dar um salto qualitativo que se cristalize na insurreição. A necessidade que nos é apresentada hoje em cada revolta é como aprofundar e desenvolver essa insurreição.
Precisamos voltar ao caminho do passado, lembrar o que nossos irmãos de classe fizeram então, como se cristalizaram as insurreições do passado que conseguiram desestabilizar o Estado. Temos que lembrar como os corpos repressivos foram destruídos, como os exércitos se desintegraram, como enormes bandos de soldados se recusaram a atirar contra a revolta ou, mais ainda, passaram com suas armas ao nosso lado. A decomposição do exército sempre foi e será um salto de qualidade fundamental em qualquer revolta proletária.
Também precisamos retomar a criação de estruturas de abastecimento, de autodefesa, organizando o assalto aos centros de armas para cristalizar as necessidades insurrecionais do confronto. Mas também precisamos saber quando recuar nos momentos em que a correlação de forças nos é desfavorável, mantendo a força coletiva para evitar que o Estado nos varra. Às vezes, a retirada, e não o abandono, pode ser necessária para se estruturar, expandir o associacionismo e a estruturação proletária internacional. Também precisamos libertar os prisioneiros, os detidos, etc. Mas, acima de tudo, precisamos que tudo isso se materialize como expressão e direção de nossa comunidade na luta contra o capital. Qualquer tentativa de fugir da necessidade insurrecional e, em vez disso, desenvolver uma guerra entre aparatos, ou de separar a organização da violência como uma tarefa específica de um grupo guerrilheiro da própria comunidade de luta, são formas de eliminar a força que estamos gerando. Como também o são todos os pedidos de direitos humanos, ou pedidos de demissão de funcionários do Estado, formas de integração democrática. No entanto, estamos convencidos de que nossa comunidade de luta aprenderá não apenas com sua própria experiência atual, mas que essa mesma experiência a fará se reconectar com seu próprio passado para encontrar maneiras de atender a essas necessidades. Como no Iraque, onde os proletários publicam slogans referentes à insurreição de 1991.
Não podemos ignorar que a ordem social existente não apenas combate nossa luta com balas e soldados que são lançados contra as barricadas, mas com um conglomerado de ideologias e forças que manobram para destruir toda contestação social. E, o que é mais perigoso, essas mesmas forças, aproveitando nossas próprias fragilidades e limites atuais, se apresentam como parte de nossa comunidade de luta, levando muitos setores de nossa classe a assimilá-las como tais. As “soluções” nacionais ou nacionalistas, os espetáculos das assembleias constituintes, os pedidos de expurgos democráticos ou qualquer outra reforma do Estado são projéteis mais nocivos do que os disparados pelos militares, uma vez que visam o coração do nosso movimento. A nossa determinação para contrapor e enfrentar essas forças da contrarrevolução depende da perspectiva revolucionária, o pulsar do coração desta comunidade de luta.
Não se deve esquecer que também é essencial assumir toda uma série de tarefas em lugares onde a paz social ainda não foi quebrada. Claro que nada têm a ver com se limitar à questão antirepressão e/ou mobilizações em embaixadas e consulados que são terreno fértil para discursos reformistas e de direitos, com denúncias e condenações aos “excessos do Estado”. Nem, é claro, com a defesa da revolta como um “povo que não aguenta mais” e que é “brutalmente reprimido”. Essas práticas permitem justamente às frações progressistas liquidar a verdadeira solidariedade de classe, fazer da revolta e de sua necessidade algo de outros lugares, alheio, o que justifica negá-la em seu próprio território, defendendo a paz democrática e convocando-nos a votar pelo mal menor. Pelo contrário, a solidariedade de classe defende a revolta como expressão da nossa comunidade de luta contra o capital, como a mesma luta contra o mesmo inimigo mundial. É claro que as necessidades e tarefas que podem ser assumidas nos vários lugares são condicionadas, não pela vontade ou determinação de grupos militantes, mas pela correlação de forças locais. Desde já, é necessário criar órgãos e comitês de solidariedade, para centralizar e divulgar as diferentes informações sobre a luta, bem como o que se faz dentro da revolta (sociabilidade, saques, organização comunitária, autodefesa, informes de companheiros, etc.), para se opor às mentiras da mídia, dos canais social-democratas; para criar redes de apoio aos refugiados, etc. Em última instância, devemos promover a estruturação de nossa comunidade internacional de luta, encontrar formas de satisfazer as necessidades que surgem na luta e superar os obstáculos que encontramos.
A revolta proletária que hoje vira o capitalismo mundial de pernas para o ar deixa em evidência, diante de todos aqueles que querem que acreditemos que a revolução é impossível, que a única alternativa para os seres humanos ao capitalismo é a revolução mundial. A própria luta e o que ela cristaliza nos dá a certeza de que a humanidade pode destruir esse modo de vida baseado na comunidade do dinheiro, jogá-lo na lata de lixo da história e desenvolver uma nova sociedade baseada na comunidade humana e sua unidade inseparável com a Terra.
Vamos organizar nossa comunidade de luta internacionalmente!
Fora e contra sindicatos e partidos!
Para aprofundar a luta contra as relações sociais capitalistas!
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Onda mundial de revoltas e situação revolucionária (31 de Dezembro de 2019)
Barbaria
Este texto é parte da correspondência internacional que mantemos com companheiros de outras latitudes. Mais especificamente, trata-se de uma resposta a companheiros da região argentina, que nos levantam algumas perguntas para aprofundar a compreensão da fase atual da luta de classes a partir das “Dez notas acerca da perspectiva revolucionária” e de “A invasão alienígena”. Para nós, a comunicação e discussão internacional entre minorias revolucionárias é uma tarefa fundamental de nossa prática militante.
Acreditamos que estamos vivendo um período de charneira, que acaba com o forte período de refluxo que se viveu na década de noventa do século XX, um período antecipado pelas lutas de 2001 na Argentina, Equador, Bolívia, 2006 em Oaxaca, 2008 com as revoltas pela fome, até o 2011 mundial e sua continuação no 2013 em Brasil e Turquia.
Para entender melhor o momento em que nos encontramos, parece-nos importante diferenciar entre a entrada em um período histórico de revolução social e que estejamos diante de situações revolucionárias. Acreditamos que estamos no início do primeiro, porém ainda falta muito para o segundo. Em outras palavras, a crise cada vez mais forte do capitalismo, o desenvolvimento de cada vez mais humanidade supérflua, a crise da valorização, etc. vão obrigar os proletariados a lutar em defesa de suas condições de vida e a realizar lutas cada vez mais contundentes e radicais. Nesse sentido, vivemos o início de um processo de polarização social a nível mundial no qual as lutas vão adquirindo um caráter síncrono e mundial de maneira crescente, alimentando-se umas com as outras.
Porém, estamos diante de uma onda de revoltas, rebeliões, etc. Não são revoluções ou situações revolucionárias onde podemos inverter a práxis do capital, onde estamos em disposição de desenvolver um ataque ao capital e às suas relações sociais para poder impor em alguma região do mundo a ditadura do proletariado contra o capital e o Estado. Em nossa opinião, ainda falta muito para isso.
Por isso o que está acontecendo tem de ser lido não como uma fotografia, senão como um filme que conhecerá fluxos e refluxos. Porém, é um filme cuja trama é a da polarização social cada vez mais intensa e concentrada, o desenvolvimento de blocos sociais cada vez mais antagônicos.
Pensar nisso como um filme e não como uma fotografia ajuda-nos a pensar a dinâmica em curso, na qual uma das tarefas mais importantes que possuem minorias como as nossas é a de clarificação programática através do estudo das lições do passado, a da coordenação e comunicação internacional entre diferentes grupos, etc. Esses tipos de questões são decisivas. Hoje não se trata de realizar uma insurreição vitoriosa que acabe com o capital nos lugares mais avançados da revolta em curso (Chile e Iraque), senão de desenvolver ao máximo os níveis de auto-organização e autonomia de classe tal como existem, e que são uma repetição fractal, impressionante, das revoltas e revoluções do passado – nesse sentido, ver as imagens da Praça Tahrir em Bagdad é algo incrível –, assim como, acima de tudo, realizar uma defesa intransigente de nossas posições comunistas e anárquicas: por exemplo, no Chile é necessário que critiquemos a assembleia constituinte com toda claridade e contundência.
A defesa dessas posições será decisiva nos processos futuros. Acreditamos que estamos no início de um período histórico que se radicalizará cada vez mais e irá se internacionalizar também com mais força. Por isso insistimos tanto em como é importante pensar a dinâmica em curso como um filme, não como uma fotografia, como dizíamos acima. Não se trata de ficar obsessivo agora pela insurreição, ou pelos refluxos dos processos que são vividos e que serão vividos necessariamente, como no Equador, mas pensar a dinâmica em curso, e essa dinâmica é revolucionária e se dirige à níveis de antagonismo social cada vez mais intensos.
Nesse sentido, pensamos que estamos no início de uma nova época de revolução social: uma época caracterizada, no entanto, por revoltas e rebeliões e não ainda por situações revolucionárias em meio mundo, como aconteceu há cem anos, em 1919. Estamos no início de uma época de revolução social e de onda revolucionária como a que atravessou o mundo de 1910 a 1937 – sobretudo de 1917 a 1921 – ou de 1968 até 1980. E essa onda continuará a desenvolver-se com cada vez mais força.
Assim, como dizíamos anteriormente, um aspecto que se destaca na atual onda é a enorme sincronização internacional das revoltas em curso. Por isso acreditamos poder afirmar que no futuro a tendência à internacionalização das lutas por parte do proletariado mundial irá se fortalecer, uma sincronia emblemática em relação aos inícios das ondas revolucionárias anteriores, em 1917 ou 1968. Sem dúvida esse é um dos elementos mais destacados e importantes do atual sismo da luta de classes. Contra todos os negadores do internacionalismo, a luta do proletariado será cada vez mais internacional.
O mais importante agora é como podem ser traçadas linhas assintóticas que comuniquem a aprendizagem revolucionária do proletariado em luta e as lições programáticas do passado realizadas pelas minorias. Ou seja, como o proletariado pode se constituir em classe, em partido, ir alcançando uma claridade a partir de sua própria experiência que lhe leve a desenvolver seu antagonismo contra o capital e o valor em suas múltiplas formas. E para isso é fundamental o papel de minorias como as nossas, como parte da classe. É essencial nossa participação nos momentos das barricadas, porém também nos momentos de balanço, no fluxo da luta de classes, porém também nos refluxos que acontecerão. Por isso iniciativas como as que está a fazer ali são tão importantes. Qual é o papel que podemos assumir como minorias revolucionárias? Sem dúvida é um dos aspectos em que nos encontramos com maior fraqueza nessa nova onda de luta de classes internacional. Mais especificamente, isso significa como podemos reforçar a centralização e o debate em torno de posições, de experiências, de balanços, etc. entre os diferentes grupos das comunidades de luta nos quais tendem a se organizar os proletários revolucionários e internacionalistas. E isso significa, em última análise, reforçar o papel da teoria revolucionária na hora de saber qual é a natureza do capital para romper com ele, o reconhecimento da linha descontínua da história de nossa classe e das lições que podem ser extraídas das revoluções e contrarrevoluções do passado, assim como aprofundar e reforçar no papel que nós como minorias podemos ter desde dentro dos movimentos de classe atuais e futuros, criticando as fraquezas de nossa classe e tratando de impulsionar adiante os movimentos práticos e a clarificação entorno dos objetivos gerais e históricos do proletariado. Esses aspectos parecem-nos decisivos hoje. Sempre insistimos que nos parece muito importante tratar de analisar as relações de força entre as classes. Em última análise, um período de contrarrevolução é uma época marcada pela paz social e o triunfo absoluto do capital. São os tempos normais do capital, de seu fetichismo mercantil e de sua lógica democrática. Períodos que foram interrompidos por outros de luta de classes intensas, como as ondas revolucionárias que mencionamos acima. Portanto, acreditamos que estamos saindo de um período de contrarrevolução e de refluxo social intenso como o da década de noventa. Contudo, não existe uma linha clara de demarcação entre revolução e contrarrevolução. Acima de tudo, é necessário saber que a revolução convive sempre com a contrarrevolução, que as lutas atuais despertam a contrarrevolução em todos os lugares por parte da burguesia.
Dito isso, é muito importante como nós revolucionários analisamos as épocas de contrarrevolução para distingui-las do momento atual. Não cansamos de repetir que estamos diante do início de uma época de charneira, que deixa pra trás a fase de refluxo contrarrevolucionário da década de noventa, um período que já foi antecipado com toda uma série de lutas no começo do século e, sobretudo, no ciclo de 2008-2013. De qualquer modo, a contrarrevolução dos anos noventa, que nunca foi absoluta, pode-se comprovar na maneira em que se enfraqueceu a perspectiva de superar o capitalismo através de um processo revolucionário. Esse é o elemento principal da contrarrevolução da década de noventa e que ainda paira como uma sombra pesada sobre as fraquezas de nossa classe nas lutas atuais. Em todo caso, não acreditamos que se possa comparar o refluxo dos anos noventa com o período contrarrevolucionário que se inaugurou no final dos anos vinte e na década de trinta do século XX, quando era “meia-noite no século”, e a contrarrevolução afirmou-se através dos regimes gêmeos do fascismo, o stalinismo e os New Deal socialdemocratas: uma contrarrevolução que reduziu as estruturas proletárias e de classe da onda revolucionária anterior a alguns punhados de minorias isoladas.
Por fim, nos é muito útil este tipo de correspondência para poder esclarecer-nos comumente. Esperamos ter aprofundado e clarificado melhor alguns aspectos. Em resumo, parece-nos que estamos somente no início de uma nova época histórica marcada pela revolução, pela polarização social que despertará antagonismos entre as classes cada vez mais fortes e virulentos. Esse é o terreno fértil para que nossa classe construa-se como partido, clarificando sua perspectiva histórica: sua negação como classe para negar o capital e suas relações sociais. Porém, para isso ainda resta muito, como dizia Marx após a primeira onda de 1848:
“Enquanto dizemos aos trabalhadores: é preciso atravessar 15, 20, 25 anos de guerras civis para mudar a situação e preparar-se para exercer o poder, é-lhes dito: temos que tomar o poder de imediato, ou podemos ir dormir.”
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Contra a pandemia do capital: Revolução Social! (Abril de 2020)
Proletarios internacionalistas
O capitalismo está instalando o terror e a repressão em todo o mundo, em uma operação sem paralelo na história da humanidade. Confinamento de regiões, cidades e países inteiros, confinamento em massa de seres humanos que são forçados a permanecer presos em suas próprias casas, suspensão dos direitos dos cidadãos miseráveis, vigilância, monitoramento e processamento de movimentos populacionais por meio de todos os tipos de tecnologias (smartphones, big data, inteligência artificial…), demissões em massa, aplicação do Estado de emergência, de alarme, de sítio, etc. Em todo o mundo, vemos uma militarização das ruas se espalhando para controlar e reprimir todos os movimentos não autorizados. Também vemos os olhos do Estado se multiplicarem por meio de cidadãos submissos e temerosos que velam por qualquer pequena violação ou questionamento de seus decretos [1].
Para reforçar esse cenário, porta-vozes do Estado nos inundam com dados sobre a expansão do que a OMS chamou de “Pandemia do COVID-19”. A retransmissão dos números de infectados, hospitalizados e mortos, bem como as taxas de mortalidade e as previsões de contágio, acompanhadas por imagens de hospitais saturados e caravanas de carros funerários enfileirados no necrotério, acontecem freneticamente diante de nossos olhos com grande detalhamento enquanto um constante desfile de políticos, cientistas, soldados e jornalistas nos apresenta uma guerra contra um inimigo externo chamado coronavírus, apresentado como o grande mal da humanidade, como uma pandemia que põe em perigo a vida dos seres humanos.
Queremos deixar claro que com isso não estamos querendo dizer que o que se chama COVID-19 não existe ou é pura criação ideológica do Estado. O que tentamos explicar ao longo do texto é que a pandemia está sendo usada como uma ferramenta de contra-insurreição e reestruturação do capitalismo e o que eles estão nos vendendo como solução é muito pior do que o problema. Nesse sentido, embora seja evidente a incidência social dessa pandemia em decorrência do desdobramento terrorista desenvolvido pelos Estados, não temos elementos para avaliar a incidência direta do COVID-19 em nível biológico na nossa saúde. Os dados que manejamos são os oferecidos pelos diversos aparatos do capitalismo mundial (OMS, Estados, organizações científicas…), que obviamente para nós não possuem fiabilidade, uma vez que este ou aquele Estado pode inflacionar ou encobrir as suas estatísticas. Claro que também os proletários de asilos, prisões, hospitais psiquiátricos… denunciam que esses centros estão se tornando, mais do que nunca, em centros de extermínio. Agora, a questão fundamental a ter em conta é que o capitalismo mundial nunca tomou tais medidas apesar da catástrofe geral que se materializa e se expressa em milhares de áreas (pandemias, doenças, fomes, catástrofes ecológicas…) [2].
Para nós, não há nada de humanitário nas medidas contra o coronavírus. O Estado semeia o medo e a impotência entre uma população atomizada para se apresentar como o protetor onipotente da humanidade. Apela à unidade de todos para empreender juntos a luta contra esse inimigo, para fazer os sacrifícios necessários, para colaborar com tudo o que as autoridades ditarem, para se submeter às diretrizes e ordens dos diversos aparelhos de Estado.
Toda essa exibição espetacular cria uma cobertura imprescindível. A história da defesa da saúde não é cansativa. Sabemos que a morte generalizada e a catástrofe são a essência deste modo de produção e reprodução, onde a vida humana e o planeta são meros meios de valorização e o capital não se preocupa nem um caralho com o seu bem-estar. Embora as diferentes formas de gestão burguesa desenhem limites para não destruir totalmente o suporte material de valorização, a depredação destes meios, a sua degradação e destruição acabam por ultrapassar todos os limites, pois essa é a forma natural que se desenvolve a vida no capitalismo. A destruição do planeta e de seus habitantes, a morte crescente e imparável de milhões de humanos devido à fome, guerras, pandemias, toxicidade, trabalho, inanição, suicídios e um longo etcétera, nunca foram um problema a ser resolvido para o capitalismo, mas antes, os danos colaterais, ou melhor, sua forma específica de desenvolvimento.
As campanhas de “solidariedade”, pesquisa e desenvolvimento médico-científico ou alguma outra medida legislativa, são as formas pelas quais o capital aplica as “soluções” a todas as preocupações que geram aqueles grandes problemas que a humanidade sofre sob a tirania do valor. Mesmo que usemos o mesmo critério estreito e capcioso que a ciência usa para justificar as medidas tomadas hoje de forma generalizada [3], ou seja, a existência de um vírus que ameaça a saúde da sociedade, sabemos que em todos e cada um dos países onde essas “medidas de contenção do coronavírus” são implantadas, a existência, segundo dados oficiais, de outros vírus de alto impacto na saúde nunca foi motivo de grande preocupação. Isso não significa que o Estado não seja obrigado a intervir por causa de uma catástrofe específica, como tem feito em diversas ocasiões, já que aproveita sempre para introduzir medidas que, em outro momento, implicariam resistências e revoltas.
Portanto, está claro para nós que todas as medidas que o capital está implantando para “combater a pandemia do coronavírus” não visam a nossa saúde, cuidado e bem-estar. Cabe nos perguntarmos porquê é que o capitalismo criou este estado de guerra neste caso específico e, mais importante, o que fazemos como proletários e revolucionários nesta situação.
Não temos dúvidas. A guerra contra o coronavírus é uma guerra contra o proletariado mundial. As medidas estatais justificadas pela pandemia do coronavírus são um salto qualitativo decisivo e homogêneo na contra-insurreição global e nas tentativas burguesas de tentar iniciar um novo ciclo de acumulação de capital. E em face desta guerra, o proletariado só tem dois caminhos: ou sacrificar sua vida nela ou se opor para defender suas necessidades humanas.
É verdade que vivemos em um sistema social acostumado ao confinamento. Que confina os alimentos, as necessidades básicas, para nos confinar em apartamentos, em carros, em centros comerciais, em centros de domesticação para crianças, em centros de trabalho, em centros de idosos (geriátricos), em centros de saúde, em prisões, no lazer ou centros de férias… e essas medidas dão um novo giro a esse sistema de isolamento e privatização, transformando o mundo em um grande campo de concentração [4]. Mas não se pode ignorar que tudo isso acontece precisamente quando a catástrofe capitalista atinge novos patamares, quando o antagonismo entre a vida e o capital atinge níveis ainda mais insustentáveis do que no passado. A destruição da Terra, a depredação de seus recursos, o envenenamento de tudo o que existe, a exacerbação de todos os mecanismos de exploração e pilhagem do ser humano e de todo o ambiente natural, são aspectos inerentes a este modo de produção da nossa espécie que é determinado pela economia e que estão atingindo níveis insuportáveis para a mera existência de seres vivos. A própria dinâmica da valorização do capital, na qual ele tem cada vez mais dificuldades para renovar seus ciclos reprodutivos devido à crescente desvalorização que lhe é congênita, está levando as contradições desse sistema social aos seus limites. Caminhamos para uma desvalorização sem precedentes. O colapso do capital fictício, que marcou os ciclos de reprodução capitalista, é prenunciado no horizonte. A crise financeira dos últimos anos, cuja primeira grande explosão ocorreu em 2008, expressa o esgotamento do mecanismo de respiração artificial que mantinha viva a economia mundial. Hoje, quando todo o capital se sustenta na base da reprodução incessante do capital fictício, a partir de toneladas de dívidas e todo tipo de injeções financeiras que permitem que o capital continue sugando o sangue do proletariado mundial, a burguesia começa a ter consciência de que a ficção não pode escapar da própria lógica sobre a qual foi construída, ela não pode se livrar da lei do valor e toda essa gigantesca acumulação de capital está correndo para o seu colapso.
Claro que, antes de tudo, não podemos ignorar outra questão ainda mais decisiva. Toda essa “guerra contra o coronavírus” acontece justamente quando a catástrofe que a burguesia carregava nas costas do proletariado projetava grandes choques já pressagiados pelas ondas de lutas que convergiram em 2019 e no início de 2020 em dezenas de países [5]. O desencadeamento de um incêndio que destruiria toda a ordem capitalista é um problema que, mais uma vez, está na ordem do dia nos círculos da burguesia e torna-se uma esperança que volta ao coração dos proletários.
Daí que, durante anos, as operações de contrainsurgência se multiplicaram em todo o mundo. Embora todo manual contra a insurreição se baseie na destruição da autonomia do proletariado, as formas como isso se materializou ao longo da história foram múltiplas. A guerra imperialista, que não parou de se desenvolver, sempre foi o recurso por excelência para transformar o antagonismo de classes em uma luta entre frações burguesas, restabelecendo a unidade nacional diante de um inimigo externo, destruindo os irredutíveis, dando uma reviravolta nas condições miseráveis do proletariado – impondo a guerra e os sacrifícios do pós-guerra – e gerando destruição, material e humana, ampla o suficiente para dinamizar o processo de reprodução capitalista, abrindo uma nova fase de expansão.
A pandemia do coronavírus apresenta todas as características da guerra imperialista: o inimigo estrangeiro, a unidade nacional, a economia de guerra, sacrifícios pela pátria ou pelo “bem comum”, colaboradores, mortes, reestruturação econômica, etc. [6].
Como qualquer guerra imperialista, supõe perdas gerais no curto prazo (ainda que certos setores disparem seus benefícios), mas contém as bases materiais para gerar uma nova fase de acumulação. O processo de ressuscitação do capital moribundo, que se realiza sob a capa da guerra contra o coronavírus e que envolve o ataque às condições de vida do proletariado, acarreta o impulso de uma nova fase de acumulação que só pode se desenvolver sobre a destruição de capital de dimensões e consequências sem precedentes e desconhecidas. Claro, em uma dinâmica onde o capital fictício representa o eixo onde a acumulação é sustentada, a destruição começará a partir desse terreno. A atual paralisação parcial e temporária da produção e da circulação de mercadorias exige quantidades inusitadas de capital fictício para a manutenção do tecido social, além de centralizar grande parte do capital nos setores militar e sanitário. No entanto, essa enxurrada de ficção para aliviar a paralisia do mercado, que já continha uma super-acumulação insustentável de capital fictício, mas que circulava em grande parte exclusivamente pelos mercados financeiros, implica despejar enormes massas de ficção desses mercados financeiros para uma troca mercantil eficaz, que expõe todo esse capital à sua destruição pela correção coercitiva que, mais cedo ou mais tarde, o mercado fará em relação ao sinal de valor. Ou seja, a desvalorização da moeda, a imposição despótica de uma lei que a burguesia acreditou ter contornado, criará uma desvalorização sem precedentes que implicará a falência generalizada de empresas, de Estados, a anulação massiva de dívidas e, claro, a tentativa burguesa de reestruturação global de todo o capital (centralizar em novas esferas, purgar outras, consolidar novos mecanismos de circulação…), tentando reiniciar um novo ciclo de acumulação.
Certamente, acima e antes de tudo, este contexto só pode se desenvolver fazendo o proletariado engolir um sacrifício que o convidará a rebentar em massa, que generalizará as condições cada vez mais impossíveis de sobrevivência em toda parte. Por outro lado, também os levará a se rebelar, a defenderem suas necessidades contra a catástrofe do capital. Esse é o futuro que o capitalismo mundial reserva para a humanidade: exacerbação da catástrofe ou revolução [7].
Neste contexto, as ações de todos os Estados são mais bem compreendidas, o confinamento, a saída do exército às ruas, o controle, a vigilância da população, o aperto dos cintos de todos os proletários e o anúncio destes Estados dos piores sacrifícios que virão. O Estado avalia como o proletariado reage aos estados de emergência e consegue retirar momentaneamente protestos e revoltas em desenvolvimento como na França, Irã, Iraque, Líbano, Argélia, Hong Kong, Chile, etc. No Chile, antes que os números oficiais do Estado relatassem uma única morte e antes que qualquer medida sanitária fosse implementada, o Estado declarou estado de emergência. Desta forma, os Estados usam a pandemia para recuperar a paz social em áreas com protestos e motins nos últimos anos, ao mesmo tempo que implantam em outras partes um ambiente propício à repressão de protestos com medidas de agravamento que estão sendo preparadas, comprovando a capacidade de controle social que possui sobre seu território, onde se concentram os focos rebeldes, quais aspectos melhorar para garantir a vigilância e o controle do território, etc.
Ao longo da história do capitalismo, ao impor novos ajustes e girar o parafuso da exploração, sucederam-se resistências mais ou menos coletivas, revoltas e insurreições. Por isso foi surpreendente, num primeiro momento, a aceitação massiva do proletariado às medidas aplicadas pelos Estados, facilitada, sem dúvida, pela nova situação em que se encontrava e pela força midiáticas dos aparatos de Estado. No entanto, alguns proletários anunciam, nas suas primeiras respostas a todas estas medidas, a sua recusa em seguir o som das trombetas do Estado, em submeter-se ao regime de terror e aceitar o agravamento das suas condições de vida. Aos poucos vemos como os gestos, gritos, mobilizações e protestos começam a se reproduzir.
Apesar das difíceis condições impostas pelo estado através do confinamento e do isolamento, nossa classe tenta organizar sua resposta ao ataque lançado pelo Estado. Não se reproduzem apenas pequenos atos de desobediência, que o Estado reprime com multas, prisões e acusações de pessoas sem apoio (como os idosos que apenas buscavam seu pão, os pais que reúnem os filhos nas casas com jardins maiores, os jovens que andam no mato com a desculpa de procurar lenha, os que questionam a versão oficial sobre a questão da saúde, os que avisam onde há controles e apontam os delatores, os que inventam todos os tipos de truques e artimanhas… todos os atos que expressam nossa necessidade mais humana de romper a prisão e nos convidam a romper o isolamento), mas também protestos e confrontos acontecem nas ruas.
A província de Hubei, o primeiro local a ser submetido ao estado de emergência, vive protestos e confrontos em várias cidades. Nas Filipinas, o confinamento é desafiado pela realização de manifestações exigindo alimentos e outros produtos básicos. Na Argélia, os proletários se recusam a suspender as manifestações que foram acorrentadas uma após a outra desde antes do confinamento. Na Índia, os trabalhadores migrantes enfrentam a polícia. Na Itália, as ações são organizadas gritando “Não! Para recuperar o que eles tiram de nós”. Motins em prisões e centros de detenção para imigrantes ilegais viajam de um país para outro. Os saques e os chamados ao não pagamento de aluguéis, junto com as greves dos que continuam trabalhando, também começam a se instalar em alguns lugares. Assim como as redes de apoio mútuo e as caixas de resistência.
Os vários Estados nacionais tentam resolver ou conter esses protestos usando as vantagens que o estado de emergência lhes permite. O presidente das Filipinas foi claro sobre isso, afirmando que quem escapar do bloqueio será executado. Por outro lado, eles anunciam pequenas concessões, como a libertação temporária de 100.000 prisioneiros no Irã ou a criação de créditos sociais para alimentação na Itália. Outros Estados, tentando antecipar os protestos, lançam miseráveis cenouras que estamos convencidos de que não servirão para aplacar nem a fome nem as vastas necessidades reprimidas durante séculos por um capitalismo que hoje ganha uma nova volta no parafuso.
Essas primeiras escaramuças que se organizam contra o estado de emergência mundial fazem com que o proletariado não fique trancado em sua casa olhando enquanto são levados para o matadouro, nem aceite se sacrificar pela economia. Mas precisamos organizar toda essa resposta internacionalmente e aprofundá-la até que perfure o coração da besta capitalista. Mudar o medo de lado, que o pânico passe para o lado da burguesia. Que o medo da pandemia do coronavírus se transforme em medo da pandemia da revolução.
A guerra contra o coronavírus é uma
guerra contra o proletariado mundial!
Vamos impor nossas necessidades humanas
às necessidades do capitalismo mundial!
Notas
[1] – Esclarecemos que apesar do estado de emergência e confinamento, declarado em dezenas de países no mundo, o capital continua a manter em funcionamento os setores produtivos que considera necessários, obrigando os proletários desses setores a trabalhar e confinar eles para suas casas assim que terminam a jornada de trabalho. Mesmo nos países com maior paralisação da produção e da circulação, o decreto dos “só empregos essenciais”, dando a impressão de que são para as nossas necessidades humanas, é tão ambíguo e flexível justamente para não prejudicar as necessidades do capital.
[2] – Não acreditamos ser relevante aprofundarmos neste texto as questões relacionadas à origem específica do COVID-19. Em primeiro lugar, porque não podemos afirmar nada com clareza já que não temos elementos suficientes para o fazer e, em segundo lugar, porque o mais importante é compreender que a produção e propagação das atuais pandemias resultam do modo de produção e circulação capitalista. Veja a respeito: “Contágio social”, do grupo Chuang (http://centrovictormeyer.org.br/contagio-social-coronavirus-china-capitalismo-tardio-e-o-mundo-natural/) e “As pandemias do Capital” (http://barbaria.net/1020/04/16/as-pandemias-do-capital/) do Grupo Barbaria.
[3] – Queremos esclarecer, embora não possamos nos aprofundar neste pequeno texto, que não só negamos que curar uma doença é um ato médico, como o sistema de saúde da capital e a medicina “oficial” querem que acreditemos, mas que nossa concepção do que é uma doença, um vírus e, de maneira mais geral, nossa concepção do que é o cuidado à saúde, são os antípodas da ciência. Claro, a ciência, se é para algo, é desenvolver as condições necessárias para que o capitalismo continue a funcionar, para continuar aniquilando e esmagando tudo, pulando obstáculos, ultrapassando limites, etc. Suas diferentes articulações permitem que o capital se adapte e os fagocite.
Isso não quer dizer que endossamos ou propomos uma abordagem ou sistema “alternativo”. O sistema tecnocientífico rapidamente condena seus críticos sob o rótulo de “pseudociência”, mas nossa crítica ao sistema de conhecimento dominante e totalitário na sociedade capitalista também aponta para fenômenos assim catalogados. Além disso, essas “terapias alternativas” atuam cada vez mais como válvulas de escape e técnicas que complementam a “medicina oficial”.
[4] – Claro que esse grande campo de concentração não é igual para todos. Não só se reflete em aspectos, como dissemos em nota anterior em relação ao trabalho, mas também o próprio confinamento é vivenciado de forma totalmente diferente. Recordemos a campanha “Fico em casa”, promovida por meio de vídeos em que algumas celebridades arengavam desde seus “pequenos jardins” ou dentro de seus “modestos palácios” para ficar em casa e que foi imitada por milhares de cidadãos que vivem em caixas de fósforos.
[5] – Veja nosso texto “Revolta internacional contra o capitalismo mundial” em: https://es.proletariosinternacionalistas.org/revuelta-internacional/.
