terça-feira, 17 de maio de 2022

A Paz (1917) - Ricardo Flores Magón


Apresentação

Apresentamos a tradução, feita do espanhol, de mais um texto de Ricardo Flores Magón que consideramos certeiro. De fato, ao entrar em contato com a trajetória e obras desse autor, o que nos fica em mente é: como pode Magón ser tão pouco divulgado no Brasil? 

Ricardo viveu em períodos extremamente turbulentos: sob a ditadura de Porfirio Díaz foi preso diversas vezes, tendo que migrar para os EUA; participou da organização de movimentos como o de Cananea; presenciou a subida à presidência de Francisco I. Madero - que dizia apoiar algumas reivindicações dos operários e camponeses, mas que no final os "traiu" - ; viveu durante o extremo período de turbulência da Revolução mexicana; estava vivo durante os horrores da Primeira Guerra Mundial e também durante a Revolução russa e outros acontecimentos que deram fim à mesma.

Essa incrível jornada reflete-se em seus escritos, dentre os quais decidimos, nessas duas vezes, dar destaque aos que remetem ao tema da guerra burguesa. Podemos ver nas linhas abaixo, e no anterior texto, as lições que ele extraiu de suas experiências: nunca perdendo de vista a centralidade da luta de classes presente na sociedade, Ricardo defendia uma posição de clara recusa à participação na guerra em defesa dos interesses burgueses, propondo em seu lugar que os deserdados lutassem por seus interesses, para se reapropriar do que um dia foi comum; no texto abaixo, de 1917, em meio às notícias de "volta à normalidade", Magón mais uma vez destaca as mensagens subliminares por trás desse apelo e denuncia a "paz burguesa" como uma defesa de união interclassista entre exploradores e explorados, como se ambos tivessem o mesmo interesse de retorno "ao passado antes da guerra", nada mais que o retorno à normalidade da exploração.

Esperamos em breve trazer mais textos dessa figura brilhante, que consideramos essencial na retomada de experiências históricas de nossa luta.


A Paz

Assustados com seu próprio trabalho, os senhores da Terra estão agora pensando na paz.

De acordo com a imprensa burguesa, os governos dos países beligerantes nomearam comissões de indivíduos para estudarem as condições em que a paz poderia ser pactuada com as outras nações.

Mas não se deve pensar que os governos, ao querer a paz, o fazem por sentimentos de horror provocados pela feroz carnificina, nem que a piedade tenha tocado seus corações. Se os governos querem a paz, é porque veem nos oprimidos sintomas inconfundíveis de descontentamento, é porque temem a revolução.

Paz... Qual é o significado desta palavra para os pobres? É a liberdade? É a justiça? É a alegria de viver?

A paz, a paz burguesa, claro, a paz baseada na submissão dos fracos, é o que os governos querem restaurar, porque garante aos ricos o desfrute tranquilo de sua espoliação. Esta paz é a paz do escravo acorrentado, o silêncio dos mortos, a paz do cemitério.

Os governos querem que as coisas retornem ao estado em que estavam antes do início da guerra, ou seja: a humanidade separada por fronteiras, o homem dominado pelo homem e todos os males que resultam de uma organização social baseada na injustiça.

O retorno à paz só beneficiará aqueles que foram capazes de acumular fortunas com a dor e o sacrifício dos humildes. São esses que desfrutarão da vida; serão felizes; mas não aquele que passa metade de sua vida enterrado nas entranhas da terra extraindo os metais que o escravizarão, nem aquele que na oficina ou na fábrica sente a anemia e a tuberculose infiltrando-se por todos seus poros.

Paz é uma palavra doce para aquele que é livre; mas tem sabores de sarcasmo para aquele que tem que alugar seus braços para poder viver.

A paz será uma coisa desejável quando houver igualdade, pois enquanto subsistir a desigualdade, a paz será uma bênção para o amo, um sacrifício e exaustão para o escravo.

Os povos, já ensanguentados e cansados da guerra, querem a paz, e como a paz que eles estabeleceriam seria prejudicial aos interesses da classe capitalista, os governos, diante do espectro da Revolução, querem fazer a paz burguesa, antes que os trabalhadores estabeleçam a paz humana, a verdadeira paz fundada na justiça e na liberdade; a paz que nasceria do simples fato de que a fonte de toda discórdia, o princípio da propriedade privada, teria deixado de existir.

A guerra está precipitando a Revolução, e é por isso que o Papa, reis e presidentes querem acabar com a guerra a fim de fazer a paz.

