Apresentação
Atolados pela rotina capitalista, poucas são as coisas que nos fazem contemplar um horizonte além do imediato e refletir sobre a situação que nos encontramos. Já gastamos tanto tempo no trabalho, no caminho pro trabalho, na recuperação pro trabalho, tudo envolta do trabalho, que quando pensamos em alguma mudança queremos que seja agora ou preferimos que nada mude porque só enxergamos esse presente eterno e nessa miopia cotidiana nossa memória não perdura por muito tempo.
Todo ano, no verão, temos as mesmas notícias, as mesmas localidades que foram acometidas por enchentes, a mesma gente como a gente que vai ser deslocada, que morre, que perdeu tudo que tinha, mas que não era muito. Todo ano ficamos com aquele pesar. Mas parece já ter se tornado um ritual e essas mortes banalizadas, tal qual aconteceu durante a pandemia do coronavírus.
Porém, é preciso que espiemos além do imediato. Desastres naturais? O que tem de natural aquilo que podia ser evitado ou mitigado? Como tratamos como natural nossa própria miséria, própria exploração, nossas mortes por uma máquina de moer ossos humanos que apenas alimenta essa própria máquina num ciclo sem fim?
Precisamos dizer basta! Não são coisas naturais! As vítimas de enchentes não são vítimas de um acontecimento fatídico. São vítimas da miséria capitalista. Da mesma forma que as vítimas recentes do terremoto na Turquia e Síria, são vítimas de um sistema que nos força a recorrer aos meios mais insalubres e perigosos para viver e que esse mesmo sistema está pronto para oferecer em sua busca insaciável pelo lucro às custas de nossas vidas.
Esse texto é uma busca disso, feita há pouco mais de um século.
O Horror à Revolução¹
Não queremos lutas fratricidas, não queremos sangue, não queremos guerra, dizem os medrosos. E falam em seguida dos horrores da matança, o sangue correndo em abundância, a atmosfera carregada de fumos espessos, o ruído ensurdecedor das armas de fogo; sangue, agonia, morte, incêndio, que horror!
Que horror! Na verdade, companheiros, nada tem de agradável o espetáculo que oferece a guerra, mas a guerra é necessária. É necessária a guerra quando há algo que se opõe à conquista do bem-estar.
É horrível a guerra, custa muitas vidas, muitas lágrimas e muitas infelicidades; mas, o que dizer da paz? Que dizer, companheiros, da paz sob o presente sistema de exploração capitalista e de barbárie governamental? Garante esta paz ao menos a vida?
Por horrível que a guerra seja não ultrapassa em horror a paz. A paz tem as suas vítimas, a paz é sombria; não porque a paz, em si mesma, seja má, mas pelo conjunto de circunstâncias que a compõem na atualidade. Sem necessidade de haver guerra, há vítimas em tempo de paz e, segundo as estatísticas, as vítimas em tempo de paz são mais numerosas que as vítimas em tempo de guerra.
Basta ler todos os dias os jornais para verificar que é uma verdade o que eu digo. É uma mina que desaba e esmaga centenas ou milhares de trabalhadores; ou um comboio que descarrila e morrem os passageiros; ou um navio que se afunda e sepulta no fundo do mar muitas pessoas. A morte espia o ser humano em todos momentos da sua existência. O trabalhador cai dos andaimes e o seu corpo despedaça-se. Outro, manejando uma máquina, corta o seu braço, uma perna e fica mutilado ou morre. O número de pessoas que morrem anualmente em virtude de catástrofes mineiras, ferroviárias, marítimas ou de outra natureza é verdadeiramente alarmante. Os que morrem todos os anos em resultado de incêndios em teatros, hotéis e casas atingem um número impressionante.
Mas isto não é tudo. As condições de insalubridade em que se trabalha nas fábricas e oficinas, o cansaço do trabalho, o desconforto e a insalubridade das casas dos trabalhadores, forçados a viver em verdadeiras pocilgas, a sujidade dos bairros operários, a má alimentação do trabalhador, única que consegue com os salários miseráveis que ganha, a adulteração dos produtos alimentares, a inquietação em que vive o trabalhador que teme, de um momento para o outro, deixar de poder alimentar a família e o desgosto que provoca o fato de se encontrar sob a vigilância do polícia, sob a influência de leis bárbaras ditadas pelo estúpido egoísmo das classes abastadas, sob a influência de marionetes ignorantes que fazem de autoridade. Tudo isto, insalubridade, má alimentação, trabalho cansativo, inquietação pelo futuro, desgosto do presente, minam a saúde das classes pobres, provocam doenças terríveis como a tuberculose, o tifo e outras que dizimam os deserdados e cujos estragos alcançam todos, homens e mulheres, idosos e crianças, o que não ocorre com a guerra, na qual é raro o mau trato a anciões, mulheres e crianças, a não ser que se trate de um tirano terrível, como Porfirio Díaz, para quem não há nesta vida criatura a respeitar. O tigre ferra os dentes indistintamente nas carnes de um velho, de uma mulher ou de uma criança.