[6] – Não estamos nos referindo apenas aos óbitos associados pelos Estados à COVID-19, mas incluímos também aqueles gerados pelo Estado com suas próprias medidas. Entre alguns camaradas se discute se deve caracterizá-la também como uma guerra química direta contra o proletariado (o que não implica falar de premeditação – embora saibamos que nosso inimigo já a usou no passado e não parou de desenvolver pesquisas neste campo – mas antes o seu efeito objetivo), especificamente contra os setores que o capital considera improdutivos e que impõem pesadas cargas aos cofres do Estado e é justamente aí que atinge o coronavírus: os idosos, os reclusos, os imunodeficientes…
[7] – Não estamos afirmando que esse processo se desenvolverá imediatamente, mas afirmamos que sob a “pandemia do coronavírus” esse processo deu um salto qualitativo em direção ao seu desenvolvimento.
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O contágio da revolta se espalha: lutas em todos os lugares! (28 de junho de 2020)
Proletarios Internacionalistas
Desde que publicamos nosso texto anterior no final de março [1], o desenrolar dos acontecimentos apenas confirmou o que denunciamos ali: a guerra contra o coronavírus é uma guerra contra o proletariado mundial. A declaração de uma pandemia foi o bode expiatório, uma excelente oportunidade e uma forma de cobertura para se impor toda uma série de medidas brutais que a ditadura do lucro despoticamente exige. Trata-se de conectar todo tipo de medidas de austeridade ao proletariado, impondo jornadas de trabalho ainda mais intensas e extensas em troca de salários cada vez mais precários a uma fração da classe, facilitando as demissões de outra fração, exterminando as enormes faixas que sobram da população, garantindo sua implantação por meio do controle e do terror e detendo a onda de tumultos de 2019 para reiniciar com um novo ciclo de acumulação.
O isolamento que o capital tenta impor representa a negação do proletariado como classe revolucionária, a alienação de sua comunidade de luta, para destruir não só seu atual processo de associacionismo, mas seu poder futuro (que já se evidencia nas lutas atuais). Esse é o verdadeiro objetivo do Estado de alarme [2]: concretizar as necessidades intrínsecas da relação social capitalista.
Embora, a princípio, toda essa guerra tenha conseguido paralisar o proletariado, a verdade é que nossa classe logo entendeu na carne do que se tratava: as condições materiais ainda piores que sofreu em toda parte não foram devidas à “pandemia” [3], mas pelas necessidades de valorização do capital.
Os primeiros sinais de que o proletariado compreendeu esta realidade foram evidentes nas expressões de luta que saudávamos no nosso texto anterior. Os motins e revoltas nas prisões de muitos países, os protestos em Hubei, os saques e conflitos na Itália ou no Panamá, a propagação de atos de desobediência às medidas do Estado de alarme e confinamento… eram as escaramuças que anunciaram que o proletariado se preparava para retomar a onda de lutas contra o capitalismo iniciada em 2019.
Dissemos também que as toneladas de capitais fictícios que mantiveram, com uma importância cada vez mais decisiva, os fluxos de capitais durante décadas, e que agora se injetam maciçamente na efetiva troca comercial, com uma criação massiva de signos de valor sem nenhum suporte nem limite, criariam uma desvalorização sem precedentes, uma destruição do capital com consequências imprevisíveis que levariam o proletariado ao limite. O Líbano, o primeiro país a ver uma revolta contra o estado de alarme espalhar-se por seu território, também foi o primeiro a ver sua moeda chegar ao fundo do poço. O Estado libanês, que havia declarado falência e considerado inadimplente sua dívida, viu como o impressionante aumento nos preços das mercadorias expressou uma redução drástica no valor que afirma representar a moeda (até dois terços). Os proletários que ainda tinham algumas contas miseráveis com as quais podiam cobrir parte de suas necessidades básicas (para a grande maioria nem isso) viram-nas evaporar.
Confinados em suas casas, com a proibição de todo tipo de reunião e com os soldados andando pelas ruas, a situação tornou-se dramática. A perspectiva era abaixar a cabeça e aceitar o funeral que estava sendo preparado para ele ou apostar na vida. Mas, uma vez mais, o proletariado aposta na vida indo às ruas em massa. Desde então, a chama da revolta ilumina mais uma vez as trevas deste mundo, espalhando-se por várias regiões, rompendo o confinamento, as proibições de reuniões e mobilizações, a repressão e todo o pacote de medidas do estado de emergência. No Iraque, Irã, Panamá, França, Colômbia, Venezuela, EUA, etc., a onda de lutas que começou em 2019 é retomada, questionando-se os planos de reestruturação da burguesia e propondo fortemente um outro “novo normal” distinto do que a burguesia mundial quer impor.
Do Líbano aos EUA…
A “noite dos molotovs” foi o primeiro revés grave que o capitalismo mundial sofreu em sua “guerra ao coronavírus”. Em meados de abril, as principais cidades do Líbano experimentaram protestos e confrontos que foram recebidos com a habitual brutalidade por parte dos militares. Em 26 de abril, atirava-se contra uma manifestação, assassinando o jovem Fawaz Fouad e ferindo trinta manifestantes. Naquela mesma noite, desencadeou-se uma resposta impressionante do proletariado, no que foi chamado de noite dos molotovs. Os soldados foram surpreendidos pelo colapso geral do estado de emergência e pela chuva de coquetéis molotov que substituíram as pedras. Desde então, bancos, soldados, delegacias e outras expressões do capital têm sofrido diariamente o calor dos molotovs, enquanto que das janelas, aos gritos e panelaços, se apoiam cada incêndio e manifestação de nossa classe.
Apesar de o governo ter tentado desviar a atenção, anunciando um plano de cinco fases para sair do confinamento, proclamando o sucesso sanitário [4], os proletários não pararam de intensificar a revolta, denunciando que é a vida miserável sob o capital a verdadeira pandemia. O Estado não pode oferecer senão tiros, mortes, amputações, torturas e miséria, aos quais se responde com a extensão de capuzes e molotovs, organizando-se ao mesmo tempo desapropriações e redes de apoio à distribuição de alimentos e produtos básicos.
Mas se a primeira revolta contra o estado de alarme mundial ocorreu no Líbano, isso nada mais foi do que a cristalização naquele território da luta internacional do proletariado contra as condições de vida impostas pelo capital [5]. Embora nossa luta sempre tenha começado a partir dessa realidade [local], que independente de onde se desenvolva, faz parte da mesma luta global, pelas mesmas necessidades e contra o mesmo inimigo, é verdade que a burguesia estende todos os tipos de recursos e ideologias para isolar, setorizar, particularizar, nacionalizar e apresentar como diferentes as várias expressões de uma mesma luta, como se fossem expressões independentes, como se fossem estranhas umas às outras e de diferentes naturezas ou origens. Mas o desenvolvimento da catástrofe capitalista não cessou de homogeneizar de forma cada vez mais brutal as miseráveis condições de existência do proletariado, dificultando as manobras da burguesia.
Com a imposição do estado de alarme mundial, o capital deu mais um salto qualitativo nessa homogeneização. Em todos os lugares, as mesmas medidas, os mesmos sacrifícios, o mesmo ataque terrorista. A pandemia foi a cobertura adequada para tentar ocultar a generalização deste ataque capitalista contra o proletariado [6], a homogeneização brutal das nossas condições de vida a nível internacional.
Foi a luta do proletariado que desmascarou a burguesia mundial e reconheceu a pandemia como a capa para fazer a guerra contra ele, para impor as necessidades econômicas exigidas pelo capital sobre as necessidades humanas mais básicas. Os proletários em luta expressam abertamente que as mortes que o capital atribui ao COVID-19 são uma anedota ao lado do massacre diário na vida capitalista e que as condições implantadas com o estado de alarme apenas as pioraram. Se, como dizemos, no Líbano se cristalizou a primeira revolta desde a imposição do estado de alarme, sintetizando e ampliando os protestos, oposições e atentados que antes ocorriam de várias formas em todo o mundo (nas prisões, com as greves – também internacionais como as de Glovo ou Amazon –, com saques, manifestações…), sua cristalização em muitos outros lugares expressa o desenvolvimento da luta internacional de nossa classe.
Sem dúvida, o Iraque é outro lugar onde a luta assumiu níveis formidáveis. Lembremos que esta região tem sido um dos bastiões da luta nos últimos meses. Após um primeiro impasse causado pelo estado de alarme e algumas concessões do Estado (libertação de presos, investigação de abusos policiais…), os protestos recomeçaram no início de abril. Nessas datas, várias cidades da região começaram a desafiar o estado de alarme. Bagdá, Diwaniya, Bassora, Nassiruya e Kout foram algumas das cidades onde ocorreram fortes confrontos com a polícia. Logo os protestos se transformaram em revoltas por todo o território, chegando até o ponto em que haviam sido abandonadas [em 2019] antes da imposição do estado de emergência. A Praça Tahrir de Bagdá foi mais uma vez um dos centros de organização da luta na região. As tentativas de assalto à “Zona Verde” (local estratégico para a burguesia), as barricadas nos pontos de acesso à zona da ponte (al-Jumhuriyah), as pedras e os molotovs voando sobre as cabeças dos soldados e explodindo em bancos, residências dos burgueses, etc., voltou a preocupar a burguesia.
Como lhe preocupa que, na França, os protestos também se espalharam, especialmente nos subúrbios. Em Oise, Amiens, Yvelines, Elbeuf, Compiègne…, os proletários confrontam a polícia com barricadas, molotovs e foguetes. Em Mulhouse, a rua foi tomada depois que a tropa de choque feriu um adolescente de dezesseis anos. Como em Ile-de-France, onde a raiva explodiu porque um carro da polícia atropelou e matou um jovem de dezoito anos. Em outros lugares, como em Seine- St. Denis, se organizaram emboscadas contra os policiais e atacaram-se os símbolos do capital. Para tentar acalmar as coisas, o Estado francês decidiu retirar temporariamente a polícia dos subúrbios mais quentes.
Mas não apenas os subúrbios vivem jornadas de luta. Greves ocorrem em diversos setores e empresas (Amazon, Nancy, Deliveroo, lixões, trabalhadores da saúde…), algumas expropriações se repetem em Marselha e Lille, prisões e centros de detenção de migrantes sofrem protestos e motins, como Uzerche, em Rennes ou Correze, onde os prisioneiros destruíram e queimaram diferentes partes da prisão e escalaram o telhado.
Mesmo em Mayotte (departamento francês no Oceano Índico), onde os proletários recusam o isolamento e o confinamento e violam o toque de recolher, os policiais enviados para impor o confinamento são constantemente recebidos com barricadas e pedras. Na Bélgica, o Estado está violento nos subúrbios para conter a fúria do proletariado, especialmente após os tumultos pela morte de um jovem em um posto de controle da polícia.
Com a chegada da revolta nos Estados Unidos, a luta internacional ganhou novo vigor. O assassinato de George Floyd em 26 de maio pela polícia de Minneapolis foi a gota d'água. Como um vulcão em erupção, os proletários liberaram sua fúria contida e satisfizeram as necessidades que o capital lhes reprimia. Gritando “Eu não consigo respirar!” nossa classe ecoou as palavras de Floyd, enquanto expressava a impossibilidade de viver nas condições sociais impostas pelo capital. O que começou em Minneapolis logo se espalhou pelos Estados Unidos e além de suas fronteiras. Ataques à polícia, incêndio e assalto a várias esquadras, saques, destruição de bancos e outras entidades do capital… Símbolos e estátuas de personagens da classe dominante foram golpeados, como as estátuas de Churchill, Cristóvão Colombo, etc., destruídas ou decapitadas em várias cidades, não apenas nos Estados Unidos, mas em regiões como o Reino Unido ou a Bélgica. Nesta última, protestos e manifestações se espalharam por cidades como Bruxelas e Liège, deixando destruídos e decapitados monumentos históricos em homenagem ao rei Leopoldo II.
A revolta nos Estados Unidos adquiriu rapidamente tal magnitude que temos de recuar várias décadas para relembrar, naquele território, alguma afirmação semelhante do proletariado contra o capital. O estado teve que declarar toque de recolher em várias cidades e soldados da Guarda Nacional foram mobilizados para intervir. O número de feridos e mortos pela repressão continua aumentando, como em Atlanta, onde a polícia atirou em Rayshard Brooks pelas costas, mas os proletários, longe de recuar, respondem de forma decisiva a cada golpe do Estado.
… indo a todos os lugares
Hoje podemos dizer, apesar do fato de que em muitas regiões nossa classe ainda está atordoada e submetida a toda a paranoia de medo espalhada pelos vários aparatos do Estado, que as lutas que nós, proletários, estamos desenvolvendo de um lugar para outro estão retornando ao nível de confronto internacional que havia iniciado antes da imposição do estado de alarme mundial. O proletariado defende suas necessidades contra as do capital, opondo-se às suas medidas: enfrentando o estado de alarme, às suas medidas excepcionais, ao confinamento, aos “ajustes”, ao que a burguesia chama em algumas regiões de “novo normal” [7], etc.
Embora tenhamos desejado sublinhar alguns dos lugares onde a revolta do proletariado está sendo especialmente importante, de forma alguma queremos minimizar a forma como o proletariado está expressando a luta em outros lugares, tentando generalizar a revolta.
Por exemplo, na Venezuela ou na Colômbia, o proletariado expressa sua recusa em se sacrificar às necessidades do capital por meio da extensão de protestos, bloqueios de estradas e saques de mercados ou caminhões de alimentos, ataques a agências bancárias… No Panamá, barricadas e incêndios enfrentam o exército nas ruas. No Chile, os proletários gradualmente retomaram a luta que havia passado por um refluxo e que agora emerge por meio de distúrbios como os de Antofagasta ou Valparaíso. Na Itália, as expropriações foram reproduzidas a ponto de a polícia patrulhar os supermercados. Grupos organizados de proletários expropriam e reivindicam expropriações porque “o dinheiro para comprar acabou”. Greves também acontecem, como a recente em Whirlpool, em Nápoles. Bem como manifestações de solidariedade com os presos e contra as políticas carcerárias. Na Alemanha, protestos e manifestações contra as medidas implementadas vêm ocorrendo desde o final de março, assim como no Irã e em grande parte do Oriente Médio. No Uruguai houve manifestações durante e contra o confinamento, como a grande manifestação em frente ao Palácio Legislativo, e todo tipo de resistência de vários bairros acompanhada de slogans “Eles não nos querem com saúde, nos querem escravos!”. Ou no México, onde acontecem os tumultos, depois da morte (mais uma) de Giovanni López, um jovem que um mês antes havia sido preso por não usar máscara e espancado até a morte pela polícia na cidade de Ixtlahuacán de los Membrillos. Os protestos começaram no dia 4 de junho em Jalisco e se espalharam pela capital e outras partes da região, incendiando patrulhas, delegacias, o Palácio do Governo de Guadalajara e outras manifestações na capital gritando “Ele não morreu, eles o mataram!”.
Assim poderíamos continuar, sublinhando como o proletariado procura afirmar as mesmas necessidades, os mesmos interesses, contra o mesmo inimigo, contra a mesma condição. A luta internacional do proletariado está assumindo vários níveis de cristalização e força, várias formas e lugares para se materializar. Nesta situação, e na perspectiva de consolidação e intensificação da guerra de classes, um dos aspectos fundamentais para o avanço do projeto comunista de abolição do capitalismo, do Estado, das classes sociais, do trabalho e do dinheiro, é a demolição das forças que impedem, desde o interior, o desenvolvimento da perspectiva revolucionária.
Estamos nos referindo às forças que, vestidas com falsos trajes de combate, nos desviam de nossos objetivos, conduzindo-nos por caminhos que perpetuam este mundo de morte, canalizando nossa potência. Essas forças se desenvolvem e se consolidam a partir de nossas próprias fragilidades, nos próprios limites que as lutas contêm. Criticar, denunciar e ultrapassar esses limites é condição imprescindível para a afirmação revolucionária. Este não é o lugar para aprofundar e desenvolver esses limites de modo completo que, por outro lado, vínhamos abordando para vários camaradas e minorias revolucionárias nos últimos anos, expressando-os em numerosos materiais, mas acreditamos ser necessário fazer uma breve referência a alguns dos que ostentam um papel de protagonismo na atualidade.
Alguns limites das lutas atuais
Se por um lado queremos divulgar a luta que os porta-vozes do capital tentam esconder por todos os meios [8], também queremos destacar algumas das fragilidades que esta contém. O objetivo não é outro senão fortalecer a direção revolucionária que contém nossa luta, defender a autonomia de classe em relação a todas as tentativas de enquadramento, divisão e frentismo. Só levando as lutas em curso às últimas consequências, derrubando todos os elementos de contenção, não só os mais evidentes, como a ação repressiva do Estado, mas os mais sibilinos e perigosos, como as ideologias que possibilitam o enquadramento e a neutralização burguesa, podemos avançar para a destruição do capitalismo.
A presença de ideologias fragmentadoras, que enfocam os problemas sociais como aspectos parciais que podem ser resolvidos independentemente da totalidade que os gera e os necessita, criando movimentos específicos para enfrentá-los, continua sendo um dos fardos do proletariado. Ao inclinar a luta para aspectos parciais, todas essas ideologias são um suporte para o capitalismo ao afastar a luta da raiz do problema. Anti-racismo, feminismo ou ambientalismo são algumas das ideologias fragmentadoras mais importantes. Todos eles movem a luta para questões interclassistas. No entanto, para muitos proletários, esses movimentos representam uma luta e um sentimento comum, seja contra o racismo, contra o sexismo ou contra a destruição do planeta. Porque partem de um problema concretamente existente, mas de forma isolada, sem entender que é o capital que organiza e gerencia essas questões. Embora o machismo, o racismo ou a destruição de uma floresta não sejam o objetivo [declarado] de nenhum burguês, são elementos inerentes à taxa de lucro e, portanto, necessários para o capital e para os burgueses como um todo [9].
A falta de demarcação de classe foi e é um problema para superar o atual estado de coisas e também para deixar para trás esses movimentos fragmentadores e reformistas que só veem no Capital, no máximo, um problema igual aos outros. Portanto, não é necessário somar a crítica anticapitalista a essas parcializações, não se trata de unir os separados, mas de perceber a dimensão total da sociedade capitalista em que vivemos.
Quando criticamos esta ou aquela ideologia, existem muitos camaradas que se sentem atacados, que não entendem que o que estamos atacando é toda uma concepção alienante da luta. Em sua própria luta, o proletariado expressa suas próprias fraquezas por meio dessas questões ideológicas, interclassistas e imediatistas. Mas dessa mesma luta ele tira lições e diretrizes, das quais nossa crítica é apenas uma expressão. É o processo pelo qual o proletariado é delimitado de seu inimigo histórico e das ideologias que a própria vida capitalista afirma, é seu processo de constituição em classe.
Claro que a força dessas ideologias não se verifica no nível individual, mas no próprio movimento. Os proletários que lutam contra o capital são eles próprios movidos pelas suas próprias condições materiais e, na maioria dos casos, prisioneiros de várias ideologias. O decisivo na luta é se essas ideologias acabam dominando e canalizando o movimento ou são derrubadas em seu próprio desenvolvimento.
Nos Estados Unidos, temos sofrido essa ideologia fragmentadora na forma de anti-racismo, tentando liderar a luta em direção a uma questão racial. Mas qualquer questionamento do racismo que não ataca a base do capital só leva ao seu reforço, porque o racismo não pode ser combatido – nem podemos entender como ele funciona – se não partirmos de uma crítica profunda ao capital. O proletariado nos Estados Unidos abalou essa ideologia quando proletários de todas as raças saíram às ruas para questionar o capital, para impor suas necessidades, para dizer ao capital que não se pode respirar sob suas botas. No entanto, a força dessa ideologia ainda está presente.
Tentativas de repolarização burguesa
A burguesia sempre procura enquadrar a luta do proletariado em dois campos que só aspiram a objetivos burgueses e reformistas. Não serve apenas a esta ou aquela fração torcer a luta do proletariado em favor de seus interesses particulares, mas também ao capital em geral para neutralizar a luta revolucionária. O gancho por excelência sempre foi o falso dilema fascismo-antifascismo. A região espanhola dos anos trinta do século passado nos deu a lição mais clara dessa polarização quando o proletariado revolucionário, que questionava todas as formas adotadas pelo Estado, foi finalmente espartilhado nessa dicotomia complicada, e crivado entre (e por) ambos os lados. A chamada Segunda Guerra Mundial foi o corolário desse enquadramento, dinamizando o capital com o sacrifício da vida de milhões de proletários. Hoje, nos Estados Unidos, o Estado tenta mais uma vez canalizar a luta sob esses rótulos, definindo a “Antifa” como uma organização terrorista. Tenta enquadrar os manifestantes nesta velha polarização em trajes modernos, enquanto os criminaliza. Embora o nome “Antifa” não se refira a nenhuma organização formal específica e o antifascismo como movimento é atualmente uma expressão parcial e minoritária dos proletários em luta, não podemos deixar de apontar esta tentativa de enquadramento do Estado burguês.
Mas a polarização que se constitui com maior influência no horizonte, empurrada pela burguesia de todos os países, é a luta entre as frações do capital que estão se exacerbando, com a guerra comercial em segundo plano, principalmente entre o Estado estadunidense e a China. Tenta-se enquadrar o proletariado em um dos campos burgueses: os estados chinês e russo se definem contra o poder dos financistas ocidentais; Os Estados ocidentais denunciam a China como o criador do coronavírus, etc.
Trata-se de fazer-nos acreditar, por um lado, que a produção material capitalista se realiza para as nossas necessidades e que deve ser defendida do parasitismo das finanças que a oprime, dos bancos, da elite, do 1%; de outro, tentam nos vender que a produção material de nossas necessidades precisa de dinheiro das finanças, que o dinheiro é uma ferramenta que pode ser usada para as necessidades humanas. Mas os dois lados são meras alternâncias burguesas. Ambas as frações (que, por outro lado, estão interconectadas) nada mais são do que duas expressões do capital, duas formas sob as quais o capital transita em sua existência.
Temos certeza de que o capital não é apenas o banco ou o dinheiro, Rockefeller ou Bill Gates, da mesma forma que não é apenas a fábrica, a empresa ou a mercadoria, o chefão ou o pequeno. Acreditando que algumas de suas expressões, por mais centrais que possam ser em certas situações ou por mais poder e pressão que possam exercer sobre outras, são a personificação exclusiva do capital, nos tira do terreno revolucionário ao considerar que o capitalismo seria suprimido simplesmente pela eliminação dos patrões, ou das “grandes famílias” ou mesmo de toda a atual elite financeira global. Claro, devemos enfrentá-los todos, mas seu poder social vem do Capital, que é uma relação social, ainda mais, um sujeito que domina e engloba toda a atividade humana e se materializa e personifica de múltiplas formas e níveis. Por isso, o comunismo é um movimento de transformação social, de supressão e superação das condições existentes.
Perspectiva e necessidade de estruturação internacional
Na situação atual que sofremos e que o capital nos preparou, e na que está por vir, um dos grandes limites que temos é a fragilidade para estruturar e centralizar o combate internacionalmente, organizando e estendendo as associações proletárias e, sobretudo, organizando o poder da revolução que tem que se opor e quebrar o poder do capital. Este aspecto central da luta proletária já supõe, agora mais do que nunca, nossa maior necessidade e sua afirmação contém a cristalização de nosso poder revolucionário.
O capital está se organizando, se estruturando, não apenas para obter o máximo de benefício extraindo até a última gota de fôlego de nossas vidas, mas também preparando os mecanismos legais, policiais, sociais, etc., para reprimir nossa raiva e nossas lutas. A ditadura democrática do capital se apresenta hoje com uma transparência extraordinária que mostra, mais uma vez, as críticas que nós revolucionários sempre fizemos e aprofundamos [10].
A única alternativa ao presente e ao futuro que a burguesia nos oferece é a resposta internacional e revolucionária que o proletariado tenta concretizar, mas que precisa se afirmar como força unitária organizada que se opõe ao poder burguês.
Apesar das diferenças existentes em nossa comunidade de luta, apesar da heterogeneidade existente em vários aspectos da luta, a base de nossas ações é a luta contra as condições impostas pelo capital, contra o estado de alarme, contra as necessidades de sua economia, de seus bancos, das suas empresas… É nesta área que as várias heterogeneidades podem e devem ser tratadas, discutidas, confrontadas. E é aí, no confronto com a ordem existente, onde o proletariado extrai sua unidade, onde a comunidade de luta tem o ecossistema a partir do qual se desenvolve e se fortalece. Existem muitas formas de expressar posições de classe, e também diferentes formas de perceber os momentos históricos e o nosso papel neles, mas, como sempre, o fundamental e do qual partimos para a organização é o que fazemos, é a prática que levamos adiante. Partimos da luta contra as condições a que nos submetem, contra as medidas do Estado repressor e sugador, partimos da negação, do confronto direto com o Capital.
Hoje podemos ver um exemplo claro de tudo isso na luta que o proletariado está cristalizando contra o estado de alarme mundial e as diferenças em torno da importância dada ao vírus entre as distintas expressões que lutam. Vemos expressões da nossa classe em luta que evidenciam os dados que o Estado nos dá e denunciam que é um aspecto central da catástrofe capitalista e do agravamento das nossas condições materiais – dando também muita relevância à origem do vírus –, mas isso não os leva a negar o verdadeiro objeto que determina o estado de alarme [11]. Vemos outras expressões que denunciam que tudo isso é um exagero do Estado [12] para impor uma nova volta do parafuso do capital, que o eixo deve ser colocado sobre as medidas que são protegidas após a declaração da pandemia e não sobre a própria pandemia. Mas para além das diferenças, o importante é que as posições se elevem da luta, das necessidades, da oposição ao capital, do confronto ao estado de alarme, ao confinamento e a todas as medidas do capital. Porque é necessário assumir que o estado de alarme (reclusão e outras medidas) é um estado de guerra contra o proletariado. Independentemente dessas diferenças, essas expressões entendem, mais ou menos claramente, que tudo o que os Estados reuniram é para as necessidades da valorização e deve ser combatido.
Portanto, nos encontramos juntos lutando na rua, conspirando, rompendo o confinamento, desobedecendo, discutindo, questionando as necessidades da economia e tentando impor as humanas. É neste terreno que o proletariado sempre organizou e desenvolveu a sua luta, mas também as polêmicas e discussões necessárias. Como estamos tentando fazer hoje, apesar das muitas dificuldades que existem. É neste terreno que o proletariado mais uma vez lança as bases para se afirmar como classe revolucionária a nível internacional. Sejamos coerentes com isso e vamos impulsionar em todos os níveis a estruturação internacional do proletariado para abolir este velho mundo.
LUTAS EM TODA PARTE… QUE ESSA SEJA A NOVA NORMALIDADE!
CONTRA O ESTADO DE ALARME, CONTRA O CONFINAMENTO, CONTRA A NOVA NORMALIDADE, CONTRA O CAPITAL E O ESTADO.
VAMOS IMPOR NOSSAS NECESSIDADES HUMANAS!
Notas
[1] – Veja “Contra a pandemia do capital, revolução social!” em nosso site. Disponível em: <https://es.proletariosinternacionalistas.org/contra-la-pandemia-del-capital/>.
[2] – Sob o rótulo de estado de alarme, emergência, etc. referimo-nos, evidentemente, a todas as medidas implantadas pelo Estado: reclusão, demissões, reajustes, despejos, terror médico e científico, máscaras, vacinas, multas, prisões, tiroteios, desaparecimentos, prisões, injeções de capital…
[3] – Queremos especificar que o termo “pandemia” já é uma armadilha. Faz parte da linguagem científica e se baseia em assumir um aspecto biológico, como a existência de um vírus, como fator essencial de uma doença. A ciência, a partir de sua lógica de separação, vê o vírus como uma ameaça ao homem, aos animais e ao ambiente. Sua compreensão do mundo, que parte da racionalidade capitalista, não pode perceber o ecossistema como um todo orgânico, mas como seres isolados que agem por conta própria. Mas um vírus estudado em laboratório não tem nada a ver com o mesmo vírus nesta ou naquela cidade. Um vírus se desenvolvendo e coexistindo como uma parte equilibrada de uma sociedade nada tem a ver com o que aquele vírus faria em outro lugar, em outra sociedade… Sob a lupa científica, elementos muito mais decisivos que o vírus são borrados, como a maneira como os seres humanos vivem e interagem. Tendo isso em mente, em nossos materiais usamos o termo pandemia de forma intercambiável com ou sem aspas, com ou sem nuance. Não se trata de entrar no campo científico para discutir o uso correto dessa terminologia, questionando os critérios científicos usados para definir algo como uma pandemia, mas entender que o próprio termo é uma interpretação burguesa da realidade. Na história, essa terminologia tem sido usada para atribuir responsabilidade exclusiva a um vírus deste ou daquele mal que afligia a humanidade, escondendo os verdadeiros fatores decisivos.
[4] – O Estado libanês oficializou apenas 30 mortes associadas ao COVID-19, um fato que também deixa claro o quão insustentável é justificar todas as medidas de alarme terrorista em alguns lugares sob o pretexto da pandemia.
[5] – Lembremo-nos que o Líbano já foi um dos lugares onde a revolta proletária do outono de 2019 agiu com mais força. A revolta se opôs tanto ao Hezbollah, que veio para reprimir-lhes, quanto à canalização militar e religiosa que o proletariado da região vem sofrendo há décadas.
[6] – Existem estados, como as Filipinas, que dificilmente mantêm as aparências. Nesse Estado acaba de ser aprovada uma lei antiterrorista em que qualquer pessoa com uma simples suspeita, por parte de uma autoridade policial ou militar, de estar envolvida em atividades terroristas pode ser detida por dois meses sem mandado de prisão e pode ser monitorada por mais dois meses ao nível digital e telefônico, o que significa que qualquer dispositivo ligado à Internet, como um telefone, um computador, etc… serão inspecionados. A formulação jurídica é de tal magnitude que tudo o que os suspeitos fizerem pode ser considerado “ato terrorista” e estará sujeito aos meios e formas extrajudiciais do Estado.
[7] – Como se alguma vez tivéssemos abandonado a normalidade capitalista pela irrupção do estado de alarme, quando na realidade não vivemos mais do que uma reviravolta da ditadura da economia contra nossas vidas. Por sua vez, o “novo normal” representa o consequente desenvolvimento do estado de alarme que, longe de melhorar as condições materiais de vida, é o resultado direto de tudo o que a guerra contra o coronavírus está implicando. Em outras palavras, condições materiais de sobrevivência ainda piores para os proletários de todo o mundo. Tudo se apresenta como o lógico desenvolvimento capitalista da “velha normalidade” que almeja a ideologia do mal menor, apresentando-se como realidades para escolher o que nada mais é do que momentos da mesma existência miserável.
[8] – O encobrimento da nossa luta pela mídia não consiste apenas em tentar não mencionar esta ou aquela revolta, mas também consiste, principalmente quando essa revolta ou protesto não pode ser ignorado por sua repercussão, em distorcê-la, fragmentá-la, encobrir sua raiz comum.
[9] – A escravidão e o tráfico de escravos visam o lucro, mas o racismo é um elemento inerente à sua materialização. A destruição do planeta também não é um objetivo em si, mas a maximização do lucro só pode ser alcançada por esse meio. O sexismo também não é um objetivo em si, mas sim a forma como o capital consegue se reproduzir com eficácia. O fato de todas essas realidades se desenvolverem como aspectos da vida do capital obviamente implica que elas se materializem, se expandam e se expressem em todas as relações humanas de maneiras muito diferentes. O crucial é que a crítica não permaneça apenas em algumas dessas materializações, mas que alcance a fonte, a raiz, que seja radical.
[10] – A democracia não é uma forma política, é o modo de vida típico do mundo mercantil generalizado e sua essência é a ditadura do capital, independentemente de se cristalizar no plano político como governo militar, república, monarquia, etc. Recomendamos a leitura do livro “Contra a Democracia” de Miriam Qarmat.
[11] – Ou seja, fazem parte da verdadeira comunidade de luta que peleia contra o capital, contra o Estado, contra suas medidas. Queremos esclarecer este ponto porque nos opomos e denunciamos todos aqueles pseudo-revolucionários que não só reproduzem em seu ser o pânico que o Estado semeia, mas também colaboram com ele ou dão apoio crítico, difundindo o terror do Estado e favorecendo a repressão. Alegando comunismo ou anarquia, esses pseudo-revolucionários seguem à risca os ditames do Estado, defendem o confinamento e outras medidas de controle, olhando para os proletários que se recusam a se submeter, se posicionando contra quem se reúne para lutar, taxando de suspeitos aqueles que desobedecem ao Estado.
[12] – O que mostra nossa incapacidade de corroborar ou refutar essas perguntas e mostra como nossas vidas estão ficando fora de controle.
Análise dos episódios locais do ciclo mundial
Iraque, de um motim a uma reforma impossível 2018-2019 (novembro de 2019)
Tristan Leoni
A primeira parte foi originalmente publicada em francês por Tristan Leoni em novembro de 2019, disponível em: <https://ddt21.noblogs.org/?page_id=2517>.
Tradução ao espanhol por “Pensamiento inútil”, publicada em 28 de fevereiro de 2020, disponível em: <https://inutil.home.blog/2020/02/28/irak-del-motin-a-la-reforma-imposible-2018-2019/>.