O descontentamento está crescendo em todos os países do mundo. Uma olhada na imprensa diária nos convence de que as legiões da miséria estão se redemoinhando em um ambiente saturado de protestos e rebelião. A mansa carne de canhão não quer mais afundar seus dentes no pescoço de oponentes que não cometeram outro crime além de terem nascido fora das fronteiras de sua pátria. Isso é o que está acontecendo na Rússia, cujo povo percebeu que é estúpido pegar armas para defender interesses que não são seus, e se recusa a lutar nas trincheiras, virando suas armas contra seus oficiais, fazendo com que ninguém mais queira ser oficial na Rússia.

O povo russo quer a paz; mas que seja uma paz estável, pois a paz que os governos desejam mais cedo ou mais tarde será quebrada pelas mesmas ambições que a têm sob seus pés desde 1914. O povo russo quer a paz para sempre, e essa paz só pode ser alcançada com a abolição do princípio da propriedade privada. Sem este princípio iníquo, os povos não mais se voltarão uns contra os outros, porque não haverá mais indivíduos interessados em travar suas guerras para aumentar suas fortunas, e todos os povos viveriam em paz, na verdadeira paz fundada na igualdade e na justiça.

O Comitê de Soldados e Trabalhadores de Petrogrado adotou o sentimento popular russo contra a guerra e, no último 14 de setembro, por maioria de 279 votos contra 150, declarou-se a favor da abolição da propriedade privada.

Uma formidável guerra civil resultará desta importante declaração, pois a burguesia não estará disposta a abrir mão da terra, dos instrumentos de trabalho e dos meios de transporte sem antes opor uma resistência feroz; mas há de se confiar que o espírito de sacrifício do qual os revolucionários russos sempre deram tão belos exemplos à humanidade, dará ao povo a energia necessária para quebrar em pedaços o jugo que é a origem de todos os males que afligem a humanidade: o princípio da propriedade privada.

Naturalmente, a declaração do Comitê de Petrogrado foi secundada pelo Comitê de Soldados e Trabalhadores de Moscou que, em 20 de setembro, com uma maioria de 355 votos contra 253, se declarou a favor da abolição do princípio da propriedade privada, e é quase certo que comitês similares em toda a Rússia se pronunciarão no mesmo sentido.

O proletariado espanhol está determinado a não entrar em guerra, como demonstram os inúmeros manifestos circulados pelos agrupamentos de trabalhadores, sendo que o último que temos diante de nós é o do Grupo Luz Libertaria, de Jerez de la Frontera, do qual extraímos os seguintes conceitos: 

"Ninguém mais ignora que o objetivo desta grande hecatombe que assola o mundo é a aquisição dos grandes mercados do universo; e como podemos nós, os trabalhadores, os deserdados da riqueza social, os despossuídos do patrimônio universal, defender um dos lados, seja qual for, se ambos os lados serão sempre os mercadores que tentarão eternamente converter nosso suor na mais preciosa de suas mercadorias? Não, não é nas trincheiras de cada lado que nossos inimigos se escondem; nosso inimigo comum é a burguesia capitalista, pois com ela está a exploração, a tirania e a lei dos privilégios; estas ervas daninhas malditas se encontram em todos os lugares, em todos os países, e nosso trabalho de regeneração tende a exterminá-las.

"Trabalhadores: a razão está ao nosso lado, e para seu triunfo devemos responder com nossa força consciente e com nossa vontade sempre ligeira, porque a hora da luta inevitável está próxima.

"Vamos responder à guerra com revolução".

A situação é bastante grave na Espanha, como afirmou Alejandro Padilla Bell, ministro espanhol no México.[1] O telegrama diz pouco ou nada sobre a situação naquele reino; mas o certo é que Alfonso, o pobre sifilítico coroado, vê punhos ameaçadores se levantarem por toda parte, e um justiceiro agora confinado no famoso castelo de Montjuich, efetuou um disparo que conseguiu penetrar a coxa de sua perna esquerda.[2]

O Kaiser não está mais seguro na Alemanha do que seu colega Alfonso na Espanha. A oposição do povo alemão contra a guerra se intensifica diariamente, e não fosse o medo sentido pelo proletariado alemão de que os Aliados se lançassem sobre ele ao fazer a Revolução, a coroa de Wilhelm já estaria no mesmo lugar que a de Nikolái Románov.

Em Portugal, a lei marcial foi declarada em 13 de setembro por ocasião da greve geral. Todos os estabelecimentos comerciais e industriais de Lisboa foram fechados, e soldados e paisanos vieram violentamente.