Todas estas calamidades, de que sofre a humanidade em tempos de paz, são resultado da impotência do governo e da lei para fazer a felicidade dos povos, pela simples razão de que tanto o governo como a lei não são outra coisa que guardiões do Capital, e o Capital é a nossa prisão. O Capital quer lucros e, portanto, não se preocupa com a vida humana. O dono de uma mina não se preocupa que o local de trabalho ofereça riscos para a vida dos operários; não faz as obras necessárias para que o trabalho na mina se efetue em condições de segurança que garantam a vida dos mineiros. Por isto, desabam as minas, ocorrem explosões, desprendem-se os elevadores e há tantos outros sinistros. O capitalista ganharia menos se protegesse a vida dos seus operários, mas prefere que estes morram numa catástrofe e que as viúvas e órfãos pereçam de fome, ou se prostituam para poder viver, a gastar algum dinheiro em prol dos que o enriquecem com o seu trabalho, dos que o fazem feliz com o seu sacrifício.
Igual coisa se pode dizer dos desastres ferroviários e marítimos. O mau material de que são construídos os barcos, as carruagens e as locomotivas, para produzir ao menor custo possível, e a deterioração que ocorre neles com o uso; o fato das companhias terem que usar tudo até à sua máxima duração para gastar menos, juntando-se a tudo isto o mau estado das vias que são reparadas o menos possível para obter maiores lucros, fazem com que a insegurança seja efetiva e as catástrofes iminentes.
O lucro que quer o Capital é também a causa do trabalho nas fábricas e oficinas se fazer em condições de manifesta insalubridade. O capitalista teria de gastar dinheiro para que as condições higiênicas dos locais de trabalho fossem boas, e é precisamente o que não quer. A saúde e a vida dos trabalhadores não entram nos cálculos dos capitalistas. Ganhar dinheiro, não importa como, é a premissa dos senhores burgueses.
A miséria, por si só, é mais horrível que a guerra e causa mais estragos que ela. O número de crianças que morrem todos os anos é enorme; como é igualmente enorme o número de tuberculosos que morrem todos os anos. Estes falecimentos devem-se à miséria, e a miséria é o produto do sistema capitalista.
Porque temer a guerra? Se se tem que morrer esmagado pela tirania capitalista e governamental em tempo de paz, porque não morrer melhor combatendo o que nos esmaga? É menos terrível que se derrame sangue para conquistar a liberdade e o bem-estar do que continua a derramá-lo sob um sistema político e social em proveito dos nossos exploradores e tiranos.
Para além disto, a guerra não produz tantas vítimas como a paz sob o atual sistema. O número de pessoas que morrem numa batalha ou num encontro é reduzidíssimo em comparação com o número de homens que combatem dos dois lados, e se fosse possível que toda uma nação estivesse em revolução, se o estado de guerra durasse um ano, no fim deste período se veria que, pelas dificuldades que tinha tido o capitalismo em explorar os trabalhadores por estarem a maior parte destes com armas na mão, o número de falecimentos teria diminuído ou, pelo menos, teria sido igual ao dos anos de paz. Isto pode-se comprovar em países que estiveram em revolução. Os trabalhadores suspendem-se por causa da guerra; os trabalhadores trocam a vida malsã da fábrica, da oficina ou da mina, pela vida sã ao ar livre, comendo carne em abundância, fazendo exercícios saudáveis e, sobretudo, reanimando o espírito com a esperança de mudar de condição, ou simplesmente satisfeitos por levantar a cabeça e sentirem-se livres à frente dos seus amos espantados.
É melhor morrer atravessado por uma bala, defendendo os seus direitos e o bem-estar dos seus irmãos, do que morrer esmagado como um verme sob os escombros da mina, ou triturado pela máquina, ou numa agonia penosa e lenta nalgum tugúrio isolado.
Gritemos com todas as nossas forças: Viva a Revolução! Morra a paz capitalista!
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Notas
1. "El Horror a la Revolución", in Regeneración, 4ª época, nº 16, 17 de Dezembro de 1910. Tradução retirada de Terra e Liberdade, Barricada de Livros, 2020. Grifos nossos.