A tradução da primeira parte é baseada exclusivamente na versão em espanhol da qual foi traduzida.
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Primeira parte: Raiva e Incêndios, 2018
“Eu saí da escola primária, mas já sabia atirar com a Kalachnikov. Treinávamos no bairro”. Um habitante de Basra, ex-miliciano [1].
Desde o esmagamento do Estado Islâmico (EI) no outono de 2017, as notícias do Iraque têm sido regularmente perturbadas por episódios de manifestações e motins com o pano de fundo das demandas sociais básicas (por acesso à eletricidade, água potável e emprego) e denúncias de corrupção do pessoal político.
No contexto de paz e harmonia nacional finalmente recuperado, abre-se um período particularmente favorável para iniciar reformas e tentar satisfazer as imensas expectativas da população. Valioso capital político que o governo esbanjou em apenas alguns meses de intensa inação. A raiva e a frustração da população, mais uma vez, não têm limites; os esforços e sacrifícios feitos durante a guerra contra o califado foram em vão. Com o passar dos meses, as ondas de mobilização, a violência e a determinação dos manifestantes pareciam aumentar; distúrbios, incêndios e confrontos com agências de aplicação da lei abalaram cada vez mais o país. Até este mês de outubro de 2019, quando o movimento de protesto entra em uma nova fase, de maior magnitude, mas com práticas diferenciadas. Embora o governo esteja mais do que nunca exposto a críticas, sabemos que o estado será preservado.
Um país em ruínas
Guerra após guerra, ruína após ruína. De 2014 a 2017, a metade sunita do norte do Iraque é mais uma vez devastada pelos combates, primeiro pela conquista incendiária liderada pelo EI (que se deteve a 100 km ao norte de Bagdá) e depois por sua libertação muito lenta. O custo da destruição vinculada a este conflito foi estimado pelo Banco Mundial, em janeiro de 2018, em 45,7 bilhões de dólares. Em algumas áreas está tudo destruído, as cidades estão quase totalmente arrasadas, em outras não sobrou nenhuma infraestrutura. Por exemplo, apenas 38% das escolas do país ainda estão de pé e apenas metade dos hospitais. Uma cidade como Mosul foi apenas “libertada” do EI em troca de 8 milhões de toneladas de entulho e centenas de milhares de pessoas deslocadas [2].
Obviamente, a economia do país não se libertou do setor essencial de hidrocarbonetos, que representa 88% dos recursos orçamentários, 51% do PIB e 99% das exportações do país. O Iraque continua sendo o segundo maior produtor de petróleo da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), depois da Arábia Saudita, com uma produção média de 4,5 milhões de barris por dia. Algumas infraestruturas foram particularmente afetadas, por exemplo a refinaria de Baiji, a maior do país, que apenas será parcialmente reiniciada na primavera de 2018. Durante vários anos, o Iraque teve de importar produtos refinados (incluindo combustível), gás e eletricidade de países vizinhos, particularmente o Irã [3]. Três quartos da infraestrutura hidráulica e metade das usinas foram destruídas. Dependendo da região, os iraquianos recebem apenas entre cinco e oito horas de eletricidade por dia e a escassez de água potável é crônica; em Bagdá, por exemplo, um quarto dos habitantes não tem acesso à água potável. A produção agrícola também diminuiu, em particular devido à destruição dos sistemas de irrigação, exacerbando um êxodo rural já endêmico.
Em 2018, a taxa oficial de desemprego no Iraque era de 23%, mas deve chegar a 40% entre os jovens (os menores de 24 anos representam 60% da população). Na verdade, há relativamente pouco trabalho no Iraque. O setor econômico primário, o petróleo, em última análise, fornece poucos empregos, especialmente porque as empresas estrangeiras contratam muitos migrantes asiáticos (que são considerados mais dóceis e amigáveis do que os trabalhadores locais). O setor privado continua fraco e, de fato, existem apenas dois ramos de atividade que dão emprego à população: primeiro, a administração pública, com cinco milhões de funcionários (incluindo aposentados), ante meio milhão em 2003; em segundo lugar, o setor da violência, com o exército iraquiano totalizando cerca de 200.000 homens, e o Hashd al-Chaabi, unidades de mobilização popular (PMUs), cerca de 100.000. Este último é uma coalizão de cerca de cinquenta milícias, principalmente xiitas, que cresceu fortemente em 2014 depois que a fatwa do Grande Aiatolá Ali al-Sistani [4] ordenou a mobilização contra as tropas do EI. Dezenas de milhares de voluntários (a maioria formada por desempregados), um terço dos quais são da província de Basra, responderam a este apelo. Milhares de pessoas morreram e muitas voltaram feridas, às vezes com amputações [5]. O fim da guerra contra o EI leva a uma desmobilização parcial dessas tropas; um miliciano de volta à vida civil significa uma fonte a menos de renda para uma família e mais uma boca para alimentar.
No Kuwait, em fevereiro de 2018, em uma conferência sobre a reconstrução do país, enquanto o governo iraquiano pede mais de 88 bilhões de dólares, a comunidade internacional só promete cerca de 30 bilhões na forma de créditos e investimentos (em particular Turquia, Kuwait, Arábia Saudita e Qatar) [6]. Porém, devido à corrupção excepcional, que está entre as maiores do mundo, sabe-se que parte da ajuda internacional – assim como parte da receita do petróleo – desaparece no bolso dos políticos locais; sucessivos governos desviaram desde a queda de Saddam Hussein em 2003 cerca de 410 bilhões de euros, o dobro do PIB do país.
Para piorar a situação, o Iraque outrora devastado pela guerra, endividou-se, em 2016 o país fechou um acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI) e, em troca de empréstimos, prometeu tomar medidas de austeridade (redução do número de funcionários, aumento do preço da eletricidade, aumento dos impostos alfandegários e de renda, etc.).
Como podemos ver, no Iraque, os anos de libertação e reconstrução provavelmente não serão descritos como gloriosos. A decepção, frustração e raiva dos habitantes parecem tão grandes como antes do episódio do Califado; ou porque eles realmente não se beneficiam disso (veteranos de guerra ou civis arruinados ou deslocados), ou porque eles perderam tudo de novo (partidários do EI, sunitas humilhados pela ocupação xiita). Parece haver um retorno ao status quo ante (nota da tradução: expressão em latim: Status quo ante bellum, cujo significado é: “o estado em que as coisas estavam antes da guerra”). Ou pior.
As premissas da revolta (2011-2015)
Durante a Primavera Árabe de 2011, milhares de iraquianos saíram às ruas de muitas cidades para expressar sua raiva contra um regime (já) corrupto e (já) deploráveis condições de vida. O movimento é rápida e violentamente reprimido pelo primeiro-ministro Nouri al-Maliki, ao custo de dezenas de mortes. Como a segurança parecia ter sido definitivamente restaurada em todos os níveis, as tropas americanas deixaram o país no final do ano. Depois disso, as províncias sunitas experimentaram novos episódios de protesto e a resposta do governo foi idêntica: a polícia. Isso foi o suficiente para enriquecer o terreno fértil para o crescimento do EI e explicar o motivo pelo qual parte da população vai abraçá-lo em 2014 como um libertador.
Apesar da guerra, manifestações populares contra a corrupção estouraram em Bagdá, apoiadas pelo clero xiita; em julho de 2015, eles eram liderados principalmente por apoiadores da estrondosa Moqtada al-Sadr [7]. Mas no sul do país, em Basra e Kerbala, são as repetidas quedas de energia que levam principalmente as pessoas às ruas. Para acalmar os ânimos, o primeiro-ministro Haidar al-Abadi, no cargo desde 2014, se contenta em prometer reformas… que não vão acontecer. A raiva dos iraquianos aumenta novamente de fevereiro a maio de 2016; incluso a “zona verde”, o perímetro ultrasseguro de Bagdá que abriga prédios oficiais [8], é invadida brevemente, e o parlamento é ocupado por manifestantes sadristas. Uma nova tentativa de ocupação em fevereiro de 2017 não teve sucesso, com quatro mortos e dezenas de feridos. Em frente à “zona verde”, na margem oposta do Tigre, a Praça Tahrir tornou-se um local simbólico de protesto; onde geralmente às sextas-feiras após a oração, grupos de ativistas e manifestantes se reúnem com seus cartazes. Mas o epicentro da revolta proletária está mais ao sul.
Veneza à deriva
A província do sudeste tem uma população de cerca de cinco milhões de habitantes, mas apenas sua capital, Basra, tem uma população de três a quatro milhões. Em teoria, é uma das regiões mais ricas do país (senão do mundo), com quase 80% do petróleo do Iraque extraído dela (mais do que do vizinho Kuwait). A cidade abriga uma importante atividade petroquímica e, na periferia, os únicos portos do Iraque abertos para o Golfo Pérsico, incluindo o porto de águas profundas de Umm Qasr (50 km mais ao sul). Deste ponto totalmente saturado, mercadorias (especialmente alimentos) entram no Iraque e milhões de barris de petróleo são exportados todos os dias. Muitos investidores estrangeiros estão presentes na cidade (por exemplo, companhias marítimas francesas ou italianas) e não faltam estudos para novas infraestruturas industriais e logísticas. Nem tampouco os projetos imobiliários faraônicos dos mais delirantes: construção de hotéis cinco estrelas, casas de alto padrão, shopping centers, bairros comerciais com a torre mais alta do mundo (230 andares); o suficiente – alguns esperam – para rivalizar com Dubai. Enquanto isso, a atividade econômica real traz milhões de dólares todos os dias para o estado iraquiano, quase nada para a região e menos ainda para seus habitantes.
A província de Basra tem sido, durante muito tempo, uma área agrícola de grande importância, conhecida por suas tamareiras. O estuário Chatt Al-Arab, que costumava ser uma agricultura ecologicamente rica e exuberante, se transformou em um inferno ecológico, devastado por décadas de guerra, concreto e poluição industrial – com incidência ad hoc de câncer para sua população. Mas, o que é pior, entre a elevação do nível do mar devido ao aquecimento global e a diminuição do fluxo dos rios devido à irrigação intensiva (construção de barragens na Turquia e no Irã, resíduos no Iraque), estamos testemunhando agora uma salinização crescente de terra e água subterrânea.
“Algumas ervas daninhas estão espalhadas pelo pedaço de terra rachado. ‘Antigamente tudo era muito verde aqui. Eu plantei vegetais, forragem para meus animais, tâmaras e maçãs’. Com os seus quatro hectares de terra, o seu rebanho de cerca de 30 ovelhas e algumas vacas, este agricultor podia ganhar até 25 milhões de dinares por ano (cerca de 20.000 euros). ‘Mas este ano, perdi tudo. Nada vai crescer. Tenho três filhos para alimentar, então, para sobreviver, vendo meus animais’. Dada a escassez de água potável, esse homem de 60 anos deve encher os cochos com água engarrafada” [9].
Recentemente, o governo teve que proibir plantações que consomem muita água doce, como milho e arroz. Isso, junto com a expropriação de fazendeiros para a expansão da infraestrutura de petróleo, está contribuindo para um êxodo rural significativo que alimenta as favelas e assentamentos informais nos arredores de Basra. Assim, a população da cidade aumentou em mais de um milhão de habitantes desde 2003. A “taxa de criação de empregos” obviamente não seguiu a mesma taxa e um terço da população vive agora abaixo da linha da pobreza, com menos de 2 dólares um dia. Os majestosos canais da cidade, que antes a tornavam conhecida como a “Veneza do Oriente Médio”, agora parecem esgotos a céu aberto e lixões flutuantes. Seus habitantes têm pouco ou nenhum acesso a serviços públicos básicos como água encanada, eletricidade ou gerenciamento de lixo [10]. Na tentativa de resolver essas questões, a governadoria de Basra assinou acordos diretamente com os países vizinhos. O Kuwait, por exemplo, abastece as usinas de energia iraquianas com combustível diariamente, mas isso se deve principalmente ao temor de que ondas de migrantes cruzem sua fronteira. O fornecimento de eletricidade do Irã está sujeito a riscos, como sanções dos EUA ou dificuldades de pagamento. Quanto à Arábia Saudita, que ainda assim deseja se opor à influência de Teerã, por enquanto apenas se contenta com promessas.
Os habitantes de Basra não se conformam com isso, certamente a região preserva traços de uma tradição de luta, especialmente nos sindicatos e no passado a influência dos movimentos políticos marxistas foi muito importante [11]. O xiismo político iraquiano permeou nessa região na segunda metade do século 20 (para conter a influência comunista), contando com o verniz pró-justiça social que essa religião possui. Uma insurreição quase mítica como a de 1991 contra o regime de Saddam Hussein permanece na memória. A capital da província, compreensivelmente, não é conhecida por sua estabilidade social e as manifestações fazem parte da vida cotidiana lá.
Os distúrbios de julho / A eletricidade
As notícias iraquianas do verão de 2018 deveriam ter sido dominadas pelos desdobramentos políticos após as eleições legislativas de maio. Essas eleições, nas quais foi registrada uma abstenção recorde de mais de 55%, resultaram em um parlamento fragmentado sem uma maioria clara.
À frente estava a coalizão Sayirun (Em Movimento), que poderia ser descrita como populista e nacionalista; uma aliança sem precedentes de apoiadores xiitas do soberano Moqtada al-Sadr e do modesto Partido Comunista Iraquiano (este último, entretanto, tem apenas 2 deputados dos 54 membros eleitos da coalizão). Em segundo lugar, a Fatah Alliance (Aliança da Conquista); Xiita ortodoxo e politicamente inspirado no modelo iraniano, é liderado por Hadi al-Ameri; braço político da UMP, obtém sua legitimidade de sua participação ativa na luta contra o EI. A formação do Primeiro-Ministro Al-Abadi, o Partido Islâmico Al-Dawa, está apenas em terceiro lugar.
Se, a princípio, esses blocos políticos parecem difíceis de conciliar, pelo menos dois deles têm de unir forças para nomear um primeiro-ministro e dividir o poder; isso é ainda mais complexo porque eles devem respeitar as cotas étnico-confessionais na distribuição de cargos e, finalmente, não devem incomodar Teerã ou Washington. Depois de um mês de negociações e mudanças espetaculares de rumo, a primeira etapa parece ter passado: um acordo para a formação de um governo foi finalmente alcançado entre Haidar al-Abadi e Moqtada al-Sadr.
Mas enquanto os políticos nos palácios com ar-condicionado da “zona verde” lutam febrilmente pela alocação de ministérios, os habitantes de Basra enfrentam a pior crise de água do Iraque, bem como terríveis ondas de calor. Com temperaturas acima de 50°C, ventiladores, ares-condicionados e geladeiras estão se tornando mais do que essenciais. A eletricidade ainda é necessária. Em 6 de julho, devido a contas não pagas, o Irã simplesmente fechou várias linhas de energia, incluindo a que abastece Basra. Os proletários, percebendo que a solidariedade xiita tem seus limites, tiveram que recorrer a seus geradores antigos, caros e poluentes. Quanto às autoridades iraquianas, não encontram outra solução senão pedir aos habitantes… que economizem energia.
Dois dias depois, no domingo, 8 de julho [12], um tipo bastante comum de manifestação ocorreu nos arredores de Basra: algumas dezenas de pessoas bloquearam uma estrada que leva aos campos de petróleo West Qurna-2 (explorados pela empresa russa Lukoil) e West Qurna-1 (pela Exxon Mobil), evitando que os funcionários acessem os campos. Eles esperavam conseguir alguns empregos, mas a situação se degenerou, um manifestante foi baleado e morto pela polícia [13]. Na época, ninguém sabia que esse evento acenderia o pavio.
Parece que os xeiques tribais locais buscaram primeiro justiça e reparação e depois receberam apoio de outras tribos. As manifestações recomeçaram na terça-feira seguinte. No dia seguinte, os manifestantes tentaram entrar nas instalações de petróleo perto de Basra, entraram em confronto com as forças de segurança e incendiaram os prédios de entrada do local. A tensão era tanta que as petrolíferas estrangeiras ordenaram a evacuação de seus executivos. Nos dois dias seguintes, manifestações ocorreram em várias cidades do sul do país (Basra, Nassiriya, Najaf, Samawa e Kerbala) até Bagdá. Em muitos casos, os manifestantes tentaram bloquear rotas economicamente estratégicas, como campos de petróleo, passagens de fronteira (para impedir a passagem de caminhões), aeroportos e o porto de Umm Qasr. Os prédios oficiais foram ocupados. Houve confrontos com a polícia e feridos em várias cidades.
Na sexta-feira, dia 13, o primeiro-ministro Haidar al-Abadi viajou para Basra, onde se reuniu com líderes militares, políticos, tribais e econômicos para tentar acalmar a população anunciando (sem maiores detalhes) que liberaria “os fundos necessários” para a cidade. Por ocasião do sermão de sexta-feira, o Grande Aiatolá Ali al-Sistani, fiel à sua postura equilibrada, deu seu apoio aos manifestantes, mas pediu-lhes que evitassem a desordem e a destruição. No entanto, ao anoitecer, revoltas eclodiram em várias cidades; os manifestantes, embora muito respeitosos com seus religiosos, optaram por ignorar suas recomendações e, pelo contrário, atacaram edifícios oficiais, instalações de partidos políticos e milícias (com exceção de organizações sadristas), e até mesmo tentaram incendiá-los. A luta com as forças de segurança continuou durante a noite; oito manifestantes foram mortos. Ao longo da semana seguinte, essas manifestações se repetiram e se espalharam por outras províncias do sul do país.
O que esses manifestantes querem? Principalmente água, eletricidade, melhores serviços e empregos. Um homem de 25 anos, formado pela Universidade de Basra, disse: “Queremos empregos, água potável e eletricidade. Queremos ser tratados como seres humanos, não como animais” [14]. Outro funcionário de 29 anos afirmou: “As pessoas estão com fome e vivem sem água e sem luz. Nossas demandas são simples: mais trabalho, estruturas de dessalinização de água e construção de usinas” [15]. Além dessas demandas materiais básicas, os manifestantes acrescentaram uma denúncia vaga, mas virulenta, da corrupção e de todos os “ladrões” que governam o país; eles também fizeram slogans políticos parecerem mais explícitos, como “O povo quer que o regime caia!”.
Conforme a semana avançava, a raiva expressa também assumiu matizes de soberanismo, com os manifestantes gritando: “Fora com o Irã! Bagdá livre!”. Os partidos xiitas, que estão no poder há anos, estão de fato associados a um Irã cujo domínio sobre o país parece estar se expandindo e os símbolos da República Islâmica (muito presentes no sul do país) servem de escape para a ira dos amotinados: por exemplo, atear fogo a faixas e painéis em homenagem a Khomeini (fundador da República Islâmica do Irã).
Quem são esses manifestantes? Em primeiro lugar, eles são homens, exclusivamente; especialmente os jovens (às vezes muito jovens), proletários pobres e desempregados, incluindo jovens licenciados (os menores de 35 anos representam 70% da população). As manifestações são bastante espontâneas, não respondem ao apelo de nenhum partido ou sindicato, não surge nenhum líder ou dirigente e, embora localmente as reuniões possam ser iniciadas por militantes ou xeiques tribais, rapidamente se tornam incontroláveis. Inicialmente, a mobilização parece dizer respeito apenas aos xiitas (que ainda assim representam 60% da população) e às regiões do país e bairros da capital em que são maioria, mas logo fica claro que realmente transcende a divisões da comunidade, das quais os sunitas participam, e algumas regiões mistas são, por sua vez, afetadas [16].
Desde o início, a raiva dos manifestantes foi dirigida contra a elite política e seus símbolos, às sedes da autoridade, como governos, conselhos municipais ou tribunais; os escritórios dos partidos políticos são regularmente atacados, saqueados e queimados. Esses jovens proletários usam a violência de uma forma bastante “natural”, espontânea e primitiva. Isso pode ser facilmente explicado pela dureza do cotidiano iraquiano, pela “brutalização” que os anos de guerra infligiram à sociedade (no sentido de George L. Mosse), mas também por uma cultura popular que banaliza a violência [17]. O governo iraquiano prefere denunciar a presença de “vândalos” infiltrados nas manifestações. No entanto, esse uso moderado da violência parece estar se espalhando, ou, pelo menos, sendo aceito por outras categorias de manifestantes, como afirma a jornalista Hélène Sallon: “Essa disposição de usar a violência foi mais tarde compartilhada por muitos manifestantes. Pessoas que não eram necessariamente daquela geração raivosa e muito jovem me disseram: Bem, sim, porque não temos outro recurso, eles não nos ouvem, apenas fazem promessa após promessa. E então, em algum momento, sim, por que não violência?” [18]. Onde estaríamos sem os apelos incessantes de contenção por parte das autoridades políticas e religiosas?
O jornalista nota, no entanto, uma mobilização mais fraca em Bagdá, talvez pelo peso que Moqtada al-Sadr ali exerce sobre uma parte do proletariado, mas também, sem dúvida, pelo distanciamento entre os militantes e os jovens proletários que seguem nas ruas: “Em Bagdá, vemos que esse movimento também não decolou, porque tenho a impressão de que o protesto lá é muito mais politizado, no sentido dos partidos, e vimos nas manifestações deste verão algumas diferenças entre esses ativistas mais velhos, mais politizados e mais apegados aos partidos, e a essa nova geração, diferenças que eles próprios não conseguiam entender e das quais não tinham certeza de suas intenções. Vimos em Bagdá uma dificuldade maior na capacidade de mistura do movimento, mais do que em Basra ou Najaf, onde as razões socioeconômicas são compartilhadas por todos” [19].
As autoridades, atordoadas pela urgência e desordem, só gradualmente perceberam a magnitude da revolta. A primeira coisa que eles tiveram que fazer foi limitar a destruição, daí a implementação de um toque de recolher noturno e o envio de tropas de choque usando gás lacrimogêneo e canhões d'água. Mas o exército será chamado rapidamente para proteger as instalações de petróleo que os manifestantes regularmente ameaçam entrar. Para limitar a mobilização, o acesso à Internet é interrompido várias vezes em todo o país, às vezes por vários dias, com interrupções totais ou às vezes apenas nas redes sociais.
O primeiro-ministro Al-Abadi adotará publicamente uma postura conciliatória com os manifestantes, cujas demandas legítimas ele diz entender e diz que quer proteger o direito de manifestar-se (pacificamente). Ele também promete acelerar projetos de água e eletricidade no sul, convida delegações de líderes tribais para se reunirem com ele e anuncia uma alocação imediata de 3 bilhões de dólares para a região de Basra. Apenas pode contar com o apoio do seu aliado Moqtada al-Sadr, que, embora já tenha um pé na “zona verde”, espera, como sempre, contornar o protesto sem chamar os seus apoiantes às ruas. Sem medo, o líder xiita não hesita em usar a hashtag do Twitter “a revolução da fome vence”; com cautela, pede aos manifestantes que mostrem contenção e não ataquem prédios públicos. Após mais de oito dias de manifestações e, sem dúvida, muitas hesitações, acreditando na continuidade do movimento, ele pede a seus deputados que suspendam as negociações para a formação de um novo governo até que as reivindicações dos manifestantes sejam atendidas.
O 20 de julho parece ser um ponto de inflexão. Diante do imponente aparato policial e militar implantado tanto nas províncias do sul quanto na capital, os manifestantes evitaram o confronto e se aglomeraram nas principais praças públicas. Em Bagdá, vários milhares de manifestantes tentaram se aproximar da “zona verde”, mas a polícia os fez retroceder. As manifestações, que se tornaram muito menos violentas, continuaram até o domingo, dia 22. Nessa época o movimento chega ao fim, após quatorze dias de manifestações em todo o sul do país, incluindo pelo menos oito dias de distúrbios. A repressão deixou 11 mortos, a maioria deles manifestantes mortos a tiros. Essa mobilização, essa violência e essa repressão parecem sem precedentes no Iraque.
Motins de setembro / A água
Alguém poderia pensar que, uma vez que a revolta acabasse, o governo poderia desfrutar de um momento de trégua, mas isso não aconteceu. Tudo está recomeçando em Basra, desta vez por causa da água. Devido às deploráveis condições sanitárias e meteorológicas, a água distribuída pelas autoridades, a partir de agosto, mostra-se muito mais salgada e poluída do que de costume. Em poucas semanas, seu consumo provoca a intoxicação e hospitalização de mais de 30.000 pessoas. Como de costume, o governo responde com alvoroço, imaginando que a suspensão do Ministro da Eletricidade e de alguns funcionários será suficiente para acalmar os ânimos e permitir que a “zona verde” volte ao seu pitoresco curso diário. No entanto, um mau sinal, no domingo, 2 de setembro, centenas de manifestantes bloquearam vários pontos estratégicos na província de Basra. No dia seguinte, em Bagdá, realiza-se a reunião inaugural do parlamento eleito em maio; dividida entre a aliança de Moqtada al-Sadr e o primeiro-ministro Haidar al-Abadi por um lado e a do líder da milícia pró-iraniana Hadi al-Ameri e o ex-primeiro-ministro Nouri al-Maliki por outro, não podendo eleger um presidente da câmara.
Na terça-feira, vários milhares de pessoas se reuniram em Basra para protestar contra a negligência das autoridades. As forças da ordem dispararam para o ar e usaram gás lacrimogêneo para dispersá-las, eclodiram confrontos. No final do dia, seis pessoas foram mortas. Os manifestantes foram ainda mais numerosos na quarta-feira. Na quinta-feira, 6 de setembro, o acesso ao porto de Umm Qasr foi bloqueado por manifestantes e, à noite, em Basra, agitadores atacaram prédios públicos e sedes de partidos políticos, incluindo o consulado iraniano, sendo repelidos pelas forças de segurança.
As autoridades, temendo a eclosão de manifestações após as orações de sexta-feira (que acontecem ao meio-dia), enviarão um grande número de policiais para Basra e introduziram um toque de recolher na cidade a partir das 16 h. No entanto, durante o dia os manifestantes tentam entrar em um dos centros petrolíferos próximos à cidade e outros bloqueiam os acessos a Umm Qasr novamente, a situação se intensifica à noite. Os moradores se reúnem nas ruas e, em números crescentes, atacam rapidamente edifícios do governo, escritórios de partidos e milícias, as oficinas e a residência do governador regional, queimando tudo o que podem. O que causa grande repercussão, até internacionalmente, é o assalto, pela segunda vez, ao consulado iraniano, e, desta vez, para se desfazer em fumaça. No decorrer da noite, mais três manifestantes são mortos a tiros pela polícia.
O dia seguinte, sábado, 8 de setembro, é particularmente calmo em comparação ao precedente. O porto de Umm Qasr retomará suas atividades e a polícia estará de prontidão. Alguns militantes que se apresentaram como “organizadores” dos protestos denunciaram a destruição do dia anterior e anunciaram que parariam o movimento. O toque de recolher será finalmente suspenso à tarde. Deve-se notar que, pela primeira vez, o comandante da UMP declara que suas tropas estão prontas para se posicionar nas ruas de Basra para garantir a segurança e proteger os manifestantes pacíficos contra os agentes provocadores.
Por outro lado, o governo promete mais uma vez liberar recursos (sem dar valor ou prazo), embora ninguém tenha visto ainda nenhum dos 3 bilhões de dólares prometidos em julho. No mesmo dia, o parlamento se reunirá com urgência para discutir a crise de Basra, mas parte da assembleia, incluindo a Fatah Alliance (o braço político do UMP), pede a renúncia do primeiro-ministro Al-Abadi. No entanto, teatralmente, esse pedido será atendido por Moqtada al-Sadr, que até então tinha sido um aliado de Al-Abadi! O líder soberanista, portanto, insinuou uma aliança com o bloco pró-iraniano. Essa mudança de curso foi facilitada pelas posições assumidas pelo Grande Aiatolá Ali al-Sistani, que era altamente crítico em relação ao primeiro-ministro. Este último foi finalmente forçado a jogar a toalha e foi Adel Abdel Mahdi, ex-ministro do Petróleo, quem foi nomeado para sucedê-lo (ele só assumiu o cargo em 25 de outubro de 2018).
A situação permanece um tanto confusa, mas, embora alguns denunciem a agitação como resultado de um complô para conter a influência iraniana, parece, paradoxalmente, que o bloco pró-iraniano emergiu mais forte [20].
Nada que, a princípio, pudesse satisfazer os manifestantes, dos quais, em menos de uma semana, treze foram mortos e dezenas a mais feridos. Nada que anuncie uma melhora em suas condições materiais de vida. No entanto, as manifestações não estão recomeçando e a vida quotidiana em Basra e Bagdá está voltando à normalidade. Por quanto tempo? Todos estão esperando a próxima explosão e permanecem em guarda. Mas ninguém suspeita que levará cerca de um ano para ver os proletários iraquianos de volta às ruas, equipados com sua raiva incendiária.
Fim da primeira parte.
Notas
[1] – Quentin Müller, “Mutilés de Bassora, no Iraque: ‘J’aurais préféré aller au paradis’”, Libération, 28 de agosto de 2018.
[2] – Sobre esta cidade, podemos recomendar o documentário de Anne Poiret: “Mossoul, après la guerre”, lançado em 2019 pela Arte. Disponível em: <https://www.arte.tv/fr/videos/080541-000-A/mossoul-apres-la-guerre/>.
[3] – Os Estados Unidos concederam isenções ao Iraque para o comércio com o Irã, apesar das sanções que impõem a este país (relacionadas ao acordo nuclear).
[4] – O Grande Aiatolá Ali al-Sistani, uma figura respeitada em todas as comunidades por sua suposta sabedoria, é a mais alta autoridade religiosa do xiismo no Iraque. Ele desempenha o papel de árbitro, pesando o equilíbrio político dos dois lados, sempre à direita do atual equilíbrio de poder. No entanto, devido à sua aceitação do sistema político desde 2003, ele é um tanto ignorado aos olhos de muitos xiitas iraquianos.
[5] – Quentin Müller, op. cit.
[6] – Teva Meyer, “Reconstruire l’Irak: uma missão impossível?”, DSI, N° 143, setembro-outubro de 2019.
[7] – Moqtada al-Sadr, nacionalista xiita, soberanista e líder populista, goza de imensa popularidade entre o proletariado xiita iraquiano, mas não a adquiriu, ele a herdou de seu pai, o aiatolá Mohammad Sadeq al-Sadr, assassinado em 1999. Conhecido por sua versatilidade política e sua capacidade de manobra, ele é a personificação da oposição e da defesa dos pobres, sua aura foi um tanto maculada desde 2018 por sua participação no processo político institucional.
[8] – A “Zona Verde” é um enclave de alta segurança no coração da capital iraquiana que abriga o parlamento, ministérios, várias instituições e embaixadas. Algumas partes foram reabertas gradativamente à população ao longo de 2018, após quinze anos de fechamento total.
[9] – Noé Pignède, “Le sud de l’Irak face à une crise sanitaire et économique inédite”, La Croix, 29 de novembro de 2018.
[10] – Para uma descrição da cidade, ver por exemplo: Quentin Müller, “Bassora, la Venise d'Irak en péril”, orientxxi.info, 30 de agosto de 2018.
[11] – Myriam Benraad, “L'Irak est à nouveau en train de perdre la paix”, L'Opinion, 22 de agosto de 2018.
[12] – No Iraque, o fim de semana é de sexta a sábado e o domingo é o primeiro dia da semana.
[13] – Deve-se notar que, no Oriente Médio, disparar munição real (com uma Kalashnikov) na cabeça dos manifestantes para assustá-los e dispersá-los é uma prática comum dos órgãos de segurança pública. No entanto, é perigoso e pode, mesmo inadvertidamente, causar ferimentos ou morte. Este método é comumente usado nos eventos que evocamos no texto. Visar especificamente um manifestante é, portanto, apenas mais um passo que um policial pode facilmente dar no meio de um confronto violento, mesmo sem uma ordem específica de seu superior.
[14] – “Iraqi protesters withdraw from Najaf airport, air traffic resumes”, alarabiya.net, 13 de julho de 2018.
[15] – “Les manifestations s’étendent dans le sud de l’Irak”, lepoint.fr, 13 de julho de 2018.
[16] – Com exceção do Curdistão, que por suas especificidades sociais e políticas e sua autonomia muito avançada, permanece fora dessa mobilização, bem como daquela que terá início em outubro de 2019. Ver, por exemplo, Soulayma Mardam Bey, “Pourquoi les Kurdes d'Irak ne se soulèvent pas”, L'Orient le jour, 28 de novembro de 2019.
[17] – Loulouwa al-Rachid, “L’Irak après l’État Islamique: une victoire qui change tout ?”, Notes de l’Ifri, julho de 2017, p. 14
[18] – Hélène Sallon, “Le soulèvement social de Bassora, sintoma des maux de l’Irak”, 3 de outubro de 2018, Iremmo. Hélène Sallon, jornalista do Le Monde, é autora do livro altamente instrutivo “L'État islamique de Mossoul. Histoire d’une entreprise totalitaire”, La Découverte, 2018, 288 p.
[19] – Ibidem.
[20] – O primeiro-ministro Al-Abadi havia “relutantemente” se posicionado a favor de Washington, aplicando sanções a seu vizinho iraniano, atraindo a ira de Teerã. Elie Saïkali, “Lâché par Sadr, Abadi plus isolé que jamais”, L’Orient le jour, 10 de setembro de 2018.