O povo francês quer a paz. Inúmeras pessoas foram presas por sua oposição à guerra, e a perseguição aos pacifistas só serviu para alimentar a indignação popular contra o massacre. A efervescência anti-guerra atingiu tal grau que, na própria Câmara dos Deputados, o deputado Pierre Brizon[3], faz seus colegas estremecerem com este grito evocativo da barricada e da guilhotina: "Abaixo a guerra! Viva a paz!

A burguesia da Argentina quer entrar na guerra; mas o Presidente Irigoyen[4] entende que a entrada da nação no conflito europeu seria um convite à Revolução. Grande agitação reina na República; a greve paralisou a vida econômica da nação, e a situação é tão tensa que o Presidente proclamou a lei marcial e reina a mais rigorosa censura sobre as notícias que saem do país. O humor do povo argentino pode ser medido a partir do conteúdo do seguinte folheto, intitulado "Mães, ao incêndio!", que foi distribuído pelo Comitê de Mulheres de Buenos Aires. Diz: 

"O clamor das mães que, com seus filhos anêmicos, flores secas dos lares proletários, saíram dos tenebrosos conventillos[5], onde a fome, o fantasma aterrador do presente, os devora diariamente, foi aplacada com o pão que todos os tiranos estão acostumados a dar: chumbo.

"E é que o povo é muito submisso e muito confiante; o povo confia demais nas promessas dos crápulas, permitindo que suas forças sejam absorvidas com projetos alucinógenos, mas que, como bolhas de sabão, desaparecem ao menor soprar.

"Mães, filhas, homens: o que vocês estão fazendo diante do apedrejamento das pessoas que passaram pelas ruas pedindo apenas uma pequena redução no preço dos alimentos? Sem dúvida vocês não querem uma repetição dos acontecimentos, nem querem que seus filhos se desperdicem como as flores não regadas nos casebre imundos. Bem, se vocês não querem isso, tomem o único caminho de salvação que existe. Qual? vocês perguntarão: a greve geral revolucionária, apoderando-se do trigo e de todos os elementos necessários à vida, que hoje estão apodrecendo nos imensos armazéns construídos pela ganância dos capitalistas.

"Para as ruas!

"Antes de ser baleado, você que não tem dinheiro para comprar pão e não pode comprar chumbo, recorra a uma arma barata e bem sucedida: o incêndio!

"Todos, portanto, homens e mulheres, a lutar pela conquista do bem e da liberdade: o parlamento das barricadas".

Um telegrama registrado de Roma, Itália, 20 de setembro, dá uma ideia do anseio de paz que anima o povo italiano. O telegrama diz: 

"Roma, 20 de setembro. - Em sua campanha contra a atividade socialista em Roma, que está se tornando cada vez mais intensa, a polícia recolheu aqui panfletos exigindo o fim imediato da guerra.

"Vários casos têm sido registrados ultimamente de grupos socialistas que recrudesceram sua atividade defendendo abertamente a revolução na Itália".

A Revolução Social se aproxima com o prolongamento da guerra, e a Revolução Social significa a derrubada de um sistema que permite àqueles que vivem na ociosidade aproveitarem o trabalho e o sacrifício do povo trabalhador. A Revolução Social porá um fim a todos os tipos de parasitas que, sem produzir nada útil, desperdiçam o produto do trabalho do proletariado. É por isso que os governantes a temem, é por isso que os capitalistas a odeiam, é por isso que os clérigos de todas as religiões a detestam, e é por isso que todos os parasitas, desde o Papa até o gendarme e o último cagatintas[6] nos escritórios do governo, estão queimando os neurônios estudando os meios de estabelecer mais uma vez a paz que todos eles costumavam desfrutar, uma paz que lhes permitia colocar o braço até os cotovelos nos bolsos dos trabalhadores; paz que eles sustentaram com doses de chumbo; uma paz infame que pôde se sustentar pelo medo da masmorra, pelo medo da forca, pelo horror do inferno; mas o horror desta guerra superou todos os outros horrores, e a humanidade, até agora de joelhos, se levanta e se prepara para fazer sua paz, uma paz humana, diferente da paz feita pelos governos.

