sábado, 12 de fevereiro de 2022

Notas a respeito do 05 de Fevereiro

No dia 24 de janeiro, ocorreu o assassinato de Moïse Mugenyi Kabagambe, imigrante congolês, no Rio de Janeiro, seu corpo foi deixado no chão próximo ao quiosque por 3h enquanto os comércios ocorriam normalmente no local (algo que nos fez lembrar de outro caso: link). O caso veio tomar repercussão nacional na última semana e diversas cidades, contando com ao menos 13 capitais (link), tinham manifestações marcadas para o dia 5 de fevereiro. 

Apesar do descrédito da mídia burguesa, que prefere ressaltar a versão dos agressores de que Moïse era um bêbado, os mesmos agressores que pediram para testemunhas não olharem porque Moïse "era um assaltante" e que disseram não saber o que ocorreu quando a polícia chegou, a família do congolês repete que o assassinato ocorreu por uma dívida de salário do quiosque com o imigrante. 

Ainda no decorrer dessa última semana, rumo às manifestações de 5 de fevereiro, somos acometidos por mais uma crueldade da brutalidade capitalista (link): Durval Teófilo Filho é morto na porta de casa por um sargento da marinha, que diz o ter confundido com um bandido. É interessante ressaltar que o assassino foi inicialmente indiciado por homicídio culposo, quando não há intenção de matar. Há de se perguntar como alguém atira repetidas vezes, com dificuldade de visão e com a vítima já no chão, sem a intenção de matar, mas foi o que a justiça burguesa decretou inicialmente.

A seguir, pretendemos fazer um breve relato de nossa experiência na manifestação de 5 de fevereiro ocorrida na capital paulista. Buscaremos também fazer proposições a partir dessas mesmas experiências, dialogando com os acontecimentos do mesmo dia no Rio de Janeiro.


Relato da Manifestação de Justiça por Moïse do dia 5 de Fevereiro

A concentração estava marcada para ocorrer no Museu de Arte de São Paulo (MASP), às 10h. O MASP fica localizado na Avenida Paulista, ponto onde geralmente acontecem as manifestações mais volumosas em São Paulo, por conta da sua centralidade, do número de transeuntes diários e também do número de comércios e desigualdade descarada.

A concentração foi marcada por falas de imigrantes e pessoas negras e é necessário destacar a ênfase que as falas deram à situação precarizada que a parcela imigrante da classe sofre, com grande foco na urgência de se resolver essa situação. Houve inclusive menção à Revolta dos Malês, como ponto de referência.

Apesar desse caráter de urgência, muitas das falas recorriam à aprovação de leis, ao auxílio do Estado, preferindo justamente aguardar os trâmites burgueses, o que se cristalizou em uma das falas que, novamente, dizendo que com a eleição de Bolsonaro o "Brasil se declarou racista", coloca Bolsonaro como o centro de todos os males da sociedade brasileira. Pensamos que esse tipo de lógica serve apenas para limpar as mãos dos antigos governantes, para apoiar isso precisamos apenas mencionar o apoio dos governos petistas à implantação das UPPs e às missões de pacificação da ONU nas favelas do Haiti (que certamente renderam boas experiências para serem usadas nas favelas cariocas hoje).

Além desse caráter abertamente reformista, houve também aqueles que aparentam ter um discurso revolucionário, mas que de fundo apenas preservam a antiga cooptação do proletariado para lutar por uma fração burguesa contra a outra. Esse simulacro do discurso revolucionário se deu através de um panfleto sendo entregue apenas aos manifestantes negros, citando nomes como Marcus Garvey (ver mais no link) e apelando à defesa do "povo, tradição e religião negras". Aqui também, cabe apenas uma breve menção das filiações nazistas de Marcus Garvey em favor do separatismo (que nesse panfleto nojento é colocado junto com os Panteras Negras), além de seu amplo apoio a um "capitalismo negro". 

Panfleto recolhido no sábado (5) na Avenida Paulista. Juntando a figura de Marcus Garvey, que era abertamente anticomunista, com a dos Panteras Negras.