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Segunda parte: 2019, reforma política ou guerra civil?
Original em francês disponível em: <https://ddt21.noblogs.org/?page_id=2545>.
Tradução da segunda parte para o inglês realizada por Friends of the Class War, disponível em <https://www.autistici.org/tridnivalka/tristan-leoni-iraq-from-riot-to-impossible-reform-2018-2019>.
A tradução ao português é baseada na versão em inglês com a inclusão das notas que estavam presentes apenas na publicação original em francês (da onde foram traduzidas para serem incluídas também).
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Após as revoltas de outubro de 2018, o Iraque experimentou doze meses de relativa calma. No entanto, basicamente a situação econômica e social permaneceu praticamente a mesma. O Iraque não experimentou uma nova onda de protestos até outubro de 2019, que inicialmente se revelou muito semelhante à anterior. O que é novo, no entanto, é a magnitude e intensidade da mobilização, o nível de violência usado pelos manifestantes e o nível de repressão. Após um intervalo de algumas semanas devido a uma peregrinação xiita, o protesto, que parecia extinto, foi retomado, mas parecia estar transformado, tanto na forma como no conteúdo, e tanto em termos de demandas como na sociologia dos participantes. Com o passar das semanas, apesar das mortes, do cansaço e das fases de recuo, o movimento continua numa quase-rotina de manifestações e motins… mas não consegue encontrar uma saída. Embora o primeiro-ministro tenha prometido atender às demandas dos manifestantes, ele foi forçado a jogar a toalha no final de novembro, mergulhando o Iraque ainda mais na incerteza. No momento da redação, a mobilização permanece.
O primeiro-ministro Adil Abdul-Mahdi, que chegou ao poder em outubro de 2018, após a revolta proletária em Basra que causou a saída de seu antecessor, prometeu introduzir mudanças e combater a corrupção. Mas, como parece um hábito, ele não delineou nenhuma reforma significativa. É verdade que as agendas políticas não são ditadas por considerações econômicas e sociais, mas, de forma mais prosaica, por rivalidades comerciais e políticas. No entanto, estes últimos fazem parte da oposição entre Washington e Teerã, que tem sido particularmente forte desde maio de 2018 e a retirada americana do acordo sobre a energia nuclear iraniana.
1. Da remoção ao motim (29 de setembro – 5 de outubro)
Há sempre uma fagulha para desencadear uma mobilização, um pretexto para ir para a rua, um passo muito longe que leva a uma mudança, ainda que esta causa primeira rapidamente se torne ultrapassada ou mesmo esquecida [1]. No final de setembro, Bagdá enfrentou manifestações estudantis que foram reprimidas de forma bastante clássica pelo governo e a data de domingo, 29 de setembro, é considerada o ponto de partida do movimento [2]: várias centenas de pessoas se reuniram naquele dia para protestar contra a remoção de Abdul Wahab al-Saadi que aconteceu dois dias antes. Este comandante do Serviço de Contra-Terrorismo do Iraque [3], um herói nacional na luta contra o ISIS, é muito popular em algumas partes da população. Para seus detratores, ele é antes de tudo o homem dos Estados Unidos dentro do aparato militar. O caso provocou uma mobilização muito forte na internet, notadamente via Twitter com a hashtag “Somos todos Abdul Wahab al-Saadi”.
Dois dias depois, começaram as manifestações em várias cidades do país. Em Bagdá, o ponto de encontro dos manifestantes é obviamente a Praça Tahrir, em frente à “Zona Verde” na margem oposta do rio Tigre. A remoção já passou e os participantes adotam os slogans clássicos iraquianos para a melhoria dos serviços básicos, para a criação de empregos ou contra a corrupção, uma reminiscência da revolta de 2018. Um manifestante disse: “Tudo o que queremos é viver e nada mais, queremos viver como o resto do mundo. Queremos direitos muito básicos, eletricidade, água, emprego e remédios. Não queremos poder, dinheiro ou propriedade, tudo o que pedimos é para viver” [Deutsche Welle]. E outro acrescentou: “Estou sem trabalho. Eu quero me casar. Tenho apenas 250 dinares (menos de um quarto de dólar) no bolso e os funcionários do estado têm milhões” [Recapitulações de dinares].
Enquanto os manifestantes tentavam atravessar a ponte Al-Jumariyah, que os separa da “Zona Verde”, eles foram recebidos por canhões de água e bombas de gás lacrimogêneo, aos quais responderam com pedras e construindo barricadas de tipo com pneus em chamas e lixo [4]. Mas a polícia também usou munição real; dois manifestantes foram mortos, um em Bagdá e outro em Nasiriya, e mais de 200 outros ficaram feridos.
No dia seguinte, quarta-feira, 2 de outubro, as forças militares e de segurança foram massivamente implantadas em Bagdá. As estradas principais foram bloqueadas por veículos blindados, blocos de concreto e arame farpado. A Internet foi cortada em todo o país (exceto no Curdistão); as autoridades, visando o Facebook, Twitter e WhatsApp, esperavam pôr fim à mobilização.
Mesmo assim, os manifestantes se reuniram na Praça Tahrir e em várias cidades provinciais, incluindo Basra, Najaf, Nasiriya, Wasit e Diwaniyah. Em Bagdá, a estrada que leva ao aeroporto (oeste da cidade) foi bloqueada com pneus em chamas. Os confrontos eclodiram em várias localidades, onde edifícios que simbolizam o poder, bem como as instalações de partidos políticos [5] e milícias foram invadidos. Pelo menos sete manifestantes foram mortos.
Enquanto denunciavam as ações de “desordeiros” e “infiltrados” [na França seriam chamados de “casseurs”, que significa quem participa de “quebra-quebra”] entre manifestantes pacíficos, as autoridades impuseram toques de recolher em várias cidades. Mas nada ajudou: as manifestações agora eram diárias em todo o sul do país e se transformavam em tumultos, geralmente ao anoitecer.
Em Bagdá, a Praça Tahrir se tornou em poucos dias um ponto de fixação a partir do qual os manifestantes tentaram chegar à “Zona Verde” forçando o caminho para a ponte sobre o rio Tigre. Mas os quase 500 metros da ponte foram fortemente defendidos pela polícia e segmentados por várias barreiras de concreto, pelas quais os dois lados lutam pelo controle [6]. Nos primeiros dias, as batalhas às vezes ocorriam ao redor da praça, por exemplo, em 3 de outubro em uma praça 500 metros mais ao norte, onde dois veículos blindados [Humvees] das forças de segurança foram incendiados pelos manifestantes, mas a violência foi depois restringida à margem do rio Tigre. Esta mobilização em grande escala no coração da capital é uma novidade em comparação com os eventos de 2018.
Depois de alguns dias, o movimento assume um aspecto antissistema e agora existe, além das demandas de natureza econômica básica, uma exigência bem explícita de renúncia do governo. Mas que força política poderia compensar a folga e, no processo, satisfazer os manifestantes?
Assim como em 2018, o governo parece estar dominado pela violência do levante e faz malabarismos desajeitados entre cenoura e pau. Um toque de recolher completo foi imposto em Bagdá e em várias regiões, os funcionários públicos (ou seja, a maioria dos trabalhadores) foram instruídos a ficar fora das ruas. Apesar das ordens para mostrar moderação, os membros das forças de segurança frequentemente usam suas Kalashnikov para assustar os manifestantes, às vezes também para atingir os mais determinados deles ou para escapar de situações complicadas. Porque os combates têm sido particularmente acirrados e, até 3 de outubro, já morreram 31 pessoas, entre elas dois policiais (o que não é pouca coisa) [7]. Dois dias depois, o número de mortos já era de 100 mortos e 4.000 feridos. Durante esse período, houve muitas prisões, mas os manifestantes geralmente eram libertados após algumas horas em troca da assinatura de uma promessa de não voltar às ruas.
Do lado da cenoura, o primeiro-ministro Adel Abdul Mahdi explicou aos manifestantes que suas “demandas legítimas” foram ouvidas e que eles podem voltar para casa. Ele anunciou medidas sociais ambiciosas, incluindo seguro-desemprego, a construção de 100.000 unidades habitacionais e distribuição de terras subsidiadas, mas não definiu um cronograma. Ele se comprometeu a se reunir com os manifestantes para ouvir suas reivindicações e afirmou que os mortos durante as manifestações serão considerados “mártires”, o que significa que suas famílias terão direito a diversos benefícios.
Por sua vez, o muito influente Muqtada al-Sadr hesita (como sempre) entre elogiar a ordem (o poder, onde agora tem um pé dentro) e questionar o estabelecido: denunciou a violência dos serviços de segurança e apelou aos seus apoiadores para organizar manifestações pacíficas. Mas, em 4 de outubro, outra reviravolta acrobática, ele agora exige nada menos do que a renúncia do governo (que sua coalizão havia levado ao poder [ver a primeira parte deste artigo]) e a organização de eleições antecipadas!
No domingo, dia 6, a mobilização da polícia foi impressionante e a dos manifestantes muito limitada. As procissões foram impedidas de chegar à Praça Tahrir, o que levou a confrontos, especialmente no distrito de Sadr City, onde muitos manifestantes foram mortos ou feridos.
No dia seguinte, a calma voltou, a Internet foi restaurada e o protesto terminou. O número oficial de mortos nesta semana de violência foi de 157 mortos, incluindo 8 policiais, e cerca de 6.000 feridos. Além disso, 51 edifícios públicos e 8 sedes de partidos políticos foram incendiados. Algo nunca visto antes. O fim repentino dos protestos não é em si inédito, já que os movimentos sociais às vezes morrem de forma inexplicada e os comentaristas tentam, em vão, determinar a causa. A mídia ocidental geralmente não se interessa por isso, mas essa interrupção repentina pode ser facilmente explicada… pelo peso da religião: a celebração de Arba’een, que aconteceria este ano nos dias 19 e 20 de outubro [8]. Esta peregrinação xiita, parte da qual é feita a pé, atrai milhões de crentes de todo o mundo (mas principalmente de iraquianos) que vão para a cidade sagrada de Kerbala. Durante este período, o sul do país está paralisado, as cidades e vilas xiitas estão vazias e as estradas ficam cheias de peregrinos; a polícia e o exército são amplamente implantados para garantir a segurança.
Mas a política nunca está longe. Em 20 de outubro, alguns peregrinos agitam bandeiras iraquianas e entoam “Liberte Bagdá, fora corrupção!” ou “Não para a América! Não a Israel! Não à corrupção!”. Muqtada al-Sadr de fato pediu a seus apoiadores que dessem um aspecto anticorrupção a essa jornada.
2. Do motim à reforma? (25 a 27 de outubro)
Depois do Dia de Arba’een, esses milhões de peregrinos ainda não partiram para que as coisas voltassem ao normal. Não será bem assim. Já no dia 21, as forças de segurança iraquianas estavam começando a erguer fortificações em torno da “Zona Verde”. De fato, algumas pessoas já planejaram que a “retomada da turbulência social” [“rentrée sociale”] terá início na sexta-feira, 25 de outubro, ao sair das mesquitas, no aniversário da posse do primeiro-ministro. Os convites para manifestação naquele dia bem como as reuniões se multiplicaram nas redes sociais por iniciativa de ativistas da sociedade civil. Muqtada al-Sadr informou cautelosamente a seus apoiadores que eles têm “o direito de participar” dessas reuniões. O prazo dado pelo Grande Aiatolá Ali al-Sistani ao governo para responder às demandas dos manifestantes de outubro e para lançar luz sobre a violência que sofreram também expirou nesta data. Para piorar a situação, a comissão encarregada de investigar esses fatos deu suas conclusões alguns dias antes e anunciou a demissão de alguns oficiais. Nada que acalme uma população obcecada por boatos sobre tramas e presença de atiradores. Pelo contrário. A raiva está crescendo e, em antecipação, muitos iraquianos estavam estocando alimentos e combustível.
Na sexta-feira, dia 25, em seu sermão, o Grande Aiatolá exortou as forças de segurança e os manifestantes a “mostrarem moderação”. No início da tarde, a mobilização foi impressionante. Alguns manifestantes ocuparam os telhados dos edifícios que provavelmente hospedariam atiradores, incluindo uma torre abandonada de 18 andares com vista para a Praça Tahrir e a Ponte Al-Jumariyah, conhecida como Restaurante Turco.
As manifestações ocorreram em várias cidades no sul do país, incluindo Basra, Wasit, Nasiriya, Najaf, Karbala, Samawah, Amarah e Diwaniyah. As demandas econômicas ainda estavam muito presentes (água, luz, empregos, saúde). Notamos a notável participação, particularmente retratada, de algumas mulheres, inclusive mulheres sem véu, no meio de milhares de manifestantes do sexo masculino; uma delas disse: “Eu quero a minha parte do óleo!”.
Na capital, os manifestantes que se aproximavam da “Zona Verde” foram repelidos. Os confrontos eclodiram em muitas cidades. Uma parte do edifício da governadoria de Basra foi incendiada e dois carros da polícia sofreram o mesmo destino. A passagem da fronteira de Safwan foi bloqueada e incendiada. As instalações de um grupo de milícia foram atacadas com uma granada em Amarah, resultando em duas mortes. Durante o dia, pelo menos 27 ataques e queimadas de prédios oficiais ocorreram em todo o país, sem contar os ataques a escritórios de partidos ou casas de líderes políticos. O saldo do dia é particularmente pesado e sem precedentes: 63 mortos e 2.300 feridos! A maioria deles eram manifestantes mortos a tiros por munições reais das forças de segurança ou atingidos por disparos de gás lacrimogêneo de trajetória plana. Alguns teriam sido mortos por milicianos que defendiam suas instalações. Várias pessoas também morreram em incêndios em edifícios. Várias províncias estavam sob toque de recolher.
Em Bagdá, à medida que o confronto com a polícia se arrastava, os revoltosos acabaram erguendo barracas na Praça Tahrir para que ali passassem a noite e não precisassem retomar a praça no dia seguinte. Não muito longe dali, caminhões cheios de homens armados da milícia Sadrist Saraya al-Salam (Brigadas de Paz, ex-Exército Mahdi) foram posicionados para proteger os manifestantes. Uma presença longe de tranquilizar a todos (eles se retiraram após vinte e quatro horas).
No dia seguinte, as manifestações, motins e ataques a edifícios recomeçaram na metade sul do país; eles agora são diários. Dia após dia, o movimento se espalhou até mesmo para outras províncias, até então relativamente incólumes, onde os xiitas são minoria. Há relatos de manifestações estudantis em cidades como Tikrit (principalmente sunitas) ou, mais simbolicamente, em Mosul (Curdistão). Embora as reuniões geralmente fossem pacíficas, frequentemente se transformavam em tumultos noturnos. O toque de recolher parecia ser um meio de dissuasão, com os manifestantes às vezes até esperando que ele começasse antes de tomar as ruas.
Em Bagdá, a ponte que liga a Praça Tahrir à “Zona Verde” é o foco da atenção dos manifestantes. Armados com pedras e, mais raramente, com coquetéis molotov, tentaram repelir a polícia. Os mortos e feridos eram numerosos.
O domingo, 27 de outubro, foi um ponto de inflexão na mobilização. Durante esta nova semana, estudantes universitários e colegiais se juntaram ao movimento [9], incluindo estudantes religiosos da cidade sagrada de Najaf. No dia seguinte, o sindicato dos professores convocou uma greve nacional de vários dias em solidariedade. Juntaram-se os sindicatos de advogados, médicos, dentistas e engenheiros. Em muitas localidades, piquetes e protestos foram armados em frente às entradas dos prédios do governo para obstruir seu funcionamento.
A composição sociológica do movimento está, portanto, mudando. Não temos mais que lidar apenas com jovens proletários pobres de subúrbios desfavorecidos. Portanto, não é por acaso que as demandas estão mudando, ao passo que até agora eram antes de tudo materiais e muito básicas, e além disso havia apenas um ódio furioso dos corruptos. A ordem das prioridades mudou. Pela primeira vez, a imprensa fez ecoar testemunhos totalmente contrários ao que ouvíamos desde 2018, como aquele deste manifestante em Bagdá: “Perdemos o nosso país, não queremos terra, luz nem água, queremos ser livres e queremos derrubar este governo” [França 24]. Ou este médico de rua de 24 anos na Praça Tahrir [10]: “Nossas demandas são claras: mudar a lei eleitoral e realizar uma nova eleição que nos permita eleger a pessoa que queremos, não um partido que faz acordos às portas fechadas para decidir nosso futuro de acordo com seus próprios interesses” [The Washington Post].
As demandas são confusas e variadas. Mas, a partir de então, as reivindicações mais destacadas incluem a renúncia de todos os governantes, a revisão da lei eleitoral e da Constituição, o fim de um sistema baseado na etnia e identidade confessional, a diminuição do número de deputados, eleições antecipadas, redução do poder dos partidos, um governo de tecnocratas, um regime presidencial, etc.
A impressão que se segue é que há muito mais manifestantes e que o protesto está se tornando bem-humorado, quase alegre. De fato, no final de outubro, uma ligeira diminuição da violência era perceptível. O saldo oficial na época foi de 100 mortos e 5.500 feridos. Além disso, 98 edifícios foram danificados ou queimados. Mas não se tratava mais de simplesmente expressar raiva queimando tudo ao seu alcance; a reforma política é agora o lema. Uma questão em relação à qual o capital pode fazer concessões imediatas e de baixo custo; uma questão de conforto.
3. A forma do movimento
– A “Ocupa” no rio Tigre
Enquanto algumas tendas foram erguidas na Praça Tahrir durante os primeiros dias para fornecer um posto de primeiros socorros, áreas de descanso ou refeitórios, o objetivo era, atrás das linhas, fornecer suporte logístico para aqueles na linha de frente (300 metros adiante) que tentavam forçar a entrada na ponte Al-Jumariyah.
Gradativamente, dois fenômenos paralelos foram surgindo: por um lado, os confrontos nesta ponte diminuíram de intensidade e se transformaram em uma “guerra falsa” para proteger, simbolicamente, os manifestantes reunidos na praça. Por outro lado, a organização se expandiu rapidamente. Moradores, “empresários e lojistas, senão cidadãos comuns, que não podem participar das manifestações porque estão trabalhando” [11], traziam comida e água em solidariedade. Tornou-se necessário administrar a logística, organizar o preparo e a distribuição das refeições (principalmente porque a comida de graça atrai os habitantes mais pobres da capital), bem como os equipamentos (máscaras, capacetes). O restaurante turco tornou-se um anexo da praça e foram construídos dormitórios em alguns andares. Os trabalhadores manuais fizeram as ligações necessárias para abastecer a praça com água e luz. Os primeiros postos médicos improvisados deram lugar a uma enfermaria com médicos, enfermeiras e farmacêuticos voluntários, depois a um verdadeiro hospital. Os tuk-tuks (autorriquixás) fornecem transporte para os feridos.
Logo, dezenas de tendas foram erguidas, cobrindo toda a praça e transbordando para as estradas adjacentes. A praça é transformada em ponto de encontro de ativistas, sindicalistas, representantes tribais, membros da sociedade civil ou da classe média educada, espectadores, etc [12]. Há uma infinidade de estandes onde todos – associações, sindicatos, corporações, artistas – expressam suas demandas, dando à praça a aparência de um campo antiglobalização: uma tenda vira uma biblioteca militante, outra uma sala de cinema “revolucionária”, aqui se podem fazer propostas de emenda à Constituição, ali um estande promove o “made in Iraq” (contra produtos fabricados no Irã) ao lado de um vendedor de bandeiras tricolores, um escritório jurídico ou um estande do Partido Comunista do Iraque. Por sua vez, os “artistas de rua” decoram as paredes com pinturas murais políticas.
Com o passar dos dias, a praça se tornou um espaço de convivência mais confortável, restaurantes e vendedores ambulantes estão se expandindo rapidamente, cabeleireiros e barbeiros abriram lojas e, claro, salas de oração são abertas. Mas também é algo para se manter ocupado, porque os dias e as noites são longos, daí os shows e os torneios de xadrez. E depois tem o esporte: os maratonistas organizaram uma minimaratona, foram demarcadas quadras de vôlei e campos de futebol. Nas noites de jogos de futebol (como parte das eliminatórias da Copa do Mundo de 2022), uma enorme multidão assiste ao jogo em uma tela gigante. E quando o Iraque ganhou a partida, a festa durou a noite toda.
Embora seja um memorial dedicado aos manifestantes mortos, a atmosfera é festiva e bem-humorada. Como em Beirute, a música Baby Shark está a caminho de se tornar o (não muito guerreiro) hino da praça. Esse estilo de acampamento pode ser encontrado, em menor escala, em outras cidades, notadamente em Basra e Nasiriya.
A organização deve ser impecável porque, para algumas pessoas, deve refletir a imagem que têm do Iraque ideal… e evocam “uma espécie de mini-estado” na praça [13]. Assim, grupos de voluntários varrem as ruas e coletam lixo. Daí também a questão da segurança. Nos primeiros dias, os manifestantes montaram bloqueios de estradas ao redor da praça para redirecionar o tráfego. Em seguida, um serviço da ordem (SO) foi criado para controlar todas as entradas da praça; as pessoas são revistadas para evitar que armas e itens perigosos sejam contrabandeados. Se necessário, os indivíduos suspeitos são “denunciados” à polícia que patrulha as ruas adjacentes com o consentimento dos ocupantes [14]. As lojas (com cortinas fechadas) e os depósitos ao redor da praça são “protegidos” por SOs para evitar roubos ou saques. Enquanto muitos se orgulhavam do fato de que mulheres com carrinhos de bebê podiam se mover com segurança pela praça, os proletários mais determinados foram mandados embora.
– As mulheres
Outro dado marcante é que desde 27 de outubro as mulheres, até então ausentes da mobilização, se envolveram nas manifestações, embora ainda sejam uma minoria extremamente pequena. Na maioria das vezes, são mulheres universitárias e estudantes do ensino médio que se deslocam em grupo (frequentemente grupos só de meninas). Suas procissões às vezes são protegidas e supervisionadas por homens.
Sua presença é mais visível, claro, no centro da capital, a Praça Tahrir. Mas as mulheres podem ser maioria na cozinha comunitária, estande de primeiros socorros e arte de rua: “Essas mulheres e meninas ajudaram os feridos, carregaram os feridos, forneceram alimentos e suprimentos, pintaram slogans inspiradores nas paredes, lavaram roupas e limparam as ruas” [15]. Embora façam mais do que isso, a divisão do trabalho e a alocação de espaço continuam muito influenciadas pelo gênero.
Este envolvimento é uma novidade no Iraque, onde desde a década de 1990, e especialmente a partir de 2003, com a crescente islamização da sociedade, a situação das mulheres está piorando em todos os níveis (social, educacional, jurídico, trabalhista, violência, etc. [16]). Algumas pessoas consideram que o movimento de 2019 pode ajudar a mudar a visão “tradicional” de muitos iraquianos (e mulheres iraquianas), particularmente aquela que exclui as mulheres da vida política. Desse ponto de vista, vale ressaltar que as mulheres presentes na Praça Tahrir não são vítimas de assédio sexual generalizado ou violência (ao contrário do que aconteceu, por exemplo, em 2011 na Praça Tahrir do Cairo [17]).
Entretanto, pode-se perguntar qual é a situação além do centro de Bagdá, onde se concentram ativistas, estudantes e jovens da classe média, especialmente porque, não esqueçamos, a participação das mulheres ainda é uma minoria. Nas províncias, as manifestações costumam ter uma característica ainda mais dominada por homens. Embora algumas das principais cidades do país tenham acampamentos semelhantes ao da Praça Tahrir, a metade sul do país é conhecida por seu conservadorismo e as tradições tribais são dominantes lá, principalmente no que diz respeito às mulheres (necessidade de mostrar humildade, casamentos arranjados, sistema de dote, assassinatos por honra, etc.). As mulheres, especialmente as estudantes, muitas vezes têm que enfrentar a pressão familiar para se manifestar (algumas usam máscaras cirúrgicas, que são comuns entre os manifestantes, para evitar serem reconhecidas).
Por outro lado, assim que a situação fica mais tensa, assim que os confrontos começam, não vemos mais nenhuma mulher nas ruas, os distúrbios no Iraque são assunto de homem – isso obviamente não é uma questão de bravura. A propósito, mais de 99% dos manifestantes mortos são homens.
– Insurgência?
O que chama a atenção é o contraste entre o clima festivo da Praça Tahrir, “transformada em um polo carnavalesco” [18], e a dureza dos confrontos que acontecem a 500 metros de distância.
Depois de alguns dias de ocupação, a massa de manifestantes era tanta que transbordou da praça e aos poucos tomou conta da margem do rio Tigre a montante da ponte Al-Jumariyah. Devido ao crescente formalismo da Praça Tahrir, a ponte deixou de ser um ponto por onde se pretendia chegar à “Zona Verde”. A partir de então, todos defenderam suas posições em um confronto impressionante que parecia um espetáculo (os manifestantes tomaram posse de uma primeira barreira de concreto, e cada lado se posicionou em uma posição abrigada [19]). Os elementos mais radicais saíram, portanto, da praça e tentaram bloquear ou mesmo cruzar as três pontes localizadas mais ao norte (Al-Sinak, Al-Ahrar e Al-Shuhada). As forças policiais tentaram impedi-los. Muitas lutas aconteceram na Praça Al-Khalani e na Rua Al-Rasheed, pontos estratégicos de acesso a esse setor. Lutas eram geralmente muito violentas; com manifestantes (homens muito jovens) atirando pedras (muitas vezes com estilingues) e coquetéis molotov contra a polícia que respondeu com gás lacrimogêneo, pedras e às vezes coquetéis molotov! A aparência desleixada das forças de segurança às vezes era tal que se tinha a impressão de assistir a duas gangues rivais lutando entre si armadas com paus. Exceto que um deles tinha Kalashnikovs. Nessas condições, um dia de tumulto sem morte ou ferimentos graves é um milagre. Vários membros das forças policiais também morreram durante os confrontos.
Na capital, porém, o confronto mantém um aspecto simbólico e ritualizado. Não se estende além do distrito ao norte da Praça Tahrir, não há destruição, quase nenhum saque e nenhuma tentativa de espalhar o conflito para outras partes da cidade (exceto muito ocasionalmente). Além disso, é claro que, para muitos, não se trata de atacar o Estado e as forças policiais em geral, já que policiais estão circulando pela Praça Tahrir e colaborando com o serviço de ordem dos manifestantes (no dia 1º de dezembro, soldados e manifestantes limparam a rua Al-Rasheed juntos). Na capital, a estratégia policial parece ser de fato antes de tudo defensiva – defendendo a “Zona Verde” e as rotas estratégicas que levam a ela. Isso pode ser explicado principalmente pela fraqueza das forças anti-motim, que provavelmente não têm os meios para recapturar a Praça Tahrir. Tal recaptura exigiria o exército ou a PMU e provocaria um banho de sangue com consequências políticas incertas [20]. Nas cidades de província, esse aspecto ritualizado da violência parece muito menos presente e a destruição material é comum.
No final de novembro, quando um ressurgimento de confrontos era perceptível, parecia que alguns dos manifestantes eram mais críticos da ação dos revoltosos; alguns, retransmitidos pela mídia, inverteram a realidade evocando um movimento intrinsecamente pacífico dentro do qual elementos externos defendiam a violência e semeavam o caos. Podemos ver até mesmo alguns manifestantes se interpondo entre a polícia e os revoltosos (para dificultar a ação destes últimos).
– Bloqueando a economia?
Desde o início do movimento, os manifestantes têm como alvo a infraestrutura econômica – campos de petróleo, refinarias, estradas, pontes, passagens de fronteira, portos, aeroportos – que consideram ser de interesse estratégico. Algumas dezenas ou várias centenas deles bloqueiam o caminho que leva a esses locais e, acima de tudo, queimam pneus para impedir a passagem de caminhões e funcionários. É claro que não existe uma estratégia nacional desenvolvida, os bloqueios de estradas são, ao longo das semanas, erguidos e removidos repetidamente, dependendo da mobilização dos manifestantes, da repressão que sofrem ou das negociações locais que ocorrem entre as autoridades, xeiques tribais e potenciais representantes dos manifestantes (por exemplo, um chefe tribal pode ser acionado para recrutar cerca de dez pessoas contra o desbloqueio de um local). O caso mais emblemático é o do porto de Umm Qasr, perto de Basra, cujos acessos são frequentemente bloqueados. Os serviços administrativos do país também são alvo de inúmeros bloqueios e ocupações que paralisam seu funcionamento.
As ações de greve parecem afetar de forma intermitente apenas o setor público. O setor privado é, como vimos, relativamente subdesenvolvido (sobre essa questão, consulte a “primeira parte”). O setor mais estratégico é o petrolífero e, como resultado, é muito provável que os trabalhadores sejam tratados um pouco melhor lá do que em outros lugares. Uma vez que a extração e exportação de petróleo são quase a única fonte de receita do país, a prioridade do governo é garantir sua continuidade, portanto, as implementações de segurança adequadas. Funciona porque, apesar de dois meses de mobilização, o patamar das exportações de petróleo não foi afetado pelos acontecimentos. No máximo, foram relatadas algumas interrupções no fluxo de petróleo de alguns campos de petróleo para Umm Qasr, ou uma desaceleração na atividade nas refinarias (às vezes levando à escassez local de combustível), mas esses impactos são relativamente marginais [21]. Embora seja surpreendente que este setor não esteja, de uma forma ou de outra, no centro dos protestos, a situação ainda deve mudar [22].
No entanto, bloquear o porto de Umm Qasr, principal ponto de entrada das importações, custaria à economia iraquiana vários bilhões de dólares [23]. Dezenas de navios não conseguiram descarregar sua carga. Este é um problema real para a entrada de produtos alimentares (cereais, óleo, açúcar, etc.) dos quais o Iraque depende muito. O preço de alguns alimentos (principalmente de origem vegetal) aumentou fortemente na capital.
Por fim, deve-se notar que a atividade econômica das empresas (especialmente as menores) também é prejudicada por frequentes apagões de internet.
– Contra o Irã
Já mencionamos na primeira parte os aspectos anti-iranianos, soberanistas e nacionalistas das manifestações de 2018. Eles são muito perceptíveis também em 2019. Nas cidades do sul do Iraque, os manifestantes frequentemente visam os vários consulados iranianos na região (e alguns de seus funcionários foram evacuados no início de outubro). O consulado em Kerbala, por exemplo, foi invadido várias vezes e os manifestantes tentam regularmente hastear lá a bandeira do Iraque. Nas ruas, eles atacam retratos do Grande Aiatolá Khomeini ou do General Qassem Soleimani. Em Najaf, eles renomearam a Rua Khomeini como Rua da “Revolução de Outubro”. As declarações do Guia Supremo Iraniano, Ali Khamenei, que descreve as manifestações como resultado de um complô americano-sionista, contribuem para exacerbar a ira dos iraquianos.
Esse foco no controle iraniano sobre o país (associado à corrupção política) continua muito presente e até atingiu o pico no final de novembro, quando as manifestações foram severamente reprimidas no Irã. O consulado da cidade sagrada de Najaf foi, portanto, queimado duas vezes por rebeldes.
4. Da “Zona Verde”
A partir de 25 de outubro, a situação é tão confusa que as forças políticas representativas da burguesia iraquiana hesitam sobre as medidas a serem implementadas para pôr fim aos protestos.
As forças de segurança estão mobilizadas por todo o lado, mas o governo parece privilegiar sobretudo a utilização de unidades policiais, especialmente a polícia de choque, considerada mais confiável e para o qual foram recrutados muitos ex-milicianos da PMU nos últimos anos. Em alguns casos, o exército é deslocado como reforço, incluindo unidades muito leais (mas mal adaptadas), como as do Serviço Contra-Terrorista. Mas, a cada vez, significa correr o risco de ver essas unidades cometerem um massacre ou, ao contrário, mostrar pouco espírito de luta (no dia 5 de novembro, manifestantes capturaram um veículo blindado em Umm Qasr). Em Kerbala, em duas ocasiões, homens uniformizados desarmados puderam ser vistos mostrando seu apoio aos manifestantes ou marchando lado a lado com eles. O governo está ciente de que algumas unidades podem estar desobedecendo a ordens de repressão muito forte.
No domínio da segurança, importa acrescentar que, durante este período, o acesso à Internet foi repetidamente encerrado porque, segundo o Primeiro-Ministro, estava a ser utilizada para “espalhar violência e ódio”. Essas interrupções, que duram algumas horas ou alguns dias, às vezes são limitadas a redes sociais e aplicativos de mensagens apenas – embora sejam baseadas em uma tecnologia menos poderosa do que a usada no Irã ao mesmo tempo, uma vez que os aplicativos VPN são capazes de contorná-los.