O Papa vê a ruína dos privilégios se a Revolução irrompe pelo mundo todo, e através de seu secretário, o Cardeal Gasparri, profere este grito de angústia diante da catástrofe que eleva sua formidável cabeça no horizonte tapado por vapor de sangue: "É evidente", diz Gasparri, "que na presente conflagração não se trata mais de quem será o vencedor ou quem será o vencido. É improdutivo falar de um sucesso militar absoluto, quando nenhum grupo de beligerantes parece ser capaz de alcançá-lo sobre o outro. O que é urgente, portanto, é encontrar uma solução equitativa que satisfaça as populações de ambos os lados do conflito, a fim de evitar catástrofes sociais e econômicas mais graves."

Nos Estados Unidos, a situação está piorando em todos os sentidos, e o descontentamento e agitação das massas populares está sendo traduzido em greves, motins e até mesmo resistência armada ao governo. Não há liberdade de pensamento em nenhuma forma; o direito de reunião foi proibido; mil mercenários escutam detrás das portas para surpreender a palavra desrespeitosa ou a frase subversiva ou o fio condutor de alguma conspiração; as prisões estão cheias de homens e mulheres que, de alguma forma, têm demonstrado sua insatisfação com o regime vigente; o doutor Francia[7] foi ressuscitada nos domínios do tio Sam; o gaúcho Rosas[8] ocupa o Capitólio; o espião reina, o delator prospera, o informante não se esconde para contar as trinta moedas do crime, o carcereiro é um personagem, o carrasco é um pontífice.

A lista de periódicos suprimidos já é interminável; os comícios são interrompidos por rufiões estrelados; a plebe de levita, a gentalha dourada, ameaça, rechaça e lincha aqueles que não se conformam com a tirania.

A mão de ferro de Porfirio Diaz não foi quebrada pelo ciclone de 1910; o chicote de Nikolái Románov não foi reduzido a cinzas em Petrogrado: mão e chicote estão aqui, na América livre, lançando sua sombra sobre os brilhos desbotados de uma liberdade moribunda.

A fome ganha força; a tirania extrapola seus limites; os sátrapas[9] orientais são recém-nascidos ao lado dos déspotas de Wall Street.

O Governador Lowden,[10] do Estado de Illinois, destacou soldados armados para suprimir um comício de pacifistas em Chicago. Ao receber a notícia da ação do governador, grande excitação surgiu entre os participantes do comício, e S. Gloverman, dirigindo-se à assembleia, disse: 

"Permitiremos, sem resistência, que nossas liberdades sejam tiradas de nós? Resistamos até que a última gota de nosso sangue tenha deixado nossas artérias.

"Só podemos triunfar por meio de uma revolução, uma revolução armada. A revolução nos libertará. Não há outra maneira. De mim mesmo posso dizer que vou resistir com todas as minhas forças".

Estas palavras, segundo o Times de 3 de setembro, provocaram um grande entusiasmo no auditório, a tal ponto que, nas palavras do Times, "os homens se levantaram nas cadeiras, acenaram com seus chapéus e gritaram: rebelião, rebelião! Abaixo o governo! Abaixo Lowden!"

As palavras de Gloverman, proferidas em tempos normais, como em 1914, quando os cidadãos deste país sonhavam em se tornar um Rockefeller ou um Morgan, poderiam ser tomadas como um caso de indignação individual, inconsequente, sem importância; mas nos tempos atuais de intensa agitação econômica e política, essas palavras são significativas, pois revelam a manifestação de um estado de espírito geral.

Este parecer é plenamente corroborado pelas palavras usadas pelo Comitê Militar do Senado, ao decidir contra uma proposta feita pelo Senador Hardwick[11], que propõe que a lei de serviço militar obrigatório deve ser modificada no sentido de que somente os recrutas que consentirem em fazer tal serviço devem ser enviados para lutar no exterior. O parecer do Comitê diz em parte: "A situação criada por este espírito de oposição ao projeto de lei é grave, e quando somada ao mal-estar prevalecente entre a população civil decorrente das condições comerciais e industriais... nosso país é colocado em uma situação de extremo perigo...".

O espírito de rebelião foi fortalecido pelas circunstâncias econômicas, políticas e sociais prevalecentes em todo o país. Os trabalhadores organizados da Federação Americana do Trabalho se distinguiam anteriormente por seu respeito ao governo e a Gompers[12], o presidente da organização. Bem, contra a vontade de Gompers e atrasando com sua ação a construção de navios do governo, os trabalhadores do ferro entraram em greve em São Francisco[13] e, segundo o Times: "quando os contratos do governo são mencionados aos grevistas eles respondem: 'o governo pode ir para o inferno'".

O Ministro do Interior, Franklin K. Lane,[14] num discurso à convenção da Câmara de Comércio dos Estados Unidos, realizada em Atlantic City, N. J., disse: "O pior perigo diante de nós é o descontentamento presente no país".