Pensamos que é extremamente elucidativo, aliás, como o conteúdo dessas páginas é aproximado com os discursos identitários que recorrentemente caem na defesa também de um capitalismo "mais humano e diversificado" e que foi utilizado pela prefeitura do Rio de Janeiro como maneira de acalmar a revolta (link) e de tentar ressignificar o local do assassinato. 

Porém, retomemos o nosso relato. Após as falas, por volta das 13h (necessário compreender que durante a maior parte desse período, das 10h até 13h, os manifestantes ficaram sob o Sol), a concentração começou a marchar na Avenida Paulista rumo à Consolação. Assim que chegamos na Praça do Ciclista, encontramos já a polícia em cordão pronta para nos impedir de avançar, aparentemente marchar na Consolação não estava acordado. 

Prontamente, o "bloco anarquista" (chamaremos assim aqui, devido sua composição anarquista ser majoritária) começou a entoar em voz alta, junto com enorme quantidade de imigrantes, cantos de enfrentamento. A polícia tentou fazer o bloco retroceder, mas a proposição de enfrentamento com a polícia encontrou amplo apoio entre os manifestantes, em especial os imigrantes, que mesmo com os chamados das lideranças para fazermos o caminho inverso (marchar para a outra ponta da paulista) não retrocederam. 

Confronto entre a polícia e manifestantes em frente a Praça do Ciclista. Fonte: Jornal Metamorfose.

Diante disso, a saída encontrada por ditas lideranças foi a negociação com a polícia. Foi pedida a calma entre os imigrantes e também do bloco anarquista, pois iriam negociar para a liberação da via. Com a continuação dos cantos por parte dos anarquistas, fomos advertidos de que "tudo bem vocês irem contra a polícia, mas pra eles é diferente, é mais perigoso" e o tom paternalista não poderia ser mais evidente. As próprias comunidades imigrantes se revoltavam, buscavam enfrentar a polícia, mas o discurso dos conciliadores é que "isso daria motivos para a polícia matar", como se ela precisasse dessas desculpas.

Após isso, continuamos tentando elevar a moral da frente da manifestação, apesar de nos acalmarmos pois disseram que "a polícia ia liberar uma via, bastava aguardar" enquanto nos perguntávamos "o que seria feito se a polícia dissesse não?" e já ansiávamos todos a ocupação da segunda via. Aguardamos por cerca de trinta minutos, debaixo de um sol escaldante, percebendo que a cada instante a força inicial de enfrentamento diminuía e nem sinal dos negociadores.

Com nossas forças diminuídas e a ameaça da polícia começar a marchar contra nós, agora com o auxílio do choque, que se posicionou mais estratégicamente com ajuda do tempo concedido pelos negociadores, a Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio decidiu que deveríamos marchar de volta pela paulista e de costas para a polícia. Não ficou claro, para nós, se a Rede pretendia algum tipo de ação nessa marcha de volta, mas foi o que certamente os anarquistas entenderam, junto com a parte mais combativa dos imigrantes: deveríamos tentar dar a volta na polícia, rumo à Consolação.


Quando viramos na primeira esquina, na rua Bela Cintra, o Choque nos esperava. Alguns não diminuíram o ânimo e estavam dispostos a enfrentar, mas a grande maioria não se sentia confiante (ainda mais com a diminuição do bloco como um todo, fruto das horas no sol e de nenhuma perspectiva do bloco ir para frente), portanto decidimos deixar para a próxima esquina (numa tentativa de talvez fazer a polícia/choque cansarem, devido aos equipamentos). Foi justamente com essa perspectiva de confronto mais acirrado que os partidos burgueses e movimentos sociais reformistas sumiram, diminuindo ainda mais o contingente da manifestação.