A resposta do Estado também deve ser política a fim de separar os manifestantes mais moderados dos mais radicais. Mas os políticos estão divididos e os primeiros anúncios de uma remodelação do gabinete deixam os manifestantes completamente frios. Em 26 de outubro, os deputados sadristas e da Aliança Fatah (o braço político do PMU) retiraram seu apoio ao governo e exigiram eleições parlamentares antecipadas (e alguém se pergunta quem poderia se beneficiar delas) bem como uma mudança na lei eleitoral e na Constituição. A intervenção do general iraniano Qassem Soleimani [24], que então viajou para a capital iraquiana, foi necessária para que a Aliança Fatah restaurasse seu apoio ao primeiro-ministro 24 h depois.
Por sua vez, o presidente iraquiano, Barham Saleh, prometeu uma nova lei eleitoral e eleições antecipadas, que o primeiro-ministro se apressou em considerar inviáveis. Além disso, não há garantia de que o anúncio de tal eleição seria suficiente para desmobilizar a população como na França em junho de 1968.
Enquanto uma comissão parlamentar começava a redigir emendas à Constituição, a barganha e as negociações estavam bem encaminhadas e, em 9 de novembro, soubemos que as principais forças políticas do país acabavam de chegar a um acordo para manter o primeiro-ministro Adel Abdul Mahdi no cargo e pôr fim ao protesto “através de todos os meios”. No entanto, um programa de reformas, em particular anticorrupção, bem como emendas constitucionais é implementado para satisfazer a população. Este é também o trabalho do general Soleimani, que até conseguiu fazer com que Muqtada al-Sadr parasse de convocar novas eleições (uma ideia que agora é apoiada apenas pelos Estados Unidos). O anúncio deste acordo, embora o movimento de protesto pareça ter parado, não é suficiente para quebrar o impasse.
5. Sobre a ameaça de guerra civil
Apesar da vitória sobre o Estado Islâmico, a situação de segurança no Iraque está longe de ser ideal. Os últimos partidários do Califado parecem estar mais ativos (talvez por causa dos acontecimentos na Síria e da morte de Abu Bakr al-Baghdadi). E a isso devemos adicionar as ações de outros pequenos grupos guerrilheiros islâmicos sunitas. Todos eles se beneficiam da mobilização das forças de segurança contra os manifestantes. Não passa uma semana sem que uma patrulha militar seja emboscada ou que caia morteiros em um aeroporto, uma base militar ou mesmo na “Zona Verde”. Também há ativistas executados, sequestrados ou desaparecidos, sendo questionável se não é obra de espiões ou milicianos. Em Basra, por exemplo, em 3 de outubro, homens mascarados mataram um ativista conhecido e sua esposa em sua casa. No dia 5 de outubro, homens armados e mascarados atacaram as instalações de várias emissoras de televisão da capital, espancando funcionários e saqueando a cena. Em 1º de novembro, em Nasiriya, um comandante da PMU foi assassinado. Em 15 de novembro, as explosões feriram e mataram vários manifestantes em Nasiriya e Bagdá, etc. Quanto aos “atiradores não identificados” atirando em manifestantes pacíficos e policiais, eles são, sem dúvida, essencialmente uma lenda urbana.
A situação é confusa, mas, na verdade, nenhuma das forças políticas locais têm interesse na eclosão de uma guerra civil. Todo mundo sabe que esse evento também pode ser desencadeado involuntariamente [25]. Todas as partes interessadas locais, assim como o Irã, têm pressionado até o momento para que a situação não degenere, por isso que os milicianos do PMU estão na segunda linha desde o início dos eventos. Durante os primeiros dois meses de mobilização, os incidentes armados diretamente ligados ao protesto foram extremamente raros e com pouco impacto.
No final de novembro, paralelamente ao ressurgimento da violência (entre manifestantes e policiais), havia sinais de aumento da tensão no nível de segurança (nas tribos e na PMU), o que não era um bom augúrio. Como veremos a seguir, o movimento parece ter ficado paralisado e parece não haver saída. E mesmo que os ativistas locais descrevam a mobilização como sempre constante, isso é, pelo menos, duvidoso. Por outro lado, o número de mortos certamente está aumentando. Neste contexto, não seria surpreendente se os manifestantes mais determinados estivessem planejando ir mais longe em sua luta contra as forças policiais – vimos na França, à força dos motins, com os coletes amarelos expressando seu desejo de “voltar na próxima vez com uma arma”, mas no Iraque a proximidade com armas é bem diferente da França. Também no final de novembro, parece que os manifestantes usaram artefatos explosivos e há rumores de disparos de arma de fogo contra as forças de segurança.
6. Estagnação ou recurso à violência? (1 de novembro – 29 de novembro)
A sexta-feira, 1º de novembro, encerrou simbolicamente a semana que viu o movimento de protesto assumir uma nova cara com a entrada em cena dos sindicatos, classes médias e estudantes. Após a oração, dezenas de milhares, talvez centenas de milhares de “Bagdadis” reuniram-se na Praça Tahrir, provavelmente a maior manifestação da história do Iraque desde 2003. À noite, confrontos violentos acontecem com a polícia. Na própria Praça Tahrir, a situação se estabilizou e os confrontos na ponte Al-Jumariyah diminuíram de intensidade, concentrando-se doravante nas três pontes mais ao norte. Na segunda-feira, dia 4, em Bagdá e Salhiya, os manifestantes tentaram se aproximar dos prédios de rádio e televisão, mas foram repelidos. Há mais novos mortos na capital.
No final da semana, o governo, que notou a situação de impasse, mas também a crescente participação no movimento de uma classe média a princípio pouco familiarizada com o confronto físico, contou novamente com uma forte presença coercitiva. Na noite de quinta-feira, dia 7, os acampamentos dos manifestantes são atacados em Basra e Kerbala e em muitas cidades a polícia está na ofensiva. Houve muitas baixas e um grande número de prisões (agora são 300 mortos e mais de 15.000 feridos). Quando o porto de Umm Qasr retomou as operações, os sindicatos de professores pediram para voltar ao trabalho e, no sábado, as principais forças políticas anunciaram que concordariam em manter o primeiro-ministro no cargo (conforme exposto acima). Todos acreditavam que este teria sido um ponto de inflexão e que o fim de semana poderia paralisar o movimento.
No domingo, dia 10, a semana começou com manifestações em várias cidades, mas na capital a mobilização foi bem menor do que costumava ser. Os confrontos agora se concentravam na Praça Al-Khalani, que as forças de segurança tentavam apreender (ponto estratégico de controle de acesso às pontes da região). À noite, na Praça Tahrir, enquanto os combates ocorriam nas proximidades, os manifestantes lançaram balões brancos no céu em sinal de paz.
Nos dias seguintes, novos apelos à greve de professores e alunos permitiram que as fileiras de manifestantes aumentassem. Enquanto uma árvore de Natal decorada com bandeiras iraquianas [26] era erguida na Praça Tahrir, perto de Basra, pela enésima vez, os moradores bloquearam os acessos ao porto de Umm Qasr, a vários campos de petróleo, áreas industriais e ao aeroporto internacional da cidade.
Os confrontos em torno da Praça Al-Khalani ainda foram particularmente violentos e vários manifestantes morreram lá. Após várias noites de luta, os manifestantes desmontaram as imponentes barreiras de concreto instaladas pela polícia, recuperaram o controle da praça e parte da ponte Al-Sinak e apreenderam um imponente estacionamento de vários andares com vista para a entrada da ponte que eles converteram em posto de observação e dormitório.
A quarta semana consecutiva de mobilização começou em 17 de novembro com numerosos chamados por um dia de greve geral do movimento Sadrista e de várias organizações sindicais, incluindo, talvez pela primeira vez, um sindicato de trabalhadores do petróleo [27]. A convocação de uma greve, no entanto, tem efeito real apenas no setor público. O dia começou como de costume com vários bloqueios de estradas e foi marcado em Bagdá por confrontos em torno da ponte Al-Ahrar. Paradoxalmente, o porto estratégico de Umm Qasr retomou suas atividades… para ser novamente bloqueado no dia seguinte. No entanto, nos dias que se seguiram, a mobilização diminuiu e o Ministério do Interior pode, ainda na terça-feira, anunciar o fim do “alerta máximo”. Muitos, doravante, acreditam que o restabelecimento da calma é possível, e no dia 20 de novembro importantes chefes tribais do sul do país foram recebidos pelo Primeiro-Ministro para discutir as demandas dos manifestantes. À noite, os ocupantes da Praça Tahrir dançavam e tocavam música… mas a batalha pelo controle das pontes ainda estava feroz, e o tributo daquela noite de confrontos ficou mais pesado do que “normalmente” – quatro manifestantes foram mortos e dezenas de outros feridos (nesta fase, houve cerca de 330 mortos e 15.000 feridos em todo o país desde o início do movimento).
No dia seguinte, mais oito manifestantes foram mortos em Bagdá e os confrontos eclodiram em Kerbala. Os confrontos também ocorreram em torno do porto de Umm Qasr, mas os manifestantes que ocupavam os acessos desde segunda-feira foram expulsos. Na Praça Tahrir, os xeiques recebidos no dia anterior foram vaiados [28] e, durante a noite, foi o escritório de Assuntos Tribais em Nasiriya que foi incendiado por manifestantes. Os combates recomeçaram com maior força em torno das pontes de Bagdá, causando cerca de mais dez mortes. Mas, a partir daí, novos focos de violência desenfreada apareceram: Kerbala, mas acima de tudo Najaf e Nasiriya. Há vários dias, os manifestantes bloqueiam as principais pontes desta que é a quarta maior cidade do país e capital da província de Dhi Qar, a mais pobre do Iraque.
A última semana de novembro começou com bloqueios de estradas e manifestações em todo o país, mas os confrontos foram muito mais intensos do que nos dias anteriores (13 manifestantes mortos no domingo). Com o passar dos dias, o nível de violência aumentou e o número de mortos também.
Em Bagdá, a situação ao redor das pontes permaneceu tensa. No dia 25, um artefato explosivo foi lançado contra os policiais, ferindo cerca de dez deles. Dois dias depois, em Basra, outro artefato explosivo foi direcionado a um policial. Ainda em Basra, embora os manifestantes ainda estivessem mobilizados, eles removeram as barreiras após negociações com as autoridades. O resto do sul do Iraque está em chamas: motins em Samawa, quartéis da polícia atacados na Babilônia, um banco incendiado em Kerbala, etc.
Na cidade sagrada de Najaf, onde há relatos de tiros contra a polícia, as instalações de um partido islâmico foram incendiadas por manifestantes e, então, no dia 27, foi a vez (nada menos que) do consulado iraniano ser engolfado em chamas. Mas é em Nasiriya que a luta parece mais violenta, onde manifestantes atearam fogo no prédio da governadoria e na casa de um membro do parlamento, o que resultou em um alto número de mortos. A Internet foi fechada na cidade. No dia 28, as forças de segurança, que receberam reforços militares de Bagdá, tentam limpar as pontes sobre o Eufrates, causando um novo massacre. Em retaliação, um edifício das forças de segurança foi incendiado e o do comando militar da província sitiado. O número de mortos foi de 46 (33 em Nasiriya, 11 em Najaf e 2 em Bagdá), um dos dias mais mortais desde o início do movimento.
À noite, combatentes tribais armados com Kalashnikovs bloquearam alguns acessos à cidade para impedir a chegada de novas unidades policiais. Em Najaf, por outro lado, as milícias PMU chegaram como reforços, equipadas com veículos blindados, a fim de “proteger os santuários religiosos”. Nos dias seguintes, apesar do toque de recolher, as procissões fúnebres reuniram milhares de habitantes. A situação é explosiva… e o primeiro-ministro anunciou sua renúncia.
Fim da segunda parte.
Observação do autor: A conclusão deste texto, “De la crise de l’État”, será publicada em breve.
Notas
[1] – O terremoto social no Líbano de 17 de outubro de 2019 é causado pelo anúncio de um imposto sobre as mensagens da WhatsApp.
[2] – Deve-se lembrar aqui que, no Iraque, o fim de semana vai de sexta-feira a sábado e o domingo é o primeiro dia da semana.
[3] – O Serviço Antiterrorista Iraquiano representa, com sua “Divisão de Ouro”, a ponta de lança do exército iraquiano. Colocado sob a autoridade direta do Primeiro-Ministro, equipado e supervisionado pelos americanos, participou ao lado das Unidades de Mobilização Popular (UGPs, equipadas e supervisionadas pelos iranianos) da recaptura, em 2016-2017, dos territórios detidos pela ISIS.
[4] – Ainda não se conhecem os paletes (plataformas de carga) no Iraque.
[5] – Com exceção das organizações Sadristas e do Partido Comunista.
[6] – Foi a partir da Praça Tahrir e através desta ponte que, em 2016, os manifestantes dos protestos contra a corrupção liderados por Al-Sadr entraram na “Zona Verde”.
[7] – Deve-se notar que, no Oriente Médio, disparar munição real (com uma Kalashnikov) acima das cabeças dos manifestantes para assustá-los e dispersá-los é uma prática comum para as autoridades responsáveis pela aplicação da lei. No entanto, a manobra é perigosa e pode, mesmo não intencionalmente, causar ferimentos ou morte. Este método é muito banalmente usado nas manifestações que evocamos neste texto. Visar especificamente um manifestante é, portanto, apenas mais um passo facilmente dado por um policial no meio de um confronto violento, mesmo sem ordens específicas de seus superiores.
[8] – Esta celebração ocorre no 20º safar do calendário muçulmano. Comemora o fim do período de luto em honra do Imam Hussein (filho de Ali e Fátima, neto de Muhammad) após o seu assassinato no ano de 680 em Kerbala. Reunindo milhões de fiéis a cada ano (15 milhões em 2018, talvez 20 milhões em 2019, incluindo 3,5 milhões de iranianos), esta peregrinação é o maior encontro religioso anual do mundo.
[9] – Isto pode ter começado como uma reação ao espancamento de um estudante em uma manifestação anterior.
[10] – Os jornalistas ocidentais estão agora mais propensos a encontrar interlocutores com este tipo de discurso e, portanto, os favorecerão, particularmente porque correspondem a seu próprio ponto de vista.
[11] – Mustafa Habib, “Visiting The Square In Baghdad, Where Protestors Rule A Utopian Iraq”, niqash.org, 7 de novembro de 2019.
[12] – Embora provavelmente com um pouco mais de moralidade do que nas rotundas francesas de 2018, há também encontros de um tipo completamente diferente. A imprensa relata assim a celebração do casamento de dois médicos voluntários na Praça Tahrir (em 16 de novembro).
[13] – “Angry Iraqis pour into the streets in protest”, kuwaittimes.net, 2 de novembro de 2019.
[14] – Sofia Barbarani, “Protesters say Tahrir Square is everything Iraq is not”, aljazeera.com, 12 de novembro de 2019.
[15] – “Peaceful Activities Continue Despite Bullets from the Government”, iraqicivilsociety.org, 25 de novembro de 2019.
[16] – Voir Myriam Benraad, L’Irak par-delà toutes les guerres. Idées reçues sur un état en transition, Paris, Le Cavalier Bleu, 2018, p. 75-81.
[17] – Mustafa Habib, “How Iraq’s Protests Are Also Changing The Country’s Culture”, niqash.org, 28 de novembro de 2019.
[18] – “Deadly bomb explosion hits Baghdad amid anti-gov’t protests”, aljazeera.com, 16 de novembro de 2019.
[19] – Postados no restaurante turco, os manifestantes tentam cegar a polícia com lasers.
[20] – É sem dúvida para evitar um tal impasse que, em novembro de 2019, o regime iraniano optou por uma repressão muito severa desde as primeiras manifestações.
[21] – “A Bagdad, les manifestants craignent un retour au pire”, L'Orient le jour, 6 de novembro de 2019.
[22] – O longo protesto iraniano de 1978 foi liderado pelos trabalhadores do petróleo, um setor de atividade vital para o regime; o quase total bloqueio da produção e das exportações infligiu um golpe fatal à ditadura do Xá. Entretanto, estes trabalhadores só entraram em greve vários meses após o início do movimento. Ver: Tristan Leoni, La Révolution iranienne. Notes sur l'islam, les femmes et le prolétariat, Entremonde, 2019, 264 p.
[23] – Lawk Ghafuri, “Human rights and economic concerns grow as internet curfew continues across Iraq”, rudaw.net, 11 de novembro de 2019.
[24] – Qassem Soleimani é o comandante da Força Al-Quds, uma unidade de elite da Guarda Revolucionária Islâmica do Irã (o pasdaran) responsável pelas operações externas do regime. Ele faz visitas frequentes ao Iraque.
[25] – Somente atores externos hostis ao Irã, como os Estados Unidos ou Israel, têm interesse em ver a situação no Iraque aumentar (mas até que ponto?); a Arábia Saudita também tem interesse, mas como vizinha pode sofrer consequências infelizes (insegurança, imigração). Entretanto, iniciar conscientemente uma guerra civil é muito mais complicado e incerto do que algumas pessoas pensam. Quanto à pergunta “quem se beneficia do crime?”, não é tão relevante: “Se admitirmos que as conseqüências da ação social não correspondem sistematicamente aos resultados previstos no início, torna-se difícil considerar que podemos deduzir mecanicamente das consequências da ação e daqueles a quem elas ‘beneficiam’ a identidade dos indivíduos ou grupos que estão na origem da ação”, cf. Laure Bardiès, “Pas si élémentaire mon cher Watson!”, DSI, No. 143, Setembro-Outubro 2019, p. 58.
[26] – Os distritos centrais de Bagdá ainda são um pouco mistos do ponto de vista confessional, mas, como no resto do país desde 2003, os cristãos estão começando a ser raros lá.
[27] – Em 16 de novembro, no Irã, após o anúncio surpresa do governo de um aumento no preço da gasolina, surgiram manifestações em várias cidades. Este foi o início de um protesto que durou vários dias e foi duramente reprimido.
[28] – Vários líderes tribais recusaram o convite do Primeiro-Ministro, incluindo os de Kerbala.
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Não somente arde Paris... (Maio de 2019)
Proletarios Internacionalistas
Notas sobre os coletes amarelos
Introdução
Se há uma imagem que é costumeiramente repetida no movimento dos coletes amarelos é a de manifestações que rompem um cordão policial, ou expulsam a polícia de choque a pedradas, ou simplesmente organizam uma barricada de maneira a bloquear a via e saquear as lojas de luxo, enquanto que de pulmões abertos, cheios de adrenalina, cantam com orgulho o hino La Marseillaise. É uma boa imagem para expressar a natureza confusa e contraditória do movimento. Em qualquer manifestação poderão ser encontradas reivindicações do Referendum de Iniciativa Cidadã (RIC) e da saída da União Europeia para defender a economia nacional, ao mesmo tempo em que algumas bandeiras francesas e regionais ondulam aqui e ali com certa parcimônia. Tudo isto convive no movimento com agressões constantes à propriedade privada através de saques e piquetes de greve, a criação de laços de solidariedade, a apropriação de espaços de encontro e associação proletária: em definitivo, o questionamento prático da democracia. Ao mesmo tempo, é visto em toda parte uma forte reivindicação da nação e de seus símbolos, dentre os quais a Revolução Francesa exerce ao mesmo tempo o papel de símbolo de orgulho patriota e de sublevação contra a tirania e a miséria.
Os coletes amarelos são - se alguém ainda duvidava - um movimento proletário. Como em todo movimento proletário, nele se expressa o proletariado realmente existente e o mundo que ele antecipa. O primeiro advém da confusão atual, de nossa fraqueza enquanto classe, da falta de memória que os vencedores nos expropriaram como vencidos. Porém, parte também da defesa instintiva, inevitável, de algumas necessidades que o capital deve negar para poder produzir-se. Esta defesa de suas necessidades empurra o proletariado a negar, por sua vez, ao capital e seu domínio sobre nossas vidas, e não somente nisso, já que nesse processo o proletariado também se nega, se reafirma como comunidade de luta contra sua própria existência isolada, cidadã, democrática. Esta contradição essencial ao capitalismo, inerente à sua própria reprodução, é o que determina a possibilidade da revolução. Faz dela algo material, físico, alheia às nossas vontades e consciências individuais. É assim que o proletariado antecipa em seu combate um mundo diferente, ao mesmo tempo em que segue arrastando uma parte da merda deste, que fará parte da base de sua própria derrota se não consegue superá-la no processo.
Seja como for, esta contradição não pode ser esquecida por nenhuma análise militante que postule seriamente as características do movimento, seus avanços, limitações e o papel que exercem nele as minorias revolucionárias. Há dois enfoques, duas caras da mesma moeda, que ressurgem geralmente nas análises que são feitas de nossa classe e que nos incapacitam de compreender essa contradição. O primeiro é idealista e reduz o movimento ao que diz e pensa de si mesmo, omitindo o que faz para continuar com a bandeira que agita e que abandona assim que a menor demanda socialdemocrata aparece em seus panfletos. O segundo é objetivista e pretende compreender a natureza do movimento a partir de sua composição sociológica. Com o bisturi na mão, toma indivíduo por indivíduo e o coloca em uma ou outra coluna de acordo com sua renda, sua posição no sistema produtivo, o bairro em que vive ou os estudos que teve. Uma vez desmembrado, costura tudo muito estatisticamente e pretende ver nisso a totalidade: temos aqui, sob esse prisma ideológico, um movimento pequeno-burguês que conseguiu cooptar um proletariado embrutecido em prol da defesa da economia nacional. Voilá: o movimento dos coletes amarelos. O necessário já foi dito.
Junto com esses enfoques, que geralmente vem combinados, apareceu nos últimos meses outro de caráter antifascista, que retoma a visão idealista e objetivista que acabamos de demonstrar para se indignar com tantas bandeiras francesas e tanta Marseillaise. Reduz o movimento aos grupelhos de extrema-direita que o cortejam e se recorda com nostalgia das boas procissões de antigamente, claramente das esquerdas, nas quais a CGT entregava os manifestantes encapuzados à polícia e os “insubmissos” mélenchonistas[1] empunhavam –ali sim, sem problemas- suas bandeiras francesas por uma nova república.
Felizmente, o movimento dos coletes amarelos é outra coisa. Agora é certo, que afirmemos o caráter proletário do movimento, apesar de todas as ideologias e bandeiras que flutuam entre seus protagonistas, não quer dizer que as mesmas não tenham importância ou que não serão determinantes no fim. Pelo contrário, partindo da prática real que determina o movimento e lhe confere seu caráter de classe, percebemos e criticamos todas essas forças do inimigo que atuam para prendê-lo, neutralizá-lo e dar-lhe uma direção que se contrapõe às mesmas necessidades e interesses que determinam o próprio movimento. Sem essa compreensão da realidade não se faz outra coisa a não ser projetar imagens distorcidas do movimento para reduzi-lo a um movimento pequeno-burguês, de classe média, cidadão, de defesa do “verdadeiro povo francês”, dirigido por grupos de direita, etc. Com certeza nós não iremos colaborar nessa projeção espetacular que se une com todos os esforços da burguesia em liquidar esse movimento. Nossa intenção é, justamente, contribuir para impulsionar a potência proletária que a luta dos coletes amarelos contém e denunciar todas as forças que criam obstáculos no desenvolvimento da mesma.
O que o movimento faz
No fim de outubro de 2018, começa a sentir-se um mal-estar geral pelo anúncio do governo Macron de uma subida dos impostos sobre a gasolina. Diante da tentativa da burguesia de fazer-nos pagar pela catástrofe ecológica e social na qual se baseia seu domínio, começam a produzirem-se bloqueios de estradas e piquetes organizados envolta das rotatórias. O movimento ecologista, uma corrente socialdemocrata onde quer que existam, chama a mudar o carro pela bicicleta se dói tanto o aumento do preço da gasolina. Claramente, ir trabalhar de bicicleta às seis da manhã e a 40 quilômetros de distância não é tão fácil. Tampouco é fácil fazer de bicicleta, no comércio mais próximo, que está a 10 quilômetros de distância, a compra do mês para toda uma família, mas isso não parece lhes incomodar.
O começo do movimento, centralizado pela primeira vez nas mobilizações de 17 de novembro, confunde todo mundo. A massividade das manifestações e dos bloqueios de estradas assusta a burguesia. As rotatórias convertem-se em lugares de reunião e discussão. Também se produzem as primeiras tentativas de separar o proletariado. Fala-se de uma revolta do campo contra a cidade, da pequena-burguesia das províncias -poujadista2 por essência- contra a burguesia boêmia3, da reação fanática do petróleo contra os ecólogos progressistas de boa fé e, com maior intensidade que todos os anteriores, dos brancos contra os negros e árabes, da France blanche-d’en-bas4 contra a migração abarrotada nos subúrbios das grandes cidades. Ao mesmo tempo, tanto Le Pe como Mélenchon tentam capitalizar o movimento e declaram seu apoio - quando esse começar a desenvolver-se e chegar a seus picos de maior combatividade, se aterão a um silêncio desconfortante.
Mas os esforços são em vão. Se algo caracteriza esse movimento é sua vitalidade, sua capacidade de resistência ante a repressão física e ideológica, ao menos a mais direta. As seguintes manifestações ou “atos”, uma a cada sábado, serão verdadeiras manifestações proletárias - nem convocadas e nem convocáveis por nenhum aparato do Estado - que vão superar rapidamente a luta contra o imposto na gasolina. O movimento começa a generalizar-se. Começa a falar-se de uma vida muito cara, salários muito baixos, uma miséria e precariedade permanente que não deixam ninguém respirar e põem em dúvida a possibilidade de sobreviver neste mundo. Porém, não há só o falatório. Alguns bloqueios de rodovia tornam-se piquetes contra as grandes plataformas de distribuição de mercadorias, geralmente em consonância com uma parte dos trabalhadores. As primeiras manifestações produzem-se nos bairros mais ricos das grandes cidades e os convertem em cenários ideais para o ataque direto à propriedade privada. Na ilha La Réunion, “departamento ultramar” francês, a luta adquire uma intensidade maior, ainda que mais breve devido à maior repressão. Durante duas semanas os coletes amarelos fecharão o porto, gerando um desabastecimento na ilha que vem acompanhado de saques organizados e distúrbios, assim como do fechamento de comércios, escolas e universidades. A situação torna-se tão incontrolável que o governo tem de impor o toque de recolher e mandar o exército para acabar com a mobilização.
Frente às expressões racistas e anti-imigração que surgem no começo de uma parte do movimento, e que servem de megafones para os grupos de extrema-direita, as lutas em La Réunion vão dar um exemplo de unidade de classe por cima das raças. Depois das primeiras manifestações o Comité Adama Traoré5 chamará a participar no Ato III, a manifestação de 1 de dezembro, que se converterá em uma batalha generalizada contra a polícia. Barricadas, saques, carros incendiados e ataques a comércios e bancos assolam os bairros ricos de Paris. O Arco do Triunfo, um dos maiores símbolos nacionais da República, é saqueado em seu interior e na sua fachada escreve-se: “Os coletes amarelos triunfaram”, “Macron renuncie”, “Aumentar a renda mínima” ou “Justiça para Adama”. É um escândalo completo. Ao mesmo tempo, as forças policiais atacam sem piedade os manifestantes. Somente nesse dia em Paris, atiram-se mais balas de borracha que no ano de 2017 inteiro. O número de feridos é 250, com vários olhos e mãos feridos e um homem em coma, além de mais de 300 detidos, uma cifra que aumentará a quase 2.000 no Ato IV. Depois desta manifestação, o movimento se estende aos colégios e vários deles são bloqueados pelos estudantes, especialmente na zona norte dos subúrbios parisienses. Durante as próximas semanas centenas de institutos serão paralisados ou pelo menos terão suas atividades seriamente perturbadas.
A cenoura e o castigo. Em 5 de dezembro, Macron retira o aumento de imposto na gasolina e no dia 6 o ministro do interior, Castaner, anuncia que 90.000 policiais de choque serão mobilizados para o Ato IV, assim como tanques como os usados no despejo da ZAD em Notre-Dame-des-Landes. No dia seguinte um vídeo é espalhado no qual a polícia humilha algumas dezenas de estudantes de colégios em Mantes-La-Jolie, colocando-os de joelho com suas mãos atrás da cabeça. A repressão da manifestação de 8 de dezembro é tão brutal que cada vez mais se torna insustentável a estratégia do governo de distinguir os casseurs - os violentos - dos “bons e pacíficos cidadãos com coletes amarelos”. O movimento começa a organizar-se contra a repressão. Estendem-se as redes de apoio legal aos detidos e criam-se grupos de médicos de rua, pessoas com algum conhecimento de primeiros socorros que se distinguem na manifestação para ajudar os feridos. E o fato é que o movimento hoje, com três meses desde seu começo, conta com mais de 3.000 feridos, entre os quais se encontram várias dezenas de pessoas que tiveram o olho ferido por uma bala de borracha, ou que tiveram a mão arrancada por uma granada de atordoamento. O nível da repressão supera enormemente os limites do que se está acostumado na região europeia, e isso impulsionou um desenvolvimento massivo da solidariedade com os feridos. Em muitas manifestações, um grande número de pessoas leva bandagens nos olhos ou na cabeça com manchas de sangue falso, como forma de denúncia da violência policial.
Em 10 de dezembro, Macron anuncia um aumento do salário mínimo, que acaba sendo um aumento das ajudas a alguns trabalhos precários. No dia seguinte, produz-se um atentado em Estrasburgo, que é reivindicado pelo Estado Islâmico, o que Macron tentará utilizar como maneira a reprimir o movimento, pedindo que não houvesse manifestação naquele sábado e aproveitando a ocasião para incrementar a presença de forças policiais na rua. No entanto, continuam ocorrendo as mobilizações e o governo tem que desembolsar 300 euros de bônus para cada policial de maneira que não desistam de seu compromisso na repressão dos demonstradores, que oscilam entre enfrentamentos violentos com a tropa de choque e chamadas à solidariedade com o movimento.
Ao contrário das muitas vozes que anunciam o fim do movimento com a subida das ajudas e a retirada do imposto, assim como pela dura repressão e os milhares de detidos, os coletes amarelos não perdem sua vitalidade. O ano de 2019 começará com uma manifestação no dia 5 de janeiro, na qual vários manifestantes utilizam maquinaria de construção para derrubar a porta do ministério da Secretaria de Estado, podendo entrar no edifício e gerar diversos danos. O secretário de Estado tem de ser evacuado. Os sindicatos tentarão capitalizar com o movimento, chamando uma greve no dia 5 de fevereiro, mas a adesão será mínima e a presença dos coletes amarelos bem escassa. Dias depois, no sábado, dia 9 de fevereiro, convoca-se uma manifestação que retoma a linha de não ser comunicada às autoridades, de modo a combater a tendência à democratização e pacificação dos atos anteriores, os quais haviam correspondido com uma realocação para fora dos bairros ricos e uma diminuição nos saques. E funciona. Se qualquer coisa é repetida durante esse ato XIII é que, para serem escutados, o enfrentamento é necessário.
O movimento aprende. As seguintes demonstrações retornarão aos bairros ricos do leste parisiense e terão seu ponto de culminação no ato XVII de 16 de março. Essa convocação é feita durante o fim do “Grande Debate”, um processo de democracia participativa aberto por Macron para tentar - em vão - acalmar o movimento. No começo o “Grande Debate” é simplesmente um motivo para ridicularização, porém a essa altura já começa a tornar-se irritante. O ato XVIII tem como slogan “Ultimatum”, o qual adquire um sentido bem literal: Paris irá tornar-se o cenário de uma batalha generalizada como não se havia visto até então. Tenta-se novamente tomar o Arco do Triunfo, e quando a polícia consegue impedir a raiva proletária dirige-se contra as lojas de luxo e restaurantes nos Champs-Élysées, que arderão durante toda a noite.
A burguesia também aprende. A situação estará tão incontrolável que Macron, dias depois, depõem o chefe da polícia e coloca em seu lugar Didier Lallement, bem conhecido por suas habilidades repressivas. Ao mesmo tempo, a polícia de choque é reforçada com soldados da Operação Sentinela, um corpo militar criado após o ataque a Charlie Hebdo em janeiro de 2015 e especializado na luta contra o terrorismo. Daí em diante, toda manifestação produzida nas proximidades dos Champs-Élysées é proibida e duramente reprimida. Contudo, e ainda que a presença da polícia aumente nas ruas e a repressão recrudesça, nas semanas seguintes chama-se um 1º de maio “amarelo e negro”, em referência à ação conjunta de coletes amarelos e do black bloc, e Paris tornará a arder. Atualmente o número de detidos se eleva a 8.700 pessoas –segundo o Ministério do Interior- e quase 2.000 condenados, dos quais por volta de 40% com cumprimento de tempo em prisão. A isso é preciso somar a colocação em prática da lei anti-casseurs, que escandaliza até mesmo algumas frações da burguesia ao permitir detenções preventivas das pessoas suspeitas de poderem cometer um crime - um aceno horrível ao filme Minority Report - A Nova Lei - durante a demonstração.
Claro que toda esta revolta não surge de nada novo, nem é uma criação única e absolutamente espontânea dos coletes amarelos. Na verdade, a forte combatividade e a capacidade de resistência e apoio mútuo que demonstra o movimento provêm de um aprendizado prévio do proletariado na França. Assim, mantem-se vivas a recordação da revolta dos banlieues de 2005 e as formas de organização que se desdobraram naquele momento6. Por outro lado, as lutas contra as Reformas Trabalhistas em 2016 geraram uma série de experiências e aprendizagens ao interior dos black blocs que não são subestimadas, ao mesmo tempo em que se abriam à pessoas que não haviam participado antes e faziam-se chamadas as militantes de outros países como Alemanha ou Itália a juntarem-se a algumas convocatórias, como foi o caso do 1º de maio de 2018[7].
Paralelamente, no curso destes meses vai-se além das rotatórias e formam-se assembleias por todo o país. As de Saint-Nazaire e Commercy vão funcionar como motor desse processo, fazendo várias chamadas à criação de assembleias e à apropriação de espaços de encontro e associação proletária, fundamentais não somente para discussão e reflexão comum, mas também para construção de laços de solidariedade com os detidos e feridos. Ao mesmo tempo e diante da necessidade de mecanismos de centralização do movimento, inicia-se um processo de coordenação entre distintas assembleias que dará lugar a uma “assembleia de assembleias” no fim de semana do dia 26 e 27 de janeiro, e uma segunda doa dia 5 ao 7 de abril.
O que o movimento diz
O que o movimento diz e pensa de si mesmo é heterogêneo e confuso. Isso é natural e revela seu caráter massivo e genuíno, ao mesmo tempo em que revela a situação de fraqueza que partilha nossa classe nesse período. A ausência de memória proletária e a força atual do cidadanismo faz com que os coletes amarelos se identifiquem mais como o povo contra “os de cima” do que como proletariado contra a burguesia e seus cães. Isso não lhes impede de lutar como tal, como vimos, já que seu próprio desenvolvimento empurra-lhes ao enfrentamento com o Estado e a propriedade privada, porém, sem dúvidas, é uma bandeira que pesa sobre nossas cabeças e que abre as portas às distintas formas de recuperação burguesa.
Ao mesmo tempo, é importante não fazer um bloco homogêneo a partir da ala majoritária do movimento, esquecendo toda luta ao interior do mesmo para clarificar e impor nossos interesses. Sem dúvida a ideologia dominante é a ideologia da classe dominante, inclusive em um processo de luta contra essa mesma classe. Contudo, a vitalidade de um movimento mede-se também pelas minorias que tentam demonstrar e combater as armadilhas da (social)democracia, ao mesmo tempo em que aprofundam a radicalidade do próprio movimento contra o sistema. Por isso é importante destacar vozes como as dos coletes amarelos de Paris Leste, onde se diz claramente que:
“Não somos a “comunidade de destino”, orgulhosa de sua “identidade”, cheia de mitos nacionais, que não foi capaz de resistir à história social. Não somos franceses.
Não somos essa massa de “gente humilde” disposta a juntar-se com seus amos enquanto forem “bem governados”. Não somos o povo.
Não somos este conjunto de indivíduos que devem sua existência somente ao reconhecimento do Estado e a sua perpetuação. Não somos cidadãos.
Nós somos aqueles que são obrigados a vender sua mão de obra para sobreviver, aqueles dos quais a burguesia obtém a maior parte de seus benefícios dominando-nos e explorando-nos. Nós somos os pisoteados, sacrificados e condenados pelo capital, em sua estratégia de sobrevivência. Somos essa força coletiva que abolirá todas as classes sociais. Somos o proletariado”[8].
Porém, antes disso, se há algo que caracteriza os coletes amarelos positivamente é seu rechaço a toda forma de representação. Este é de fato um dos fatores que nutre sua vitalidade como movimento. Em primeiro lugar, o rechaço aos grandes meios de comunicação é total. Denuncia-se seu papel na propaganda ideológica do governo e produzem-se enfrentamentos e inclusive expulsões dos jornalistas dos grandes meios que se deixam ser vistos nas demonstrações.
Ao mesmo tempo, há uma profunda recusa à representação política e sindical. O rechaço aos sindicatos é tão mais notável porque eles têm um grande peso na política francesa. Nos últimos anos de mobilizações, nunca se havia visto tal deslegitimação, embora a criação de cortèges de tête nas lutas contra a Reforma Trabalhista em 2016 vinha anunciando uma busca de autonomia em relação a eles, embora de forma minoritária. Isso é certo mesmo se a declaração da greve “geral” por parte da CGT em 5 de fevereiro, como uma tentativa de canalização sindical da luta, teve apoio por parte das vozes mais visíveis do movimento. A greve da CGT pôs em evidente contradição aqueles que haviam anteriormente rejeitado a presença dos sindicatos e agora davam boas-vindas à suas convocações como se elas fossem uma maneira de estender a luta ao local de trabalho. No entanto, como dissemos antes, a greve teve pouquíssima adesão e o número de coletes amarelos no passeio sindical dessa tarde foi bastante escasso. Nas manifestações os sindicatos, com exceção do esquerdista SUD-Solidaires, e esse timidamente, não se atreviam a aparecer com faixas ou adesivos. De fato, há poucas faixas pré-fabricadas, e as diferentes reivindicações que cada colete amarelo decide escrever nas costas com um simples marcador cumprem sua função. A necessidade de defender a autonomia do movimento está muito presente entre os manifestantes e as tentativas de capitalizá-lo politicamente têm sido um verdadeiro fracasso, assim como a inscrição de uma “lista eleitoral dos coletes amarelos” para as eleições parlamentares europeias ou a organização dos governos municipais para recolher “cadernos de queixas” - um aceno aos cahiers de doléances da Revolução Francesa - com o objetivo de organizar o “Grande Debate”.
Porém, essa rejeição de representação tem sua contrapartida. Apesar de conter esse cordão sanitário contra o enquadramento burguês clássico, ela contém ao mesmo tempo uma negação da comunidade de luta, de nosso ser proletário coletivo. Ela não deriva da comunidade de luta, mas do indivíduo isolado que representa a si mesmo e, portanto, nega a expressão coletiva e suas distintas formas de materialização. É o terreno que dá abertura para a democracia, especialmente a democracia direta. Esconde, de um lado, a ideia de que somente o indivíduo pode representar-se a si mesmo e de que, no fundo, a única maneira de organizar esse conjunto de indivíduos isolados é com formas de democracia direta, votações, processos formais examinados aos detalhes, reivindicações vazias para que nenhum indivíduo fique de fora: em definitivo, se expressa no assembleísmo mais limitante para a ação do movimento. Por outro lado, esta rejeição encontra sua expressão ideológica em um discurso populista pelo qual o povo tem de fazer valer sua soberania ao refundar uma nova forma de democracia. É aqui onde o Referendum de Iniciativa Cidadã mostra-se como um excelente instrumento de recuperação. “Adeus à guerra dos egos e à guerra de poder. Com o RIC ninguém mais tem o poder, é toda a população que o possui”, diz Maxime Nicolle, um dos quais a imprensa declarou “líder” do movimento. Se a ideologia democrática é em si mesma uma das forças burguesas mais arraigadas, uma das últimas barreiras que teremos de superar no processo de constituição de classe, esta ganha nova energia no contexto de debilidade em que nos encontramos, na dificuldade de reconhecermo-nos como proletários e de sentirmo-nos uma só classe a nível mundial. Assim, a defesa democrática da soberania vê-se reforçada na identificação da catástrofe capitalista com o “fenômeno da globalização” e o recuo nacionalista que é dado como resposta por parte da socialdemocracia, seja mais a direita ou mais a esquerda9.
Apesar da majoritária presença do RIC, não quer dizer que não existam vozes que avisam do risco de recuperação que contém. Assim o fazem, por exemplo, os coletes amarelos de Toulouse ao falar de “RICuperação” em seu periódico Le Jaune [O amarelo]:
“O RIC aproveitou essa ilusão. Há de se dizer que, a primeira vista, a proposta era atrativa. Dizia-nos que, com isso, finalmente poderíamos ser escutados diretamente, que poderíamos recuperar o poder sobre nossas vidas. Nós decidiríamos tudo. E mesmo sem lutar, sem arriscar a vida nas rotatórias e nas manifestações, somente votando, nos nossos computadores em nossas salas de estar, usando pantufas e próximos de uma aconchegante lareira! Mas no comércio, quando se tem um produto para vender, mente-se: “Sim, assim que tivermos o RIC, poderemos conseguir tudo”. Isso é falso. Para começar, pedir a burguesia sua opinião para saber se estão de acordo com aumentar nossos salários!, é o cúmulo! Um voto contra os interesses dos capitalistas como, por exemplo, o aumento do salário mínimo por hora seria simplesmente rechaçado. Lembremo-nos do referendum de 2005 [sobre a Constituição Europeia]. E isso sem mencionar a intensa propaganda que sofreríamos se votássemos contra, sozinhos na frente de nossas telas”[10].
O peso do nacional-popular no movimento, um complemento necessário de um discurso democrático, reflete-se na ausência de sua consciência internacionalista. É paradoxal, já que os coletes amarelos foram retomados por proletários de outros países para expressar sua própria luta contra as condições de miséria existentes. Isso ocorreu especialmente na Bélgica, onde a identificação é mais imediata pela proximidade territorial e linguística, porém também no Egito, onde o governo, temeroso de uma extensão do movimento, teve de proibir a venda de coletes amarelos diante do chamado realizado por diferentes grupos para celebrar o aniversário da revolta de 2011 vestidos de coletes amarelos para expressar que é uma mesma luta. Também apareceram coletes amarelos durantes os protestos em Bulgária e Sérvia - igualmente contra o aumento da gasolina - e os do Iraque, que se iniciaram pela intoxicação de dezenas de milhares de pessoas devido à má purificação da água. Contudo, em lugares como Alemanha, Holanda ou Espanha os coletes amarelos foram usados por grupos de extrema-direita - e também por alguns grupos socialdemocratas - sem muito êxito de mobilização. Nesse contexto, apesar da natureza internacionalista do movimento, que é reconhecida por proletários de outras regiões do mundo, o movimento francês parece reorientado em si mesmo, em seu plano nacional, e as referências ao proletariado de outros países brilham por sua ausência, ao contrário do que ocorreu durante a onda internacional de lutas de 2011-2013.
Isto permite contextualizar a convivência - que com o decorrer da mobilização tem diminuído - no movimento com grupos de extrema-direita, junto com as expressões iniciais racistas e contra a imigração. Embora, atualmente, a presença dessas forças seja muito relativa, inflada pela propaganda que lhes dá a imprensa, esse não é o caso das chamadas pela defesa da indústria e comércio nacional, simbolizadas pelo pequeno comércio, e transmitidas pelo chamado a um Frexit. Nessas, onde muitos veem o peso da classe média ou da pequena burguesia, que estaria dirigindo o movimento ou, ao menos, conseguindo introduzir suas próprias reivindicações, nós não vemos senão um proletariado que apenas desperta e que demonstra ao mesmo tempo –um sinal de nossa época- uma clara capacidade de auto-organização e de enfrentamento com o Estado e a propriedade privada, e uma enorme dificuldade para reconhecer-se a nível mundial em uma classe contra um só inimigo: as relações sociais capitalistas encarnadas e defendidas pela burguesia[11].
Porém, de novo, ao interior do movimento ocorre uma luta contra essas tendências nacionalistas, de tal forma que no curso dos últimos meses cada vez são mais fracas, e cada vez mais se pode ouvir mais vozes que reivindicam a natureza internacional do proletariado. Assim, por exemplo, no final de dezembro celebrou-se uma assembleia de centenas de pessoas em Caen, em um edifício ocupado por imigrantes não documentados durante a greve dos ferroviários de 2018, em uma clara identificação da luta dos coletes amarelos e o proletariado imigrante contra o mesmo Estado e o mesmo sistema capitalista. De outro lado, Le Jaune adverte em seu segundo número contra as tentativas de separar o proletariado:
“Depois vem outros proporem-lhe soluções para gerir a crise que acabam esmagando os proles que vem de fora para continuar explorando aos daqui: gestão dura dos fluxos migratórios (feito), caça aos não documentados dentro do território (feito), Frexit, etc. Propõem-nos que nos tranquemos com chaves duplas e que bloqueemos a porta, como se o lobo capitalista não estivesse já entre as ovelhas francesas. Quando se propõem uma resposta nacional a um problema mundial é porque se está preparado para defender-se à custa do resto dos galerianos dessa Terra, e isso é precisamente o que os capitalistas do mundo todo esperam de nós nesses tempos tumultuosos: estarmos divididos e sermos controláveis” [12].
Ainda assim, embora isso tenha um papel que não pode ser subestimado nas limitações do movimento, é a própria democracia que, de uma forma imediata, apresenta-se como o principal fator de recuperação. Pode-se ver uma amostra disso com o efeito gerado pela legalização das manifestações, que começou a acontecer a partir do Ato IX (12 de janeiro), já que até então as convocatórias eram espontâneas e anônimas. A legalização supõe que tem de haver pessoas responsáveis ante as autoridades pelos danos produzidos nela, por isso mesmo os próprios convocadores têm um vivo interesse em pacificar e manter a ordem durante a manifestação. Além disso, isso obriga os coletes amarelos a seguir um trajeto previsto e conhecido pela polícia e a estabelecer um serviço de ordem. Como já dissemos antes, empurradas pela ala mais democrática do movimento, as manifestações em Paris irão deslocar-se dos bairros ricos do leste, salvando as lojas de luxo das expropriações proletárias, mas também afastando os manifestantes dos símbolos do poder, como o Élysées ou a sede patronal. Nessas demonstrações, a ideologia cidadã começa a pesar e os próprios manifestantes viram-se contra os grupos que quebram as vidraças ou até mesmo pintam elas.
Esta tendência do movimento a apagar-se democraticamente, contudo, foi contestada pouco depois pelo Ato XIII (9 de fevereiro), que, como já explicamos, foi convocado com a vontade explícita de romper com esta tendência à legalização, ou seja, de não declarar o trajeto à polícia e nem ter convocadores legais, nem serviço de ordem, assim como para voltar aos bairros ricos em uma nova retomada de combatividade. A partir de janeiro e nos meses que seguem, os coletes amarelos viverão fluxos e refluxos que expressarão com toda claridade tanto um caráter mais combativo e de negação da ordem estabelecida, como momentos de pacificação e democratização nos quais a ala majoritária que descrevemos antes consegue impor-se.
No mesmo terreno de canalização democrática, outro dos riscos do movimento é que se deixe prender por uma ideologia assembleísta. O processo de criação de assembleias e suas tentativas de coordenação são muito positivos, já que respondem a uma necessidade do movimento de dotar-se de estruturas de associação mais estáveis, defender-se da repressão, pensar juntos e criar mecanismos de centralização de escala nacional. Geralmente isso implica, como no caso de Saint-Nazaire, na ocupação de espaços para reunir-se e fazer as assembleias. Contudo, a pressão por fornecer reivindicações concretas, unanimemente refletidas em um papel que representa os coletes amarelos a nível nacional, pesa sobre este esforço de centralização e pode ter o efeito, finalmente, de retirar os demonstradores das ruas de maneira a discutir por horas sobre a maneira de formular uma frase que represente todo mundo. O papel positivo que a organização consciente de debates e discussões desempenha no interior de um movimento não deve ser subestimado de nenhuma maneira, mas é realmente necessário reconhecer que a separação entre a palavra e o feito, a burocratização das assembleias e as acrobacias verbais para fornecer uma ampla representação, implicam na morte dessas assembleias como expressões organizacionais do movimento e sua passagem à contrarrevolução. De fato, é com esse tipo de sentimento que muitos coletes amarelos saíram da segunda “assembleia das assembleias” (5-7 de abril), onde a unidade de ação que se expressa nas manifestações viu-se completamente diluída, e tudo se converteu em malabarismos para criar algumas folhas de demandas concretas onde “há espaço para todo mundo”.
Algumas perspectivas provisórias
As tarefas e atividades que assumimos como revolucionários não estão inscritas nem baseadas em possibilismos, mas vem determinadas pelas próprias necessidades - imediatas e históricas - da luta de nossa classe. Somos conscientes que o mais provável é que o movimento dos coletes amarelos seja liquidado, seja porque todos os limites que criticamos acabem apoderando-se do movimento, ou pelo próprio desgaste e recuo dos protagonistas. No entanto, nosso atuar consciente e voluntário pela revolução social, pela abolição do capitalismo, impulsiona-nos a assumir esse movimento como mais um pequeno episódio na luta histórica contra o capital. E no seio de todos esses episódios as minorias revolucionárias são as que tratam de impulsionar o movimento até suas últimas consequências.
Este pequeno texto faz parte desse impulso, como uma necessidade de nossa classe de fazer o balanço dessa luta, de expressar sua verdadeira ação frente às falsificações de todos os porta-vozes do capital, de demarcar e contrapor-se a todas as forças de nosso inimigo, de aprofundar nas forças e limites que temos.
Se há algo de peculiar nesse movimento é que vem marcando certa mudança nas características das lutas dos últimos anos. Desde Argentina à Grécia, desde o norte da África à própria França, de Brasil aos subúrbios dos Estados Unidos, etc., temos vivido diversos momentos de lutas importantes com a característica comum que se apresentavam como fortes erupções que cessavam rapidamente. O proletariado saía violentamente à rua empurrado pela agudização da catástrofe capitalista e se contrapunha com fúria aos inimigos mais visíveis do capital, porém passados os primeiros momentos, os primeiros dias, as primeiras semanas, quando já não bastava o instinto de classe, quando não se sabia muito bem como prosseguir, a burguesia apresentava todo tipo de medidas - alternância política, gestionismo, repolarização entre frações burguesas, repressão, guerra imperialista... - que restabeleciam a ordem. É certo que estas medidas de apaziguamento encontravam maior resistência por parte do proletariado, porém não ao nível de resistência e permanência dos protestos dos coletes amarelos depois de setes meses do início do movimento. Com fluxos e refluxos o movimento resistiu até agora à repressão, às diversas tentativas de canalização e não se deixou seduzir com migalhas que vem sendo oferecidas pelo Estado francês.
Em contrapartida, a burguesia, que até então era capaz de encerrar as lutas em seus Estados nacionais, vê como estão se rompendo esses muros de contenção que lhe permitiam enfrentar as lutas parte por parte. É certo, como dizíamos que o proletariado na França tem muitas dificuldades para assumir explicitamente o caráter internacionalista de sua luta, contudo em outras regiões do mundo a identificação com a luta dos coletes amarelos expressa abertamente esse caráter internacionalista. Essa realidade mostra claramente que as condições de vida do proletariado mundial tendem a homogeneizarem-se à medida que avança a catástrofe capitalista. Porém, o processo acabou de começar.
É óbvio que, como dizíamos em um texto de alguns anos atrás, hoje é de uma importância capital que as minorias proletárias daqui e dali avancem nesse indispensável processo de coordenação e centralização internacional, que quebremos as divisões país por país, ou pior ainda, cidade por cidade. Por isso temos que reconhecer que nunca foi tão minúscula a força das minorias revolucionárias, que nunca o proletariado teve tanta desorientação, que nunca houve uma contraposição tão grande entre a necessidade de revolução e a incapacidade de assumir essa necessidade. É evidente que dar a volta nessa situação é uma necessidade vital para a perspectiva revolucionária.
De qualquer maneira, esta fora de questão que o movimento dos coletes amarelos faz parte de um processo de despertar de nossa classe a nível internacional, após a derrota da onda de lutas dos anos 70. Diante da perspectiva factível de que esse movimento morrerá cedo ou tarde, se uma recuperação burguesa à altura e intensidade vivida e atingida por ele não for produzida, ele deixará para trás novos laços de solidariedade, talvez algumas estruturas, experiências de luta das quais derivar lições, um novo número de pessoas que, após sua radicalização no movimento, serão aderidas à atividade das minorias revolucionárias apesar do retorno à normalidade. Nossa classe aprende. Ela constrói sua própria memória. Ela desperta.
Não esperaremos sentados por um suposto proletariado metafísico que, liberado de todo pecado terreno, puro no mais profundo de sua alma, saia à rua para anunciar o fim do capitalismo e a chegada de um novo mundo. Não esperamos tampouco que o próprio capitalismo devore a si mesmo para poder gerir o desastre. Deixemos essas profecias religiosas para todos os militantes devotos, para todas as sagradas famílias da esquerda e extrema-esquerda do capital. O proletariado não descerá do céu, o capitalismo não se abolirá a si mesmo, senão que, como sempre, de vez em quando, a alternativa revolucionária aparece e aparecerá na luta de nossa classe, intoxicada pela nocividade capitalista, por todo o veneno que segrega essa sociedade. Nesse combate contra tudo o que nos impede de viver, contra tudo o que nos impossibilita afirmarmo-nos como ser humano, como comunidade humana, onde os pulmões podem tomar um pouco de oxigênio entre tanta poluição e onde a comunidade humana se prefigura como comunidade de luta frente à comunidade do dinheiro. O proletariado está forçado a destruir o capitalismo pela raiz se não quiser que esse destrua todo nosso mundo. Esse proletariado profano e corrompido não descerá do céu, porém tomará o céu de assalto.
Consequentemente, nós atuamos e compelimos todos os companheiros e grupos a defenderem nossos interesses de classe e a combater o enquadramento burguês nesses protestos; à estruturação e organização contra todas as tentativas de canalização democráticas e nacionalistas; a fortalecer e estender os contatos entre nós, a criar redes organizativas em todos os níveis; estruturas para defender-nos da repressão e para discutir sobre como assumir tal ou qual tarefa.
Notas
[1] Referência ao movimento França Insubmissa, liderado atualmente por Jean-Luc Mélenchon. Estender mais sobre isso.
[2] Movimento conservador e corporativista de pequenos comerciantes, liderado por Pierre Poujade nos anos 50, que protestavam contra a extensão de grandes espaços comerciais. Jean-Marie Le Pen viria a se tornar um deputado poujadista antes de fundar o Front National.
[3] Do francês bourgeois bohème, “burguês boêmio”, que faz referência à burguesia progressista e cultivada das cidades.
[4] A “França branca de baixo”, o lixo branco francês.
[5] Trata-se de um grupo organizado contra a violência policial nas banlieues, com um discurso próximo ao racialismo. Tem seu nome em memória de Adama Traoré, um jovem de 24 anos que em 2016 foi assassinado pela polícia enquanto estava detido.
[6] Ver nosso livro La Llama del subúrbio [As chamas do subúrbio] em www.proletariosinternacionalistas.org.
[7] Dizemos isso sem esquecer todas as limitações que têm os black blocs, como uma prática militante hiperespecializada que, ao dar muita importância à confrontação física com a polícia, cai facilmente no espetáculo da violência –vazia de conteúdo de classe e, portanto, facilmente recuperável-, como temos presenciado nas sucessivas contra cúpulas das últimas duas décadas –ver ao respeito o artigo “Contra las cumbres y anticumbres” da revista Comunismo nº47 em https://drive.google.com/file/d/1lF2FiBkCLyTZCrJcU8Qmq8qTgfUX1UFC/view?usp=sharing. Assim também é advertido por um panfleto distribuído durante o 1º de maio deste ano: os saques, os ataques à propriedade urbana, o enfrentamento com a polícia, “nada mais normal e lógico, nada mais são e saudável, e incluso seria desanimador se não ocorresse. Porém, também seria desanimador (por outros motivos, certamente), assim como danoso para a continuação do movimento de oposição à ordem de coisas presente, que simplesmente ocorresse isso e que acabasse ali, que nos limitássemos a uma violência de classe que poderia transformar-se em espetáculo da violência, que não fossemos mais longe, que não aprofundássemos a ruptura, o abismo que nos separa deles, nós, a humanidade em luta e eles, os capitalistas e seu mundo, feito de miséria, de exploração, de guerra e de sofrimento” (“Coletes amarelos (ou não). Por um 1º de maio combativo. Ação direta anticapitalista” em: https://lille.indymedia.org/IMG/pdf/gilets_jaunes_ou_pas_mayday.pdf).
[8] Texto retirado de Guerra de Clases nº9, inverno de 2018-2019: https://www.autistici.org/tridnivalka/category/other-languages/espanol/.
[9] Veja o texto de Barbaria, “Más allá de la extrema derecha” [Para além da extrema-direita] em: http://barbaria.net/2018/12/20/mas-alla-de-la-extrema-derecha/.
[10] O texto original pode ser encontrado em: https://jaune.noblogs.org/files/2019/01/Jaune1-web.pdf e sua tradução ao castelhano no número mencionado mais acima de Guerra de clases.
[11] Dizemos isso não porque a pequena-burguesia não exista como “classe” sociológica, senão porque esta jamais cumpriu o papel de classe no sentido de movimento histórico, de força social, de partido. As duas únicas forças sociais são burguesia e proletariado, revolução e contrarrevolução, constantemente contrapostas como os dois polos da contradição capitalista.
[12] Esse texto em francês pode ser encontrado em: https://jaune.noblogs.org/files/2019/02/Jaune-2.pdf.
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Revolta no Equador (novembro de 2019)
La Oveja Negra
Tradução do texto Revolta no Equador de 2019 publicado na revista La Oveja Negra, na edição de número 66 (novembro de 2019).
Em 1º de outubro de 2019, o Presidente do Equador, Lenín Moreno, anunciou em escala nacional um pacote de medidas de austeridade econômica em acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), que evidentemente, como já sabemos nessas regiões, afetaria as condições de vida e sobrevivência da maioria da população naquele país. Aos empresários reduzem impostos e perdoam milhões de dívidas, enquanto que para as pessoas exploradas há flexibilidade e instabilidade no emprego, demissões, subemprego e maior custo de vida.
Um pequeno texto amplamente divulgado resumiu em quatro pontos como o pacote afetaria o proletariado no Equador:
- "Eliminação dos subsídios da gasolina e diesel extras: isso significa um aumento em todos os produtos e serviços básicos de consumo em geral. O custo de vida aumenta.
- Redução de salários: o funcionário público que tiver um contrato ocasional renovado será 20% menor que o salário atual. Cerca de 40% dos trabalhadores têm esse tipo de contrato.
- Funcionários públicos: doarão compulsoriamente um dia de seu salário por mês ao Estado e terão apenas 15 dias de férias, incluindo fins de semana.
- Modalidades contratuais: a flexibilidade e a instabilidade do trabalho serão priorizadas, beneficiando assim o empregador” (Rede de Imprensa Popular do Equador).
No dia seguinte, a Frente Unitária de Trabalhadores (FUT), a Confederação das Nacionalidades Indígenas do Equador (CONAIE) e a Frente Popular (FP) anunciaram uma greve e uma série de mobilizações imediatas. A Federação Nacional das Cooperativas Públicas de Transporte de Passageiros (FENACOTIP) anunciou a paralisação dos trabalhos em 3 de outubro.
Já no início das manifestações que rejeitaram essas medidas de austeridade, podemos ler em um panfleto a necessidade de sair para protestar, mas também a necessidade de ir além se você “realmente deseja parar de apenas sobreviver”:
“As últimas medidas econômicas do governo equatoriano são medidas de austeridade em tempos de crise capitalista, que foram aplicadas e estão sendo aplicadas pelos governos de direita ou ‘neoliberais’ e pelos governos de esquerda ou ‘socialistas do século XXI’ em todo o mundo, porque é isso que a própria lógica do modo de produção capitalista os determina a fazer, em qual se baseia a (ou vive às custas da) exploração da classe trabalhadora. De fato, em tempos de crise, o capital sempre aplica a mesma política econômica contra nossa classe em todos os lugares: ajuste de cinturões ou maior empobrecimento e aumento da exploração.
No caso específico do último ‘pacote’ de Moreno, o primeiro é alcançado pelo aumento do custo de vida devido ao aumento do preço da gasolina (uma vez que se sabe aqui que ‘se a gasolina aumenta, tudo sobe’); e a segunda, com todas as reformas trabalhistas flexibilizadoras e precarizadoras impostas (redução de salários, das aposentadorias, das férias, do pessoal, contratos flexíveis, teletrabalho etc.).
Portanto, o problema não é apenas o governo de ‘pacote’ ou ‘neoliberal’ de Moreno ou do FMI. O problema fundamental é como o Capital nos ataca direta e esmagadoramente como classe trabalhadora em tempos de crise e como podemos responder. A luta é o caminho, sem dúvida. Mas também é necessário analisar de forma autocrítica e estratégica a luta de nossa classe.
(…) Por enquanto, saia para protestar com os slogans ‘abaixo ao pacote’, ‘abaixo à Moreno’ e ‘abaixo ao FMI’, ‘construa afinidade nas ruas’ e faça tudo isso coletivamente, mais ou menos organizado, mais ou menos autônomo, mais ou menos combativo …é necessário e está bem; mas é necessário ir além (como foi dito hoje à noite em uma assembléia que se convocou por aqui): ‘abaixo ao governo’, ‘abaixo os empresários e os banqueiros’, ‘todos vão embora, nem um único permanece’, ‘Abaixo o capital, abaixo o estado, abaixo os governos e todos os seus lacaios’.
Reverter o ‘pacotaço’ e derrubar Moreno (como Bucaram, Mahuad e Gutiérrez foram derrubados nos anos anteriores) seriam verdadeiras ‘vitórias’ para o possível e novo ‘movimento’ de protestos sociais neste país. Mas, sendo objetivo, aqui e agora não há condições reais e forças sociais, o nível real da luta de classes por isso, embora comece por uma razão. Pode ser que esse governo de empresários e banqueiros se livre dele, mas a luta da classe proletária nas ruas tentará evitá-lo e não será em vão. A luta é o caminho e bem ali, você aprende, principalmente com golpes e derrotas, a fim de transformá-los em seu oponente em batalhas futuras”. (Anônimo. Breve análise do “pacote” e dos próximos protestos neste país a partir de críticas radicais. Quito, 2 de outubro).
Na quinta-feira, 3 de outubro, várias organizações sociais em todo o país convocam para organizar uma greve nacional. O CONAIE, juntamente com os setores do sindicalismo tradicional, apoiam a greve para expressar sua oposição ao pacote de medidas do governo. Este anúncio levou ao início de uma série de mobilizações em diferentes partes do país e assembleias permanentes em vários territórios. A intensificação da Greve em Quito é apoiada por uma massiva mobilização indígena na capital. A revogação imediata do “pacotaço” é exigida, ou seja, do Decreto 883, emitido pelo Governo. Cabe assinalar, no entanto, que de 3 a 7 de outubro, aqueles que sustentaram os protestos e motins nas ruas não foram os povos indígenas, mas as massas proletárias heterogêneas da cidade. Além disso, desde 3 de outubro o governo decretou um estado de emergência e reprimiu brutalmente os manifestantes.
Desde a manhã de 4 de outubro, houve uma presença militar e policial em vários setores do país, tanto para enfrentar os protestos contínuos quanto para garantir o transporte. As transportadoras anunciaram o fim da greve para iniciar o diálogo com o governo. E apesar dessa tentativa de fura greve da máfia dirigente dos transportadores, a greve continuou, incluindo a participação de algumas bases dos mesmos transportadores. Enquanto que, em Guayaquil, saques também foram registrados em algumas lojas.
No dia 5, a CONAIE decretou um “estado de exceção” em todos os territórios indígenas, anunciando a retenção de policiais para serem submetidos à justiça indígena (banho de água gelada, urtiga e chicote). Tais retenções já estavam ocorrendo em lugares como Alausí, onde 47 soldados permaneceram detidos até a chegada da governadora. Ao mesmo tempo, se anuncia uma grande mobilização desde Quito.
No dia 6, na Puente de la Unidad Nacional (Guayaquil), um cerco militar e policial é criado. Em Azuay, a primeira morte é registrada. Em Quito, se recebem doações na sede da CONAIE. À noite, tanques militares entram no centro histórico da capital. O ministro da Defesa Oswaldo Jarrín e a ministra do governo María Paula Romo falam em rede nacional à noite, onde dizem que não são tanques, mas “blindados”, que “não há territórios indígenas”, mas apenas o do Estado nacional, eles ameaçam com “não desafiem as forças armadas”, desqualificam os protestos “violentos” e as “notícias falsas” e justificam o terrorismo de Estado e as mentiras da imprensa.
No dia 7, mais de 20.000 “indígenas chegaram a Quito e foram recebidos com aplausos pela população da cidade. As tentativas de conter o avanço foram inúteis: tanques incendiados, delegacias destruídas e policiais fugindo (…), ao mesmo tempo em que milhares de manifestantes chegaram a pé ou em todos os tipos de veículos à capital equatoriana. Enquanto isso, o presidente Lenín Moreno teve que fugir da capital e mudar a Casa do Governo para a cidade de Guayaquil. Imagens foram divulgadas nas mídias sociais dos prédios do governo evacuados quando o movimento indígena cercou o palácio do governo” (ANRed. Equador: mobilização histórica em Quito faz o governo fugir para Guayaquil). A Assembléia Nacional e a Rádio Pública também foram tomadas.
Fala-se então em insurreição. Mesmo também de “duplo poder”, da “Comuna de Quito”, devido às ocupações, com centros de coleta, panelas comuns, montagens permanentes e barricadas. Com um epicentro no parque “El Arbolito” e a Àgora da Casa da Cultura Equatoriana (CCE) – a poucas quadras da Assembleia Nacional e da Controladoria Geral do Estado – essas ocupações foram mantidas até o último dia da greve.