Na Rua Haddock Lobo não havia contingente policial esperando, portanto decidi descer, mas o movimentou não acompanhou e decidiu permanecer na Avenida Paulista de uma vez a partir daí. Quando subi novamente para a Paulista (depois de constatar que, realmente, não havia nenhum contingente policial ali nos esperando), percebi que da manifestação agora restavam apenas cerca de 200 manifestantes, se não menos. A polícia agora nos pressionava para continuarmos "na calçada" e inclusive faziam caretas e riam da nossa cara. Não pude deixar de pensar em como tudo isso provavelmente havia sido armado com os negociadores, numa estratégia de cansaço da força do movimento. O movimento terminou pouco após isso, sem nenhuma justiça para Moïse, para Durval e para as injustiças que muitos outros sofrem diariamente, vitória para o Estado, a polícia e os conciliadores que impediram a revolta proletária de passar. 


Conclusões

O que pensamos disso tudo? Em nossa percepção, essa manifestação teve uma adesão à combatividade muito maior, que rompeu as separações raciais dentro da classe em torno do interesse comum de buscar justiça por Moïse e demonstrar nossa raiva diante da brutalidade capitalista. Embora não tenha acontecido um efetivo combate com a polícia, a possibilidade estava ali e, de começo, foi aceita pela grande parte dos manifestantes que estavam na frente do movimento.

Porém, também notamos fraquezas recorrentes e uma dessas é justamente a unidade do Fora Bolsonaro. Embora seja necessário denunciar as manobras de Bolsonaro que favoreceram o agravamento da pandemia e sua políticas com relação ao agronegócio, também é necessário não aderir à narrativa que busca pintá-lo como o "mal encarnado", o que abriria portas para a absolvição dos outros partidos e políticos burgueses. Como o texto do blog Communismo Libertário (ver texto no link) salienta, é necessário enxergarmos os interesses por trás da gestão de Bolsonaro, sua continuidade com os outros governos e sua utilização pela socialdemocracia como meio de enquadrar a revolta nas ilusões do voto e submissão ao Estado. Isso também já foi argumentado por outros revolucionários:

O Bolsonarismo, seja com o pretexto de combatê-lo ou para melhor apoiá-lo, é um convite à submissão às instituições do sistema. Em ambos os lados está a defesa inquestionável da disciplina social capitalista, da sujeição em massa ao Estado todo-poderoso, seja para conjurar a “ameaça esquerdista” cujo perigo estaria no retorno do PT ao poder (segundo os bolsonaristas), ou para prevenir a “ameaça fascista” representada pelo demônio-chefe Bolsonaro. (Ver texto completo neste link)

Outra questão aqui, que dialoga com o ocorrido no Rio de Janeiro, é a cooptação disfarçada de "segurança dos oprimidos". Isso pôde ser evidenciado aqui com o discurso dos conciliadores e no Rio de Janeiro através do discurso de Bruno Cândido (ao lado) e seus companheiros, que tentam a todo custo vender a conciliação com a polícia e a defesa da propriedade privada como algo que seria benéfico aos negros oprimidos, hostilizando os manifestantes mais combativos como se quisessem "dar motivo pra polícia matar". Há de notar a semelhança com discursos de junho/julho desse mesmo ano, dos partidos que denunciavam os manifestantes aqui de São Paulo de "infiltrados", que queriam dar motivo para a polícia reprimir a manifestação, de que se fizéssemos isso "a esquerda seria mal falada". Disseram inclusive, no Rio de Janeiro, que quebrar o quiosque era o mesmo que matar Moïse.

A verdade é que, isso no Rio de Janeiro e em São Paulo, bem como o foi nos Estados Unidos em 2020, a ação proletária rompeu as barreiras raciais e ocorreu em união de brancos, negros, indígenas e outros, como ocorre quando a unidade de classe se manifesta contra os interesses burgueses de manter a exploração e defender a propriedade privada. Como já foi demonstrado pelo Grupo Comunista Internacionalista [1], no texto de sua revista Comunismo de nº57, a contrarrevolução sempre recorre à divisão e falta de agência dos oprimidos, alegando que a revolta é sempre fruto da ação externa ou de interesses díspares: uma revolta das mulheres, uma luta dos brancos contra os negros, uma guerra entre tribos africanas, etc. De acordo com o texto mencionado:

Alguns são levados a crer que não são proletários porque estão empregados, outros acham que não são proletários porque estão desempregados, aquele lá se sente camponês em oposição ao operário, outro pensa que é um comerciante porque é vendedor ambulante, muitos outros se sentem muito jovens ou muito velhos para serem proletários, haverão também aqueles que, por serem mulheres, se sentirão menos preocupados com a questão de sua classe ou que sentirão a opressão racial como mais determinante do que a de classe e em vez de sentir-se proletário negro, proletário latino ou proletário amarelo, ele se sente negro, latino ou amarelo... e para aqueles que superarem essas formas mais básicas de negação imediata da realidade do proletário, haverá outras formas mais político-ideológicas dessa mesma negação, como se sentir “anti-imperialista”, “antineoliberal”, “palestino”, “judeu”, “cubano”, “esquerdista”, “francês”, “ianque”, “aymara”, “curdo”, “croata”, “trabalhador de um país rico”, “feminista”, “anti-racista”, etc. São precisamente essas negações do próprio proletário que consolidam a ideologia burguesa do “verdadeiro proletário” que, como se sabe, é um trabalhador industrial, nacional, homem e que olha com desprezo para o lumpem, ao estudante, ao saqueador, ao imigrante, à mulher e a “todos esses negros”. 

De nossa parte, não vemos motivos para sair às ruas se tudo que formos fazer é chamar ao voto no final de 2022. Se decidimos sair às ruas é porque não aguentamos mais a fome crescente, o constante desprezo, os assassinatos, o desemprego, e dizer que tudo vai mudar com novas eleições não muda nada agora. O cenário de assassinato reformado que a Prefeitura do Rio de Janeiro pretende conceder à família de Moïse não vai impedir o racismo de continuar agindo, não é uma mudança efetiva, é simplesmente uma cooptação da revolta pelo discurso identitário, nas favelas continuaremos perdendo jovens negros nas ações da polícia, ou mesmo longe da favela como no caso de Durval.

Diferente dos conciliadores e defensores da propriedade vistos acima, não temos interesse de negociar com nossos verdadeiros inimigos, enquanto temos muito interesse de confraternizar com nossos irmãos de classe que estão ao nosso lado durante as lutas, sejam brancos, negros, indígenas, mulheres, entre outras. Não temos interesse em receber pequenas concessões, porque entendemos que o que há de errado é algo mais fundamental do que uma "conscientização da população", embora a mudança esteja longe, para nós ela começava com a destruição do quiosque Tropicallia, mostrando que não estaríamos mais dispostos a aceitar esses tipos de atrocidades, mas os conciliadores pediram que tivéssemos calma e que mostrassemos pros nossos exploradores e assassinos que há um caminho para negociação, mesmo nos casos mais brutais.

O que precisamos, e pelo que devemos sair e lutar, é a destruição dessa sociedade que enriquece às custas da força de trabalho barata do corpo negro, que utiliza o racismo como forma de dividir os oprimidos. Isso passa pelo enfrentamento intransigente ao Estado e seu aparato policial repressivo, bem como o combate ao Capital protegido por estes. Como coloca Lorenzo Kom'boa Ervin em Anarquismo e Revolução Negra:

Embora os Capitalistas utilizassem o sistema de privilégios da pele branca com grande eficácia para dividir a classe trabalhadora, a verdade é que os Capitalistas só favoreceram os trabalhadores brancos para usá-los contra os próprios interesses destes, não porque existia uma verdadeira unidade da classe 'branca'. Os Capitalistas não queriam trabalhadores brancos unidos com negros contra seu domínio e o sistema de exploração do trabalho. A invenção da 'raça branca' era uma farsa para facilitar essa exploração. Os trabalhadores brancos foram subornados para permitir a sua própria escravidão assalariada e a super-exploração dos Africanos; eles fecharam um acordo com o diabo, o que emperrou todos os esforços pela unidade da classe nos últimos quatro séculos. (2015, pp. 16-17) 


Notas:

[1] Esse texto pode ser encontrado em português na tradução disponível em nosso blog, ver link.


Referências:

ERVIN, Lorenzo Kom’boa. ANARQUISMO E REVOLUÇÃO NEGRA: e outros textos do anarquismo negro. [S.L.]: Coletivo Editorial Sunguilar, 2015.

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