9 de outubro é o 7º dia da paralisação nacional e uma grande greve geral é convocada. Há fortes confrontos nas ruas e brutal repressão policial a tal ponto que, à noite, a polícia lança bombas de gás lacrimogêneo nos “centros de paz” onde se encontravam mulheres e crianças.
Até então, as massas proletárias, das quais os indígenas são parte fundamental, lançaram-se nas ruas e rodovias do país, com atos de solidariedade e rebelião que a grande mídia tenta cercar, encobrir e falsificar. A Assembléia Nacional (digamos, o Congresso) é temporariamente ocupada, delegacias e outros prédios públicos são ocupados e queimados. Militares e policiais são capturados e seus veículos são incendiados, a luta se espalha em várias cidades com vasos comuns no calor das barricadas, os poços de petróleo continuam ocupados [1] e os governos estão ocupados em algumas províncias da Amazônia e da Serra. Panelaços, barricadas e marchas também são realizados em muitas partes do país. As massas proletárias no campo defendem seus territórios e expulsam os militares, depois descem às cidades para se tornar parte da insurreição. A luta não apenas destruiu o mutismo sórdido da rotina capitalista, mas também quebrou o isolamento e permitiu o encontro rebelde de pessoas que, até uma semana atrás, nunca ousariam se falar ou se aproximar. Assembleias auto-organizadas e redes de solidariedade proliferam.
Compartilhamos trechos de um panfleto daquele dia feito “de onde as batatas queimam”, assinado por “Un@s proletari@s cabread@s de la región ecuatoriana por la revolución comunista anárquica mundial” [Alguns/Algumas proletários/proletárias irritados/irritadas da região equatoriana pela revolução comunista anárquica mundial]:
“Fizemos fugir o presidente fantoche dos empresários e banqueiros ladrões do Palácio Carondelet e tomamos a Assembléia Nacional, por meio de ações diretas maciças e redes de solidariedade de classe, apesar do terrorismo de seu Estado (estado de exceção, repressão policial e militar brutal, centenas de detidos, dezenas de feridos, vários mortos, toque de recolher).
Não sabemos quando ou como a situação atual terminará. Mas sabemos que a luta social continua e deve continuar, tendo claras e firmes as seguintes demandas mínimas e inegociáveis:
Revogar todo o pacote econômico, não apenas o aumento das passagens.
Revogar o estado de exceção e o toque de recolher.
Derrubar todos os “poderes” do governo Moreno, seus chefes e capangas.
Não negociar ou ceder ao Estado dos ricos e poderosos que nos matam de fome e a tiros. Não permitir que a burguesia e os políticos oportunistas da direita ou da esquerda roubem o poder que conquistamos nas ruas nos dias de hoje. Não exigir novas eleições e um novo governo. Chega do mesmo roteiro político de merda. Autogoverno das massas.
Manter as Assembleias em todos os lugares para auto-organizar a mobilização, solidariedade, suprimentos, saúde e autodefesa das massas.
Exigir o retorno de todo o dinheiro roubado por empresários, banqueiros e políticos, a fim de melhorar as condições de vida da classe trabalhadora do campo e da cidade.
Expulsar a Mineração e o FMI.
Libertar os colegas detidos.
Quebrar a barreira da mídia e denunciar o terrorismo econômico e policial do Estado.
Solicitar a solidariedade de classe internacional concreta em todo o mundo.
Proletári@s na luta deste país:
Ganhando ou perdendo, despertamos da letargia histórica, respondemos a ataques de todos os tipos da classe dominante, fizemos coisas que não foram feitas há muitos anos e estamos aprendendo na prática várias lições importantes durante esses dias de intensa luta de classes .
Ganhando ou perdendo, continuemos acendendo a chama da luta proletária para construir e sustentar, a médio e longo prazo, uma força social autônoma, com capacidade e clareza necessárias e suficientes para tomar o poder, não do Estado burguês, que deve ser destruído pela raiz, mas sobre nossas vidas. (…) ¡Vamos hacia la Vida! [Vamos para a vida!]”.
Devido à brutal repressão do dia 9, o dia 10 começa com este cenário de guerra: “7 mortos, dos quais 1 recém-nascido; 95 gravemente feridos, mais de 500 com ferimentos leves; 83 desapareceram, dos quais 47 menores de idade; mais de 800 detidos, dos quais a maioria em delegacias policiais e militares; 57 jornalistas atacados pela polícia; 13 jornalistas presos; 9 meios de comunicação intervertidos; 26 políticos presos; Além disso, é relatada a prisão arbitrária de 14 cidadãos venezuelanos que não participaram das marchas” (Coordenadoria de Contra-Informação do Equador). Por esse motivo, este é um dia de luto, mas também de protestos, de policiais retidos, assembleias, marchas e resistência. Com efeito, no dia 10 na Àgora da CCE em Quito, os indígenas detiveram 8 policiais, solicitando que a pessoa mais velha contatasse o comandante da polícia para interromper a repressão e revogar o Decreto 883. No mesmo lugar foram realizadas cerimônias fúnebres para os manifestantes falecidos. Haviam 31 jornalistas que, segundo o CONAIE, “não estão sequestrados, estão com o povo para garantir o direito à informação”, enquanto a Àgora foi fechada como medida de segurança.
O 11º dia “no Equador foi o nono dia da greve e os equatorianos já haviam enlouquecido. Esse dia começou com a nova tarifa de transporte público [de 25 ctvs. para 35 ctvs. dólares]. Além disso, com a declaração de emergência no setor de flores do país. (…) O presidente da Expoflores, Alejandro Martínez, disse que ‘se as atividades não forem retomadas, serão perdidas cerca de 20 mil toneladas de flores, que chegam a ser mais de 250 milhões de dólares’. A mobilização dos povos indígenas continuou. (…) A produção de petróleo já havia perdido mais de 50% de sua produção. Havia mais de mil detidos, segundo dados da Ouvidoria. Um protesto pacífico estava ocorrendo nos arredores da Assembléia Nacional. Centenas de mulheres indígenas gritaram: ‘Somos mulheres, não somos criminosas’. Nesse dia, vários grupos feministas na capital também se juntaram ao protesto indígena. Mas a polícia (depois de levantar uma bandeira branca para ganhar tempo e obter mais munição) reprimiu manifestantes pacíficos e jogou gás lacrimogêneo. ‘Fomos enganadas’, disse uma mulher Shuar, que contou o que aconteceu na Assembléia. Nas redes sociais, a Polícia denunciou os ataques contra seus membros e explicou que esse tipo de comportamento ‘tinha uma preparação para o combate’. Naquele dia 11 de outubro, em Quito, várias explosões foram ouvidas à noite. O ministro Romo disse que a explosão mais forte ouvida foi produzida por um tanque de gasolina. A área de El Arbolito já era uma área de combate” (La Barra Espaciadora. A crise de outubro, dia a dia).
Apesar do toque de recolher e da repressão, as barricadas cada vez mais organizadas e resistentes de El Arbolito duraram a noite toda até as cinco da manhã.
Em 12 de outubro, aniversário da colonização do continente americano, durante os protestos, ocorreram incidentes na sede do canal Teleamazonas, no jornal El Comercio e na Controladoria Geral. Piquetes, panelaços e marchas também foram feitos em quase todo Quito, especialmente em bairros populares no sul, centro e norte da cidade, o que foi um fato novo durante esses dias. Devido a isso, o governo decretou o toque de recolher em Quito a partir das 15:00 e circulavam rumores de que a Polícia dispersaria violentamente a Àgora da CCE (terror psicológico do estado), enquanto no resto do país (onde também houveram protestos), o toque de recolher foi mantido como antes, ou seja, das 20:00 às 05:00. Anteriormente, indicou-se que se revisaria o decreto que eliminou os subsídios, após o anúncio de que o CONAIE aceitaria o diálogo direto, que também incluía o FUT e o FP. Evidentemente, a conciliação já estava sendo preparada sob o argumento de “evitar mais derramamento de sangue”.
No dia 13, a cidade de Quito acordou sob o toque de recolher que durou até a tarde, quando o governo o suspendeu para que os líderes da CONAIE pudessem se mobilizar para o ponto de encontro. Essa reunião aconteceu durante a noite, após a qual foi obtida a revogação do decreto 883 (que tinha sido a centelha que incendiou o pavio), que finalmente ficaria nulo e sem efeito na terça-feira, 15 de outubro. Uma vitória parcial com um gosto amargo, porque as reformas trabalhistas e o “acordo” com o FMI não foram revogados, os ministros assassinos e o presidente não renunciaram e isso às custas de todos os camaradas mortos, feridos e presos. Naquela mesma noite, os líderes indígenas depuseram as medidas de fato, pediram paz nas ruas e habilitação das estradas do país.
Na segunda-feira, 14 de outubro, começou o tratamento da revogação do decreto 883 (que foi a centelha que acendeu o pavio). O acordo não impediu a extensão das prisões e incursões de pessoas que alimentaram a agitação social na cidade de Quito. Além disso, poderíamos dizer que essa repressão seletiva deriva indiretamente dessas negociações. O CONAIE, em conjunto com os cidadãos, organiza uma mega “limpeza de minga” dos espaços ocupados durante os 11 dias de revolta em Quito, o que significa libertar todo o território preparado para o conflito de barricadas e qualquer registro das revoltas, para deixá-lo ao controle do Estado. De qualquer forma, como nos demais países em que se volta atrás ao desencadeador da revolta, isso não é mais suficiente, porque o problema não é um único aumento ou um pacote de medidas, mas algo muito maior.
Solidariedade
Nestes dias de protesto, com desobediência e solidariedade, o proletariado em luta era nutrido por barricadas, reuniões e assembleias populares. Se auto-organizava para estocar pedras, bicarbonato de sódio e vinagre (para combater o efeito do gás lacrimogêneo), mas também alimentos e bebidas.
Queremos compartilhar um testemunho que nos dá uma ideia da intensidade dos laços daqueles dias:
“Na segunda-feira, um conhecido me disse que, se não conseguimos nos organizar quando o terremoto ocorreu há dois anos, poderíamos fazer isso pior agora, diante da chegada de milhares de pessoas. Ele me perguntou: quem vai pagar por isso? Como será resolvido que eles comam três vezes ao dia pelo menos algo básico? E então eu disse: as comunidades sabem como se organizar. E assim foi. Não estava me referindo apenas às comunidades indígenas, mas às comunidades de seres humanos [no geral]. E, de fato, foi possível para mim descobrir que, quase como por mágica, dezenas de células organizacionais foram formadas para solicitar doações, cozinhar, dar apoio psicológico e emocional, transportar, coletar lixo, tomar cuidado, limpar, distribuir o que é necessário, curar, comunicar-se … Enfim, para tudo o que for necessário.
Eu mesma, de ontem para hoje, faço parte de uma rede de afeto e empatia na qual talvez só nos encontremos apenas por esse período da vida, mas tem sido o suficiente compartilhar essas jornadas, para dar abraços amorosos quando nos despedimos ou enviar abraços por mensagens entre pessoas que nem sequer vimos.
E é a essas comunidades que eu estava me referindo na segunda-feira quando respondi ao meu amigo e ele ouviu cético. E acho que, se há tantas pessoas boas com tanta vontade de ajudar, tantas pessoas se ajudando, tantas pessoas colocando seus corpos nessa luta, é porque todos nós que estamos aqui sabemos que não estamos apenas ajudando, mas que estamos jogando com o futuro. Tão poderosa é a luta que os/as irmãos/irmãs [hermanxs] a apoiam no México, Argentina, Colômbia, Chile, Peru, Bolívia. E é poderoso não apenas porque é maciço e resistente, mas porque torna visível um pensamento de respeito e dignidade, um pensamento que nos acompanha há milhares de anos e, por sua vez, evidencia um sistema de morte que é aquele que deseja subjugar toda a humanidade.
Cada um saberá qual sistema o acompanha: eu sou do sistema da Vida” (Extraído de uma publicação de Facebook. 10 de outubro).
Repressão e criminalização
À repressão brutal nos dias de revolta, devemos acrescentar a subsequente criminalização e perseguição a ela. O governo realizou buscas nas instalações e casas de alguns líderes de organizações sociais, bem como ações judiciais. Até o momento, no Equador, existem 11 mortos, 1.340 feridos e 1.192 detidos da Greve, pelos quais os combates continuam e continuarão.
Depois de espalhar o absurdo de que a revolta foi provocada pela Venezuela (Maduro), FARC e Correa, o Estado equatoriano recorre à carta do “inimigo interno” que classificou como “grupos insurgentes” para justificar sua repressão e terrorismo. Desde 29 de outubro, as Forças Armadas do Equador têm uma nova missão: “será identificá-los, isolá-los e neutralizá-los para serem entregues às autoridades competentes”.
As declarações do diretor de operações do Comando Conjunto, Fabián Fuel, são feitas após o presidente da CONAIE, Jaime Vargas, falar sobre a criação de um “exército próprio” de movimentos indígenas. Por esse motivo, a Procuradoria Geral da República abriu uma investigação contra ele. No entanto, Vargas apontou que “em nenhum momento, em todas as minhas expressões, eu disse um exército armado, nunca disse um exército subversivo”. E ele explicou que o movimento decidiu criar “uma guarda comunitária indígena” para fornecer segurança em seus territórios e que seria “apegada à Constituição”, operando em cooperação entre a justiça comum e a indígena.
A imprensa colabora, como sempre fez, falando de “grupos de estudantes que estavam preparando acampamentos do tipo guerrilha”. E, juntamente com o Estado, eles falam de “células anarquistas” e, é claro, de infiltrados, assim como dias atrás eles falaram em instigação da Venezuela ou de terroristas indígenas, acrescentando combustível ao fogo da xenofobia e racismo já existentes.
Recentemente, no Chile, seu presidente desde o início também fez declarações semelhantes: “Estamos em guerra contra um inimigo poderoso”. Insinuando que por trás da revolta havia alguma mão negra, que poderia ser desfeita em acusações contra a Venezuela de Maduro ou grupos armados clandestinos (mapuche, anarquistas ou a assembleia que eles inventam). No entanto, esse inimigo poderoso que afeta diretamente seus interesses e os de sua classe é o proletariado, não este ou aquele grupo designado ou inventado para garantir a “segurança interna”, isto é, a continuação da sociedade de classes.
Carta do passado
Na brochura Revueltas en Ecuador, feita pela Biblioteca e Livraria La Caldera (Buenos Aires), eles publicaram como uma carta do passado um artigo da revista Comunismo [periódico do GCI], nº 45, do ano 2000, intitulado “Aqueles que lutam contra o capital e o Estado!” (contra o mito da invencibilidade das forças repressivas).
Este artigo descreve as revoltas de 19 anos atrás no Equador e poderia ser uma descrição atual, alterando-se alguns dos nomes próprios. Se extrairmos alguns parágrafos, não é por curiosidade casuística, mas para entender como as lutas acontecem, para aprender com os erros repetidos, para não supor que tudo está começando, em suma, para entender a historicidade dos eventos atuais:
“Em janeiro de este ano [2000] as lutas que se tinham desenvolvido durante todo o ano passado adquiriram uma força inusitada quando proletários do interior começaram a marchar em direção de Quito, radicalizando assim também o movimento preexistente na dita cidade. O governo democrata popular de Mahuad tenta travar os protestos enviando a repressão e diluindo-os pela força. Ao princípio o ataque toma por surpresa os manifestantes: há feridos, há presos e, em primeira instância, dispersão e desorientação. Mas à violência que por cima assalta o proletariado agrícola e urbano responde-se com a violência de baixo: as manifestações não só não se acabam, mas desenvolvem-se de forma mais organizada e fortificam-se, a violência de classe assume-se abertamente. Enquanto o proletariado conquista os poços de petróleo, paralisa o oleoduto trans-equatoriano cortando a distribuição do combustível e impedindo toda exportação, dezenas de milhares de manifestantes enfrentam-se aos militares, cortam os grandes eixos, controlam os acessos das aldeias e cidades e conquistam as ruas de várias cidades do país. Se antes se podia ainda pretender que a protestação estava dirigida contra a presidência e o poder executivo, com a radicalização das manifestações o questionamento do Estado é tão geral que se reconhece publicamente. Proíbem-se as manifestações, atira-se para a rua as forças de choque e o Estado de Sítio é declarado. Mas as manifestações são cada vez mais potentes, o proletariado questiona abertamente a potência estatal no seu conjunto. Vendo-se totalmente questionado e superado o presidente Mahuad designa alguns ministros como culpados, força-os a renunciar, nomeia alguns outros mais progressistas … Mas tudo isto para nada serve, a luta proletária segue com maior intensidade. Consciente do perigo, a burguesia decide sacrificar o próprio presidente e até o Exército e os Sindicatos tentam acalmar o jogo. Dizem que ‘a luta é contra a corrupção’, o FUT – Frente Unitária de Trabalhadores – declara que é necessário castigar a corrupção e formar um governo de Salvação Nacional. […]
Nenhuma força repressiva é então capaz de travar o movimento insurrecional, os poucos militares que tentam fazê-lo são completamente ultrapassados e recuam covardemente perante esta avalanche humana de várias dezenas de milhares de proletários de ambos os sexos, de todas as idades e categorias (‘indígenas’ ou não – mais uma vez nesta discriminação os periodistas afirmam-se como agentes decisivos do Capital e do Estado) que buscam apoderar-se de distintos edifícios públicos: em Quito tomam o Palácio do Governo, o Parlamento, a Corte Suprema de Justiça, a Tesouraria, os Ministérios, o Banco Central, assim como outros edifícios, ao mesmo tempo que chamam a reproduzir isto em todas as cidades que já estão totalmente paralisadas pelo movimento. […]
Dia 23 de janeiro, na rua festeja-se a vitória da insurreição, apesar dos maquiavelos e dos gatopardistas misturados aos manifestantes que continuam insistindo em ‘buscar soluções ao movimento’. Os fabricantes da informação falsificam tudo e falam de ‘um golpe de estado militar apoiado por indígenas!’, ao mesmo tempo que se incita ao racismo anti-indígena. Declara-se formada uma Junta de Salvação Nacional, de fato, um triunvirato constituído por militares, líderes indígenas oficialistas e um membro em voga da corte Suprema, que com um discurso de esquerda tenta restabelecer a ordem [2]. Frente à continuidade do movimento e à incredibilidade do proletariado, opera uma verdadeira frente única de salvação nacional constituída pelos sindicatos, os partidos e tudo o que resta das forças repressivas que apelam à cessação do movimento e ao apoio à Junta. O próprio presidente da CONAIE, António Vargas, declara que ‘o povo equatoriano triunfou, que a Junta de Salvação Nacional não defraudará o país, e que a unidade com as forças armadas era uma experiência nova para a América Latina’. Mas perante a incredibilidade generalizada, essa Junta apenas dura algumas horas, o poder, de fato, permanece na rua, apesar dos esforços dos reorganizadores do Estado capitalista, dentro dos quais os jornalistas, que jogam as suas cartas mais fortes ocultando, desinformando, tergiversando aproveitando a falta de novas iniciativas e directivas do proletariado, assim como os apelos a voltar para casa, declara-se (especialmente pela boca do general Carlos Mendoza em nome dos militares) que o ‘poder’ do presidente destituído passa para as mãos do vice-presidente Gustavo Noboa, que, como aparece evidente a todos os protagonistas, imporá a mesma política econômica que o seu predecessor. O rechaço do proletariado a tais ‘soluções’ continua explícito. Na rua as consignas são de total repúdio a todas as tentativas que provêm abertamente do Estado. […]
A CONAIE, organização indigenista, que, como vimos, aparecia como interlocutor representante do movimento, pela boca do seu presidente António Vargas, apoia ‘a solução’ (o indigenismo sempre atua contra a unificação do proletariado) pactuada pelos partidos, exército e sindicatos, apesar de, para manter uma certa credibilidade, também fala da ‘traição’ de Mendoza. Todos os aparatos do Estado Burguês voltam a unificar-se e para isso assimilam-se proletários indígenas inconsequentes. O descontentamento e a desorientação na rua é geral, o sentimento de ter sido enganado de novo é absoluto, mas o golpe que significaram as declarações dos chefes vendidos foi forte e procura desarticular, ao menos temporariamente, o movimento. A imprensa dirá satisfeita (de ter cumprido o seu dever de ordem) que ‘os indígenas voltam às suas casas e às suas terras’. Depois de duas semanas de luta aberta contra o Estado, o regresso a casa tem um gosto amargo. Mas o proletariado, que sentiu de maneira concreta que podia enfrentar o estado e desgarrá-lo, já não será tão facilmente mantido em submissão. Será muito laborioso, apesar de todos os esforços feitos pelos fabricantes da opinião pública, catapultar a sua consciência da força experimentada”.
Queremos adicionar uma nota e uma atualização a esta edição presente:
Quando nos referimos ao indigenismo, não estamos nos referindo a ser indígena, mas à ideologia do indigenismo que supõe que, além das classes sociais, haveria grupos que estariam fora do referido antagonismo. É claro que existem diferenças, no entanto, vivemos em condições materiais definidas por nossa classe social, elas nos atacam igualmente e teremos que lutar juntos: proletários indígenas e proletários branco-mestiços contra burgueses indígenas e burgueses brancos-mestiços. Lutar não para “igualar” classes e raças, mas para aboli-las.
Essa ideologia, não por acaso, é reproduzida principalmente por pessoas não indígenas e é negada pelos fatos quando a paz social é rompida. Quem é indígena e quem não é nesses países onde todos os oprimidos são descendentes de povos indígenas, imigrantes pobres ou uma mistura de ambos?
Por outro lado, as propostas de um indigenismo separatista são uma possibilidade incapaz de oferecer uma resposta à exploração e à opressão geral. Os povos indígenas não têm pátria, nem o resto do proletariado. Talvez o mais interessante seja que os povos indígenas já saibam disso [3].
Enquanto escrevemos este boletim, Jaime Froilan Vargas, líder indígena Schuar e atual presidente da CONAIE, com o fogo da barricada extinto, fantasia sobre a presidência equatoriana. Ele até antecipou como serão as coisas quando ele governar o país: “não nos reunimos para defender nossas ideologias políticas partidárias, mas para trabalhar, pensar, discutir e debater um processo importante: um novo modelo econômico para o nosso país”. A conciliação contra o proletariado em luta leva esse líder, em 31 de outubro, a propor um “novo modelo econômico” para o Equador ao governo assassino de Moreno, nada mais e nada menos do que na Conferência Episcopal, onde delegados do Governo e a ONU se reúnem. “Esta proposta de novo modelo econômico e social, é do povo, pertence ao povo, e ao desenvolvimento do país”, evidenciando a natureza reformista e oportunista do indigenismo.
Breve balanço
Compartilhamos abaixo extratos de Breve balanço e perspectiva das jornadas de luta proletária em outubro de 2019, no calor dos últimos eventos e debates a esse respeito. Assinado por “Un@s proletari@s cabread@s de la región ecuatoriana por la revolución comunista anárquica mundial” [Alguns/Algumas proletários/proletárias irritados/irritadas da região equatoriana pela revolução comunista anárquica mundial] (Quito, 17 de outubro de 2019):
“Se fez o que se poderia ser feito, o que as forças realmente existentes permitiram fazer, nem mais nem menos; concretamente, obrigar a abolição parcial das mais recentes medidas de austeridade capitalista ou do ‘pacote’ imposto pelo governo Moreno (decreto executivo 883), desde as ruas conquistadas pela luta dia após dia e noite após noite. Mas, como Marx disse, um passo adiante do movimento real vale mais de uma dúzia de programas.
Essa vitória parcial de 13 de outubro (com certo sabor de derrota por nossos mortos e pela permanência do atual governo de ladrões e assassinos e suas desastrosas reformas trabalhistas) foi o resultado de todas as ações diretas das massas realizadas desde 3 de outubro: se tomaram instituições governamentais, poços de petróleo, estradas foram paralisadas, houveram marchas e panelaços, piquetes e barricadas, alguns comércios foram saqueados, regimentos policiais e tanques de guerra foram queimados, policiais e militares foram capturados e retidos, o presidente fugiu para Guayaquil, a Comuna foi estabelecida em Quito como epicentro da Greve nacional … Com essas ações, em 11 dias eles fizeram o que não fizeram em 11 anos. 11 dias de colapso parcial, temporário e precário, mas real, da normalidade capitalista, especialmente dentro dos próprios protestos: colapso do trabalho assalariado e movimento de mercadorias (por uma razão que foi a greve), de propriedade privada e dinheiro, substituindo-os por solidariedade e gratuidade (nos centros de coleta e refeições comunitárias); ao qual era acompanhado o tempo todo pela discussão e tomada de decisões coletivas nas assembleias, e pela corajosa autodefesa das barricadas contra a repressão brutal dos cães de guarda uniformizados dos ricos e poderosos. (…)
Os mortos e feridos em combate pelo terrorismo de Estado também não são pouca coisa. Eles não foram ‘mortes acidentais’, foram crimes de Estado. Nem perdão nem esquecimento! Por esse motivo, negá-los ou torná-los menos é uma falta de respeito e até uma demonstração de cinismo em relação a eles, seus entes queridos e seus colegas. Uma atitude péssima e censurável, não apenas de alguns direitistas, mas também de alguns esquerdistas locais. Pelo contrário, o mínimo que deve ser feito nesses momentos de ‘pós-guerra’ das classes (porque o que aconteceu aqui foi uma guerra de classes que ainda não terminou) é: mostrar solidariedade aos camaradas detidos e às famílias dos camaradas caídos; denunciar ativamente e se opor ao terrorismo assassino do Estado/governo, que atualmente está realizando uma repressão seletiva como vingança contra membros de organizações sociais que participaram da greve, motivo pelo qual é nosso dever cuidar de nós mesmos; estar alerta e evitar novas medidas de composição e austeridade ‘direcionadas’ (novo decreto executivo); estar atento também ao início das privatizações para se opor a elas e às mobilizações anunciadas para o final deste mês contra as reformas trabalhistas de flexibilização/precarização ainda em vigor; e manter a mobilização e organização social que ocorreram espontaneamente para ‘acumulá-la’, radicalizá-la e generalizá-la a médio e longo prazo, com uma perspectiva autônoma e revolucionária. Nesse sentido, isso está apenas começando. A luta continua. Até o fim. Porque não se trata de sobreviver menos mal, mas de viver de verdade. E não se trata de mudar o mestre, mas de deixar de tê-lo.
(…) da resistência e dignidade que somente a luta concede, dizemos: pelos nossos mortos e nossas vidas, nem um minuto de silêncio, uma vida de combate! A solidariedade é a nossa melhor arma e os fará tremer de novo!”.
Um mês após a greve nacional …
Este é um resumo das Notas críticas sobre a situação atual no Equador, um mês após a Greve Nacional, de ambos os lados da luta de classes, assinada pelos “Un@s proletari@s cabread@s de la región ecuatoriana por la revolución comunista anárquica mundial” [Alguns/Algumas proletários/proletárias irritados/irritadas da região equatoriana pela revolução comunista anárquica mundial] (Quito, 8 de novembro de 2019) [4]. Do lado do governo ou do Estado Burguês:
Está a repressão seletiva, jurídica e policial e da mídia, contra líderes indígenas, sindicatos e estudantes, incluindo membros de brigadas médicas que participaram da greve, como vingança e “punição exemplar”. Também se fala em “19 grupos violentos” e “células anarquistas” (inexistentes), que eles estão rastreando e vão erradicar, dizem eles.
Economicamente falando, as reformas trabalhistas foram ratificadas: cortes ou demissões de pessoal; redução de salários, de férias e de aposentadorias; modificação da semana de 40 horas; contratos flexíveis, etc. E o orçamento do estado para a Universidade pública será reduzido. O governo acaba de propor uma “lei de crescimento econômico” que consiste principalmente na eliminação de impostos e tarifas para beneficiar direta e exclusivamente a burguesia importadora, exportadora, agroindustrial e de construção. Tentando compensar isso, eliminando e reduzindo outros impostos menores sobre certos insumos.
O processo de privatização de empresas públicas continua avançando silenciosamente e a mídia oficial (uma das quais, Teleamazonas, pertence a um dos maiores bancos do país, o Banco Pichincha) continua desinformando e mentindo todos os dias.
Do lado dos movimentos sociais ou do proletariado em luta:
Se está lutando pelos 1.192 detidos (incluindo menores), pelos 1.340 feridos e pelos 11 mortos na Greve.
Resta criticar o movimento indígena e o movimento sindical que oscilam entre o diálogo com o governo e o anúncio de novas medidas ou mobilizações. A crítica radical é que não se trata de mudar o modelo econômico (e muito menos por meios eleitorais, como certamente acontecerá em 2021), mas de mudar o sistema social na sua totalidade e na sua raiz, porque o problema subjacente não é o “neoliberalismo” ou o FMI, mas o capitalismo.
Existem diferenças, tensões, conflitos e transbordamentos entre bases e líderes, no CONAIE e em outras organizações, antes, durante e depois da Greve. Este não é um fato menor. Ao contrário. O transbordamento da liderança pelas bases é fundamental para a radicalização da luta social.
Existem novas organizações e processos, como assembleias de bases auto-convocadas em Quito (por exemplo, a Assembleia Anticapitalista de Quito da qual atualmente participamos), Cuenca, Loja, Cotopaxi, Chimborazo, que por sua vez propõem formar, fortalecer e articular as assembleias territoriais em todos os lugares (bairros populares, universidades públicas, comunidades indígenas, locais de trabalho, etc.).
Como conclusão: a Greve terminou, mas a luta social continua e deve continuar até as últimas consequências. A chave para isso é agitar e fortalecer a auto-organização, mobilização e radicalização das bases proletárias da cidade e do campo, as bases indígenas e mestiças, fora e contra as instituições estatais, sindicatos, partidos, representações, negociações e eleições. Dizer que a luta continua e deve continuar até as últimas consequências significa que a luta é para tomar e mudar tudo, pela revolução social total e internacional e não pelas reformas nacionalistas estatistas, populistas e “pluri”.
Falando mais especificamente, isso se aplica a todas as lutas atuais e futuras por demandas específicas de vários setores explorados, porque estas não se imploram aos ricos e poderosos que nos matam de fome, depressão e tiros, mas são arrancadas de suas mãos, tornam-se generalizadas, se unem e radicalizam-se até se tornarem uma revolução social.
Enquanto explorados e oprimidos deste país, não nos jogamos nas ruas ou arriscamos nossas peles na greve nacional e depois nos contentamos com as mesmas migalhas de sempre. Estamos fartos de todo esse sistema de merda que sofremos diariamente. Nós não somos ninguém e queremos tudo. Estamos voltando à vida e não negociaremos com o sangue de nossos mortos. A luta continua e deve continuar até as últimas consequências, isto é, até que a revolução social seja realizada e não uma reforma econômica e política.
Notas:
[1] – O Equador parou de produzir 63.250 barris de petróleo por dia devido à ocupação dos poços. Pelo menos três campos de petróleo suspenderam suas operações quando várias instalações foram ocupadas por “pessoas fora da operação”, conforme divulgado na segunda-feira, 7 de setembro, pelo Ministério da Energia.
[2] – Especificamente, a Junta Nacional Militar de Salvação Cívica era composta por Lucio Gutiérrez (que em breve seria substituído por Mendoza), líder de um grupo de oficiais do exército, Antonio Vargas, presidente da CONAIE, e Carlos Solórzano Constatini, ex-presidente da Suprema Corte da Justiça.
[3] – Veja os artigos Los mapuche no son chilenos ni argentinos, nosotros tampoco y ¿Pueblos originarios? em La Oveja Negra, nº 50 e 21, respectivamente.
[4] – Para ler este panfleto completo e os anteriores da revolta em Quito, visite: http://proletariosrevolucionarios.blogspot.com/.
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CONVENÇÃO CONSTITUINTE OU ASSEMBLÉIAS TERRITORIAIS AUTÔNOMAS?
I
A rebelião do 18/10 foi espontânea, popular, massiva e anárquica. A “válvula de descompressão” que se tenta instalar desde cima é hierárquica, elitista, institucional e “democrática”.
De fato, parece que esta insurreição a nível nacional quase não tem precedentes históricos. Talvez duas explosões com as quais notoriamente tem mais em comum seriam as de abril de 1957 em Valparaíso, Concepción e Santiago, e o movimento das ocupações em junho/maio de 1968 na França.
No primeiro movimento, o proletariado dessas três cidades se levantou espontaneamente com uma leve discrepância temporal (30 de março em Valparaíso, 1 de abril em Concepción e 2 de abril em Santiago) por causa do aumento de preços do transporte, desencadeando uma insurreição intensa e breve que, para ser derrotada, obrigou a retirada da polícia das ruas e colocar o Exército. Dezenas de mortos, e o Governo recuou o aumento [1].
No segundo, a forte repressão ao movimento estudantil gerou uma greve geral espontânea, boicotada pelos partidos burgueses (sobretudo pelo Partido “Comunista” Francês) e seus sindicatos. Após um mês de uma verdadeira explosão popular de criatividade e combates na rua com a polícia, o movimento começa a decair quando se reorganiza o partido da ordem incluindo manifestações massivas pela paz social, e finalmente chegando a acordos de reformas econômicas entre os patrões, os sindicatos e o governo. Um ou dois mortos em todo o processo (as vidas valem menos quanto mais se adentra no Terceiro mundo), e o estouro de 68 adquire uma dimensão global (EUA., Córdoba, México, Japão, Tchecoslováquia e um grande etc.) [2].
Porém, nenhuma revolta é igual a outra - ainda que em todas elas se produza uma suspensão da temporalidade e da normalidade instalada pela ordem social - e a de 18/10 parece ter sido um acontecimento único. Embora o “estouro” fosse previsível há muito tempo (como afirmam agora vários generais depois da batalha), era impossível calcular quando e como iria se produzir, e menos ainda que há um mês e meio desta irrupção, este ataque horizontal e multiforme contra a normalidade capitalista, iríamos continuar nas ruas apesar de tudo.
De toda forma, se olharmos a outros processos atuais como os protestos em Hong Kong e na França, parece que nesta nova onda global de rebeliões contra o sistema de dominação as insurreições já não tem no horizonte uma “conquista do poder” (tal como se entendia desde a visão das revoluções burguesas: através da captura do poder estatal), senão que são verdadeiras “insurreições permanentes”, que ao mesmo tempo que desafiam o poder, tratam de constituir uma comunidade humana que prefigura outras formas de vida.
II
O que é sim uma manobra previsível e quase “de regra” é a resposta orquestrada de cima. Depois de 3 semanas da “declaração de Guerra” feita pelo Presidente bilionário com as desastrosas consequências conhecidas por todos, pudemos ver reunida num Palácio toda a “classe política” - curioso conceito pois a rigor são todas expressões da política de uma só classe, a burguesa, apesar de que por vezes políticos profissionais tendem a constituir uma espécie de casta separada -, que se unificou bem rápido suportando uma forte pressão entre a rebelião popular por um lado e as exigências da Economia e da máfia estatal-militar do outro, para poder proclamar de madrugada a assinatura do “Acordo pela Paz e a Nova Constituição”. Todos juntos no esforço de relegitimar o Estado, o capitalismo, o “modelo chileno”, e sem pronunciar nenhuma palavra sobre o esclarecimento e castigo às práticas massivas e sistemáticas de violação de direitos humanos por parte de Carabineros, ao mando do infame Diretor-Geral Mario Rozas, e das quais são responsáveis também Piñera, Chadwick, Iturriaga e Espina. Obviamente, quando se está negociando com criminais de lesa humanidade lhes reconhece como interlocutores válidos e sua responsabilidade política e criminal permanece à sombra. Nisso o cacarejado Acordo mostra a marca própria da classe dominante chilena, tomando como modelo as negociações inter-burguesas dos finais da década de 80 que pavimentaram o caminho à “transição”.
III
Alguns analistas oficiais falam abertamente que o objetivo dos acordos negociados e anunciados em 15 de novembro é a “Pacificação” do conflito, ao qual julgam desde já como relativamente bem-sucedido. O Ministro Blumel aponta que a cada dia há menos manifestações e detidos. Porém, o proletariado juvenil não abandona a rua, aprendeu a lutar massivamente contra os capangas do GOPE/FFEE (o “Comando da Selva” na cidade) [NT: Grupo de Operaciones Policiales Especiales e Prefectura de Fuerzas Especiales, respectivamente], atacou e derrubou os piores símbolos monumentais da dominação dentro do território reconquistado todos os dias “pela horda” e, além de adrenalina e espírito de luta, tem clara consciência de que o que se alcançou foi graças à ação direta das massas, não a negociações, acordos, votos nem urnas.
O jornal “El Mercurio”, de 21 de novembro, também avalia um sucesso relativo no trabalho de contenção política “constitucional” como efeito de dito acordo e opina que as discrepâncias observadas “aparecem em geral canalizadas no âmbito da política e dentro de uma estrutura institucional”. Porém, reclama amargamente da “normalização” da violência: “Diariamente se conhecem novos saques a locais comerciais e até a centros médicos. Manifestações de estudantes seguem alterando o funcionamento do metrô, e até ontem haviam sido detectadas novas evasões massivas. Em resumo, perigosamente, começam a suceder-se as agressões em massa à funcionários policiais”.
O órgão de direcionamento da política burguesa que é o jornal “El Mercurio” conclui chamando a atenção para os “legitimadores” da violência popular. E já se estão vendo tentativas de conduzir ações por parte do Ministério do Interior pela Lei de Segurança do Estado contra quem fez agitação a favor da derrubada do governo.
IV
Poderá a farsa “constituinte” que se anuncia, que tanto entusiasmo causa a todos os fetichistas jurídicos e sociais-democratas de bom coração, conter e processar as energias da rebelião popular? Poderão domar a acracia para convertê-la em democracia?
Acreditamos que não será tão fácil, porém dependerá de como nos organizemos a partir de agora, desde o contrapoder gerado espontaneamente nas ruas, e os objetivos que nos estabelecemos como classe/espécie, de fora e contra todas as parcelas de “poder separado”.
De qualquer modo, o que temos claro é que as assembleias territoriais são órgãos criados pelas comunidades em luta a partir de 18 de outubro. Nosso lugar é ali, onde teremos que por um lado discutir abertamente com aqueles que abraçam mais ou menos conscientemente posições institucionalistas e sociais-democratas, que se expressam até agora em um sentimento majoritário a favor de um “processo constituinte”.
Porém, não se trata somente disso: o maior potencial das assembleias territoriais, na medida em que mantenham sua autonomia, atuando por fora e contra o Estado, tem a ver com questões e tarefas de ordem prática (autodefesa, alimentação, comunicações, cuidado de crianças e adultos mais velhos) que têm de ser levadas aos seus limites para poder elaborar, a partir delas, os objetivos comunizadores.
As assembleias são o espaço a partir do qual podem surgir novas formas de relação social, que superem e mandem à lixeira da história as relações sociais capitalistas. Faz-se necessário coordená-las todas.
V
Uma prova evidente disso é que a classe dominante aposta em abater a tensão com medidas policiais e “constituintes”, porém permanece claramente obscuro tudo com relação à “agenda social” com a qual se prometia resolver as graves injustiças e abusos contra os quais as pessoas se rebelaram em massa há um mês.
Contudo, está claro para alguns analistas oficiais que a reinstalação da Paz Social depende de ambas as agendas: “No horizonte imediato aparecem dois desafios. O mais urgente é a capacidade da classe política de poder construir um acordo entorno das pensões, do salário mínimo e do endividamento, para citar algumas das demandas mais sentidas pelos manifestantes. Se não houver resposta rápida para isso, o movimento pode se reativar. O outro desafio é como garantir a mais ampla participação com respeito ao plebiscito”.
VI
“Espontaneidade” não é o contrário de organização consciente. Segundo Marx, “o partido proletário nasce espontaneamente do terreno histórico da sociedade moderna”. Obviamente que esse partido histórico nada tem a ver com o Partido-instituição que a social-democracia tradicional e então a radicalizada ou leninista legaram à história, em uma concepção que chegou a ser dominante, na qual se contrapõe “espontaneidade” e “consciência”. O movimento proletário revolucionário é, de fato, “espontâneo”, porém não somente no sentido de que, quando se manifesta (Rússia 1917 ou Espanha 1936), é uma revolução sem chefes, que não espera ordens de cima, mas, além disso no sentido de que “esses movimentos do proletariado estão totalmente determinados pela situação que essa classe ocupa no conjunto das relações sociais fundamentais da sociedade moderna e por uma conjuntura particular que, durante um determinado período, lhe proporciona a oportunidade de intervir no cenário” [4].
A consciência não se opõe a esta espontaneidade - ao contrário do que acreditou Kautsky na II Internacional e seu discípulo Lenin na III Internacional, com a tese de que é necessário introduzir ao proletariado uma “consciência externa” -, senão que “o proletariado adquire, porque a necessita, a consciência de si mesmo, ou seja, a representação clara de sua situação, de suas relações com as outras classes e de seu papel” e “por sua situação nas relações de produção capitalistas, a classe trabalhadora é a única classe que porta, enquanto classe, a consciência socialista” [5].
A rebelião chilena foi iniciada pelo proletariado juvenil, porém, ao acender o pavio e se estender imediatamente a todo o país, foi assumida pelo conjunto do povo. Onde ainda não conseguiu se expressar de maneira forte é nos centros produtivos, nos lugares de trabalho, salvo algumas exceções, com movimentos e iniciativas “corporativas”, em geral controladas pelos sindicatos. Não é preciso ser “obreirista” para se dar conta de que isso tem sido uma limitação vital do movimento até agora.
O que está claro é que em um mês de luta o nível de consciência aumentou notavelmente, como sempre se disse que tende a acontecer nestes processos, e da crítica ao modelo - o chamado “neoliberalismo” - se passa à crítica do sistema (capitalista), ao seu modo de vida e às nocividades sistemáticas que este gera.
De fato, o que floresce nas ruas desde 18 de outubro não é nada menos que a vida, em suas diversas expressões. Não somente não é acidental que não existam “chefes”, senão que é de profunda importância que o maior ícone do movimento é um animal não-humano: o lendário cachorro que por anos sempre nos acompanhou nas ruas e que é conhecido como o “Negro Matapacos”.
A revolução social dá uma possibilidade à humanidade para reconciliar-se consigo mesma, com os outros animais e com a natureza.
VII
Com um mês do início da rebelião, algumas coisas estão ficando claras. Se pôs à mostra o caráter terrorista do Estado, e se demonstrou que o único poder de nossa classe está nas ruas, através de protestos massivos e uma “primeira linha” de centenas de jovens que colocam o peito frente à repressão e que aprenderam a se defender e atacar individual e coletivamente, garantindo assim que milhares possam seguir na rua apesar das brutais investidas da polícia.
O que está em falta é uma maior presença de propaganda e reivindicações dirigidas a exigir a liberdade da grande quantidade de companheires que foram trancafiades nas cadeias através de prisões preventivas e que sofreram uma crueldade evidente por parte da Acusação e dos Tribunais.
É necessário exigir de imediato sua liberação incondicional sem importar o tipo de delito do qual foram acusados. E como contrapartida, sem cair em concessão de nenhuma confiança ao Estado, devemos exigir esclarecimento e castigo por todas as violações de direitos humanos cometidas por militares e policiais, e, com base em seu caráter generalizado e sistemático, subir a exigência de responsabilidade aos níveis mais altos do governo e do Estado.
VIII
Muitos e muitas companheires anticapitalistas (porém não necessariamente antiautoritáries) veem com bons olhos o espaço “constituinte”. Apontam, por exemplo, que “embora a Assembleia não será o que colocará um fim ao modo de produção capitalista no Chile, é a instância em que, por um lado, se for alcançada a reversão do acordo firmado pelo partido da ordem, abrirá o caminho para pôr fim ao período político e iniciar um novo com a classe trabalhadora como protagonista avançando muito mais rápido do que o fez nas últimas décadas; e, por outro, poderia permitir conquistar e consagrar uma série de demandas que nasceram nos últimos anos de mobilizações sociais. Essas conquistas devem materializar-se, já que dessa maneira se prova que a luta da frutos, que somente com organização se avança”.
Não concordamos: ficou explícito mais uma vez que o caminho para pôr fim à dominação capitalista/estatal/patriarcal não é a integração das reivindicações populares na esfera política especializada, senão que a ação direta das massas nas ruas e praças do país. Por que teria de se ir “provar” isso através da aprovação de leis e constituições que são precisamente a linguagem do Estado que estamos tentando suprimir e destituir? E se a ideia é “integrar a classe trabalhadora” (entendida no sentido mais obreirista e tradicional), por que é o espaço “constituinte” e não a luta frontal e direta o que poderia convocá-los?
Nós não nos separaremos das assembleias territoriais pelo fato de que nelas se expressa a demanda de Assembleia Constituinte. Porém, estamos certos de que esse não é nosso terreno.
O que faremos será propor nesses espaços a abolição da ordem social existente através de demandas destituintes, começando pela exigência de dissolução dos Carabineros do Chile e em especial de seu “Comando Selva” (GOPE e FFEE), abolição do SENAME [NT: detenção de menores], liberdade a todos e todas preses da revolta, etc.
A partir disso, nosso programa de abolições (do Estado, do dinheiro, da polícia) começará a expressar-se com toda claridade e coerência.
Notas:
[1] Sobre o 2 de abril de 1957 existe um livro muito bem documentado do historiador Pedro Milos na LOM [NT: editora chilena], e uma breve reportagem em Comunismo Difuso Nº 2-3.
[2] Sobre o 68 na França, ver o livro Situacionistas y enragés en el movimiento de las ocupaciones, de René Viénet, disponível online no Archivo Situacionista Hispano. Sobre o novo cenário global aberto esse ano, ver ‘El Comienzo de una época’ em Internacional Situacionista Nº 12, setembro de 1969.
[3] Sobre os dois desvios clássicos e simétricos da concepção social-democrata da transição ao socialismo, gestionismo e o politicismo, ver o livro La contrarrevolución rusa y el desarrollo del capitalismo, do Grupo Comunista Internacionalista, em especial ‘El politicismo contra la revolución’ (p.27). Ali se afirma que: “Para os politicistas, a economia é realmente um assunto separado e por isso, apesar de serem tão ‘revolucionários’ na política, não somente são muito reformistas (contrarrevolucionários) no socioeconômico (nenhum ataque ao capital, senão a busca de sua centralização jurídico-estatal), senão que terminam sem exceção fazendo entrar pela janela o que diziam expulsar pela porta: o gestionismo”.
[4] Denis Authier, prefácio a Leon Trotsky (2002) Informe de la delegación siberiana. Trotsky contra Lenin. Madrid: Ediciones Espartaco Internacional. P.13.
[5] Ibid., p.14.
***
NOTAS SOBRE A REVOLUÇÃO QUE COMEÇA
1.
A luta de classes, isto é, a manifestação de interesses antagônicos
dentro da sociedade, nunca deixa de existir nem de perfurar as bases
desse sistema de morte, não importa o quanto tentem enterrá-la ou
escondê-la os ideólogos de todos os tipos ou as castas governantes do
dia. Uma imensidão de conflitos, que opõem os interesses vitais da
humanidade explorada ao da classe capitalista, surge constante e
espontaneamente por todos os lados. No entanto, há períodos em que estes
estouram com inusitada intensidade, deixando-se perceber seu autêntico
conteúdo de classe, após anos em que este último parecia ter-se diluído
em dezenas de categorias e identidades sociologescas e parciais.
2.
Por espontaneidade não entendemos que o movimento que nega o
Estado/Capital surja do nada, nem que careça de consciência ou de uma
organização determinada, senão que, ao contrário, se levanta do seio da
sociedade atual, sem necessidade, apesar de e contra os pretendidos
líderes, chefes ou partidos políticos que, assim como pregaram e pregam
diversas seitas sociais-democratas, lhe injetariam “de fora” a
consciência “socialista” para “conduzi-lo” a um horizonte
ideologicamente fixo.
3. No Chile, esta proliferação de
conflitos sociais, embora durante certos períodos incrementasse
notoriamente sua frequência e força, não se encaixava em um movimento
com características insurrecionais. Explosões começadas por protestos
estudantis (2001, 2005-6, 2011) foram as experiências mais parecidas com
o que vimos no último 18 de outubro. Jornadas extensas e massivas de
protestos, que incluíam a paralisação de atividades e tomada de locais
educativos (universidades e escolas secundárias, principalmente),
conseguiam gerar simpatia e solidariedade no resto da classe, porém sem
transcender os limites setoriais nem superar os canais burocráticos
(principalmente a CONFECH no contexto estudantil [NT: Confederación de
Estudiantes de Chile, a maior organização estudantil do Chile] e a CUT
no terreno sindical tradicional). Ainda assim, é o proletariado
adolescente e juvenil – fundamentalmente os e as estudantes
secundaristas – quem se mostra menos fácil de domesticar, transcendendo
além disso seus próprios limites enquanto “juventude”, como parcela
artificialmente separada da classe.
4. Precisamente em
2019, começando com a rejeição pontual de estratégias legais que
endureciam a repressão a este setor do proletariado, tanto pela lei Aula
Segura como pela proposta de verificação de identidade de menores de
idade por parte da polícia, foi crescendo em intensidade a combatividade
estudantil, o que levou a enfrentamentos diários no meio do ano com a
repressão policial no Instituto Nacional, no próprio centro da cidade,
deixando vários registros de brutalidade policial e sua correspondente
resposta juvenil. A luta, longe de enfraquecer-se, começou a
estender-se, contagiou de raiva e decisão toda uma classe que muitos
julgavam morta ou definitivamente derrotada.
5. O
proletariado, fortemente animado, além disso, pelo movimento
desenvolvido no Equador algumas semanas antes contra uma série de
medidas governamentais que encareciam a vida em geral, explora aquele
histórico na sexta-feira 18, após uma semana de evasões massivas no
metrô começadas por parte de estudantes secundaristas.
6.
A bola de neve não se deteve e se transformou, com uma velocidade
surpreendente, em uma gigantesca avalanche. No dia seguinte, todas as
cidades do país veem suas ruas encherem-se de manifestantes furiosos,
que solidarizam com seus irmãos da capital, porém, ao mesmo tempo,
demonstram que a alta da passagem foi somente a faísca que acendeu este
impressionante incêndio. “Não são 30 pesos, são 30 anos”, “O Chile
despertou!”, “Até que valha a pena viver!”, são alguns dos lemas mais
práticos que se agitam nas jornadas de revolta, mostrando a rejeição
geral a toda miséria que produz o Capital.
“Então,
sim, em 18 de outubro foi o proletariado que removeu a espessa fumaça
da sociedade capitalista. Longe do discurso de uma suposta
transversalidade que nos uniria como ‘chilenos’, ‘cidadãos’, ou supostas
‘minorias’ unidas precisamente em função de sua fragmentação, o
movimento gerado a partir da explosão expressa um conteúdo claramente
proletário e de rechaço explícito ao Capital”.
7.
É uma revolta proletária? Para muitos e muitas, falar de “proletariado”
pode soar estranho ou doutrinal. E não são poucas as razões para se
considerar assim: lamentavelmente, quem costumava e costuma (cada vez
menos, de qualquer maneira) utilizar essas palavras em sua linguagem
política são as seitas derivadas da social-democracia, ou suas variantes
equivalentes no anarquismo oficial, que reduzem a teoria revolucionária
e seus conceitos a esquemas rígidos, dogmáticos e inúteis. Porém, não
se trata de dar definições impecáveis aqui, mas de compreender os
elementos
básicos e essenciais que nos permitem explicar nosso momento histórico.
Compõe o proletariado a imensa massa humana que deve vender seu esforço
físico e mental à classe capitalista, de maneira a obter em troca o
mínimo que lhe permita reproduzir-se como mão de obra e estimular o
consumo de mercadorias. Somos a classe social que faz funcionar as
engrenagens produtivas da economia capitalista, porém que não possui nem
controla os meios de produção. Contudo, ao mesmo tempo, o proletariado
só existe quando toma consciência de sua condição e luta por sua
liberação, isso é, sua autoabolição, através do ataque às relações
sociais e às instituições que o mantém dominado e a afirmação de seus
interesses verdadeiramente humanos, não definidas nem mediadas pelas
necessidades mercantis.
8.
Então, sim, em 18 de outubro foi o proletariado que removeu a espessa
fumaça da sociedade capitalista. Longe do discurso de uma suposta
transversalidade que nos uniria como “chilenos”, “cidadãos” ou supostas
“minorias” unidas precisamente em função de sua fragmentação, o
movimento gerado a partir do estouro expressa um conteúdo claramente
proletário e de rejeição explícita ao Capital. Afirmar isso, por outro
lado, não tem nada a ver com promover uma leitura esquemática e
reducionista do conflito. Há relações sociais de dominação que geram e
organizam outras formas de exploração e o enfrentamento radical e
integral contra o Capital requer um ataque simultâneo e efetivo a todas
elas, pois é essa rede que sustenta a miséria atual. É impossível
dissociar o Estado do Capital e das relações patriarcais que permitem a
subsistência desta sociedade baseada na exploração.
9.
Em poucas semanas, este movimento explosivo de rejeição generalizada tem
mudado e amadurecido. De uma raiva inicial, lucidamente dirigida contra
a infraestrutura estatal e capitalista, incluindo pilhagens de centros
comerciais, como as grandes cadeias de farmácias, supermercados, lojas
de varejo e instituições estatais profundamente desprezadas, como o
Compin (encarregado de pagar as licenças médicas), várias
municipalidades, praças de pedágio, monumentos e estátuas que prestam
homenagem a heróis da burguesia e da pilhagem colonial, etc., passou-se
rapidamente à formação de organismos autônomos nos territórios, as
Asambleas Territoriales [Assembleias Territoriais], que coordenavam
diversos aspectos da luta social nesse nível, experiências que continuam
se expandindo, coordenando-se e se fortalecendo. Além disso, as formas
dos protestos de rua também vão desenvolvendo-se para poder fazer frente
a uma polícia cada vez mais enlouquecida, destacando a organização das
equipes de primeiros socorros, que prestam uma ajuda vital no próprio
cerne dos enfrentamentos com a repressão. No mesmo contexto da revolta,
surgem também experiências de lutas mais específicas que se veem
notoriamente potenciadas, como a denúncia do saque das águas perpetrado
por diversos tipos de indústrias, ou o boicote massivo ao processo de
rendição da Prueba de Selección Universitaria que, depois de anos sendo
alvo das críticas realizadas principalmente pelo movimento estudantil
secundário, por fim em 2020 recebe seu golpe de graça, mas não sem antes
essa ação receber a infame condenação de todo o Partido da Ordem, de
direita a esquerda.
10.
Contudo, existe uma série de obstáculos e limites contra os quais se
choca nosso movimento, e que precisamente se relacionam com a falta de
claridade de seu conteúdo de classe e da forma em que esse se expressa.
11. O
discurso nacionalista, a necessária rejeição à política que se
confunde, as vezes, com o desprezo à teoria revolucionária e à nossa
história de combates como classe e, sobretudo, a falta de crítica à
democracia, que leva muitos a celebrarem o plebiscito de 26 de abril,
firmado pelo Partido da Ordem para colocar panos frios no movimento,
constituem flancos que acabarão enfraquecendo-nos e nos derrotando se
não os enfrentarmos explícita e concretamente.
12. Esse
enfraquecimento e derrota passa precisamente pela separação dos setores
que ainda creem nestas vias estatais e democráticas do resto do
movimento que se negará a deixar as ruas. O Estado não exercerá um
massacre de maiores proporções até que o movimento se encontre
efetivamente fragmentado pela defesa das “conquistas” administrativas
dos primeiros e a necessidade de manter a revolta dos segundos; quando o
próprio “desenvolvimento econômico do país” que o Partido da Ordem
apoia é posto em questão.
13. Em 18 de outubro se infligiu
um ferimento sobre a normalidade capitalista de tal maneira que
dificilmente essa poderá cicatrizar-se completamente. De uma imponente
revolta inicial, passamos hoje por um momento que parece irreversível,
com a ordem social profundamente perturbada, que entrevê o advento de um
real processo revolucionário. Porém, não nos enganaremos, a crise e
derrota do Capital corresponderá sempre no final das contas à luta de
nós mesmos pela nossa emancipação total e definitiva de nossa condição
de explorades.
14. Portanto, depende de nós, como classe
explorada, como classe proletária, ir além das perspectivas sombrias
estabelecidas pela sociedade capitalista e construir uma comunidade
humana solidária e livre de toda exploração.
A partir do estouro da revolta que sacudiu esse território em 18 de outubro do ano passado, e que continua remexendo-o esporadicamente até o dia de hoje, tornou-se inegável que o que desatou a paralisação de grande parte da infraestrutura da normalidade capitalista foi o uso de uma violência massiva e inusitada; violência que nossa classe utilizou em seu conjunto. Contudo, embora tenha sido nossa classe que inundou as ruas, enfrentou a polícia e derrotou os mecanismos que permitiam o funcionamento ininterrupto de nossa servidão cotidiana, é inquestionável o papel-chave que teve o proletariado juvenil, tanto no desenvolvimento da revolta como no prelúdio desta.
A ideologia dominante nos diz que a rebeldia é uma reação própria da juventude contra a ordem des adultes, etapa que seria seguida pela passividade e resignação da suposta maturidade própria da idade adulta, de tal maneira que é popularmente conhecida a suposta relação entre juventude e rebeldia. No entanto, a verdade é que, de um modo que escapa à compreensão burguesa do mundo e da sociedade, esta velha premissa é particularmente certa para a juventude de nossa época.
É que, para dinamizar sua existência através do tempo e perpetuar sua reprodução, o Capital acabou com várias das antigas condições materiais que possibilitavam aos explorados de 15 ou 30 anos atrás formarem-se como força de trabalho e integrarem-se com certa eficácia no mercado de trabalho e, com base nisso, solucionar materialmente sua existência. Em outras palavras, hoje o Capital é incapaz de prover à sua força de trabalho mais jovem as mesmas condições que asseguraram às gerações anteriores um mínimo de estabilidade na qual apoiar-se. Isso se traduz em trabalhos cada vez mais precários e instáveis para o proletariado em geral, porém especialmente para jovens; existem milhões de jovens profissionais incapazes de vender sua força de trabalho especializada e obrigades a trabalhar em qualquer coisa; situação na qual a única maneira que os e as jovens podem garantir-se um teto é coabitando com outres em condições similares às suas, pois nem sua renda nem o custo da habitação lhes permitiria viver minimamente parecido com como o faziam seus pais em sua idade. Com diferentes nuances e particularidades, as condições que antes serviam de justificação para a existência da exploração capitalista, já que esta provia o conforto e o sustento para aqueles que se integravam nela, desaparecem em todo o globo. Junto com isso, a deterioração cada vez mais evidente e progressiva da biosfera – produto da mesma devastação capitalista – não poderia senão acrescentar entre os e as jovens a perspectiva de que não há um futuro possível para eles.
Essa precarização progressiva das condições de vida des proletáries mais jovens se mostra ainda mais brutal em países como Chile. Se somarmos a condição de precariedade que caracteriza as famílias proletárias das gerações anteriores nessa região com a precarização crescente com a qual são confrontados seus jovens, qualquer perspectiva de um futuro nessas mesmas condições torna-se fumaça. Assim, à farsa burguesa do futuro, sua ideologia do esforço e da recompensa ao sacrifício, que queria fazer da juventude o combustível com o qual seguir dinamizando a decadente máquina capitalista, a juventude proletária responde com uma rejeição saudável e intransigente.
Para nós, que colocamos atenção na dinâmica da reprodução capitalista e da luta de classes ligada a essa, essa rejeição em conjunto às condições existentes já se entrevia na multiplicidade de práticas difusas que a juventude dessa região vinha manifestando há vários anos. Porém, focando no tema que nos concerne aqui, foi nas escolas secundárias onde essa rejeição intransigente prefigurou, melhor que em outros lugares, a ruptura que se aproximava contra a normalidade e que varreria com a cotidianidade tal como a conhecíamos até então. Antes do estouro essa rejeição se manifestava há muito tempo na violência disruptiva e antipolicial na qual centenas de jovens se organizavam para sair às ruas, cortar o trânsito e enfrentar a polícia com demandas difusas ou, melhor, sem nenhuma demanda em particular além da própria subversão da ordem existente.
Mesmo que o discurso da burguesia apontasse que eles não eram afetados diretamente pela alta do transporte, foi a juventude dessas mesmas escolas secundárias quem começou a se organizar para adotar a única atitude lúcida frente ao aprofundamento da miséria e a precarização a qual o Capital local nos submete diariamente. Estes jovens, dotados da lucidez e coragem que já haviam adquirido lutando, fosse organizando-se para enfrentar a polícia ou na ação espontânea que se supõe para resistir todes juntes a entrada dos pacos e das pacas [NT: paco – polícia chilena] em suas escolas secundárias; reencontrados graças a essa luta com seu sentido comunitário e a constatação de sua própria potência, sentindo-se capazes de tudo, decidem organizar-se para fazer concreto aquilo que o sentido comum majoritário somente podia fazer na imaginação: a evasão massiva da cobrança da passagem do transporte público mais complexo e seguro de Santiago e que milhões de pessoas são obrigadas a pagar diariamente. Somente alguns dias depois, o reconhecimento daquela mesma potência e sentido comunitário se espalharia por toda a classe.
Aquela consciência que os acostumados às velhas tradições de esquerdas sentiam tanta falta, de repente se manifestou por todas as partes com uma irrupção violenta que trouxe de volta à cena quem nunca se foi verdadeiramente, pois sua existência perdurará enquanto existir a sociedade de classes, a classe herdeira da exploração de todas as épocas: o proletariado e sua juventude. E embora seja verdade que foi a iniciativa des secundaristas que incendiou o rastilho que somente alguns dias depois detonaria a normalidade capitalista, a juventude que tem protagonizado a revolta é imensamente mais ampla que os meros estudantes, secundaristas e universitáries incluídes. Pelo contrário, tem se tratado do amplo espectro de juventudes que mencionávamos no começo: todes aqueles mais jovens dentre o proletariado, para os quais não há futuro nem certezas sob essas condições de existência.
Esta consciência demonstrou estar mais presente que nunca no estouro da revolta; de repente, os atos da juventude pareciam evidenciar que esta havia entendido desde sempre que essa ordem de coisas não merece senão seu desprezo; que a polícia não existe para nos proteger, senão que nos protegemos entre todes quando atuamos contra essa; que o transporte público não existe para nos facilitar a vida, senão que faz parte da engrenagem que nos leva à inércia e a servidão; que não há nada de honrado em pagar pelas mercadorias que nos oferece o consumo permitido, senão que recuperamos parte do que nos roubam cotidianamente quando as saqueamos; que o progresso que nos falam não é para nós, senão que é o progresso do capital as nossas custas; que a solidariedade, que até pouco nos era desconhecida na prática, nos permite a apropriação coletiva de um mundo que nos era alheio e nos mostra agora que qualquer coisa é possível quando atuamos juntes.Assim, a megamáquina que nos foi apresentada desde sempre como a garantia de nossa sobrevivência e futuro, permanentemente recriada pelos anúncios da televisão e da internet, pareceu ser aos olhos de todes aquele esquema ao qual estávamos submetidos relutantemente e com o qual teríamos rompido muito antes se tão somente tivéssemos recebido o empurrão que necessitávamos.
A ação espontânea, por vezes tão desprezada, demonstrou que aquilo que, aparentemente, não compreendíamos conscientemente de forma completa esteve sempre ali, de maneira latente, como uma intuição, e que somente se necessitava das condições práticas que propicia uma revolta desse tamanho para trazê-los à tona. Pois aquela consciência não é meramente teórica, nem se insere de fora, senão que surge da própria prática da luta. Nenhum de nós teria previsto a magnitude dessa rejeição se não houvéssemos presenciado a massividade da luta na rua, dos saques, dos símbolos do poder vandalizados etc., nem teria constatado o potencial comunitário que vive em nós se não houvéssemos experimentado seu surgimento precisamente a partir destas ações, realizadas em sua maioria pela juventude proletária. O que veio depois, como a necessidade de organização, a propaganda, as assembleias territoriais etc., surgiu depois desta primeira constatação.
Estas conclusões não pretendem ser substitutas de nenhuma maneira ao que a juventude proletária pudesse dizer por si mesma sobre suas ações, uma vez que estas foram suficientemente eloquentes para tornar seu conteúdo explícito em seus atos. E isso porque as revoluções e revoltas sempre são uma clarificação em atos dos problemas e contradições previamente existentes das sociedades contra as quais se levantam. Com respeito às conclusões que o Capital e seus agentes tirarão disso, deixemos que os economistas chorem seus milhões perdidos, os urbanistas por suas paisagens inabitáveis destruídas, deixemos que os pensadores contratados busquem as razões aparentes do que lhes parece o absurdo da revolta, que os conservadores de todo tipo sofram por suas igrejas e templos que agora se iluminam; a burguesia e seus lacaios armados pouco a pouco estão compreendendo a principal razão que têm para nos temer: tomamos consciência de que somos a força que move essa sociedade e que, portanto, somos seu perigo mortal.
De nossa parte, acreditamos que o papel de uma publicação como essa não é somente dar razão aos rebeldes, senão também contribuir para esclarecer suas razões; elucidar teoricamente a verdade já contida em sua atividade prática. É em sua particularidade prática que a violência cobra sentido, seja defendendo uma manifestação ou evidenciando através de atos a rejeição à dominação social. E é dessa perspectiva, em sua dimensão prática, que a violência deve ser avaliada.
Não é preciso fazer apologia à violência para admitir que grande parte disso, que de repente parecia óbvio, foi graças as fagulhas da violência juvenil e proletária que pareceram iluminar aquilo que há muito tempo pareciamos sentir como parte do problema. Dessa forma, a resignação somente precisou de uma faísca para transformar esse desprezo passivo em uma ofensiva aberta contra a violência que nos é imposta e que, de agora em diante, nós revidamos.
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