O senador La Follette, criticando perante o Senado a política de não cobrar impostos extraordinários àqueles que estão se enriquecendo com a guerra europeia, disse: "Esta política financeira produzirá o desastre de nossas forças militares no exterior e a indignação do povo em casa".

O sinal mais claro de descontentamento é a conspiração. Quando um homem decide entregar sua vida na barricada, ele está cercado por uma condição insuportável. O povo americano é um povo naturalmente pacífico. Com ovos e bacon ao café da manhã; uma fatia de pão e melaço ao meio-dia, um prato de carne e couve ao jantar, e alguns centavos para depositar no banco, eles estão contentes. Ele respeita o governo, obedece à lei, frequenta o culto religioso. Seu ideal é ganhar dinheiro, mesmo que ele tenha que fechar a boca. Para os governantes, o clero e a burguesia, este é um povo ideal, o rebanho manso, respeitoso, obediente, submisso, incapaz de se levantar, inapto para a revolta e o motim. E é assim que este povo teria permanecido se o flagelo da guerra não os tivesse abalado.

A guerra vem, e a miséria se faz sentir com força; a guerra vem, e obriga os homens a pegarem a arma para a defesa de interesses pecuniários; a guerra vem, e uma mordaça é colocada em cada boca, e os portões das prisões são abertos de par em par para internar os descontentes. O que deve resultar de tal situação? A conspiração! O primeiro ato da tragédia chamada Revolução.

É comum ver na imprensa diária notícias como esta, que traduzimos do Times de 6 de setembro. "Ringling, Okla., 5 de setembro. - Dos 27 homens acusados de conspiração contra o governo, dezesseis foram presos na parte sul do condado de Jefferson ontem à noite e detidos na cadeia do condado de Waurika. De acordo com a declaração de um dos presos, os homens tinham se organizado com o propósito de resistir ao alistamento, e tinham concordado em iniciar uma destruição sistemática da propriedade a partir da última noite."

Tudo isso indica que a Revolução está se aproximando em todos os países do mundo, Revolução precipitada pela ganância burguesa e tirania do governo.


Ricardo Flores Magón
Regeneración, n. 260, 6 de outubro de 1917.

Notas

[1] Alejandro Padilla Bell. Diplomata espanhol. Responsável pela legação espanhola no México a partir de 4 de julho de 1916. Teve ótimas relações com Venustiano Carranza, apesar de ter desaprovado a Constituição de 1917 e recomendado não reconhecer seu governo. Ele deixou o cargo em setembro de 1917.
[2] Não há outra referência a esse ataque.
[3] Pierre Brizon. Francês. Deputado socialista de 1910 a 1919. Pacifista, se opôs à Primeira Guerra Mundial. Ele participou do Congresso da Internacional Socialista de 1916.
[4] Hipólito Yrigoyen (1852-1933). Ele foi membro da União Cívica Radical e o primeiro presidente eleito por sufrágio universal (masculino) na Argentina, atuando como presidente de 1916 a 1922 e de 1928 a 1930.
[5] Tipo de habitação urbana coletiva na Argentina onde somente o quarto era alugado (fonte: Wikipedia). [NT]
[6] Pejorativo que se refere a uma pessoa que trabalha em escritório com algo envolvendo muita papelada e de pouca utilidade (fonte: Collins Dictionary e Real Academia Española). [NT]
[7] Refere-se a José Gaspar Rodríguez de Francia (1766 - 1840). Conhecido como Doutor Francia, ele liderou o movimento de independência do Paraguai. Ele governou o Paraguai durante 26 anos (de 1814 a 1840) sob um regime ditatorial.
[8] Refere-se a Juan Manuel de Rosas (1793-1877). Oficial militar e político argentino. Ele desempenhou um papel de liderança na revolução de 1828, depois da qual assumiu o comando da Província de Buenos Aires. A partir de 1830, ele governou com poderes extraordinários. Derrubado por um amplo e diverso movimento de oposição, em 1852 ele foi para o exílio na Inglaterra, protegido por suas autoridades. Morreu no exílio.
[9] Sátrapas eram governadores de províncias persas na antiga monarquia Persa. Também pode se referir à déspotas. [NT]
[10] Frank Orren Lowden (1861-1943), membro do Partido Republicano e governador de Illinois de 1917 a 1921.
[11] Refere-se a Thomas W. Hardwick, um político que ocupou vários cargos na Geórgia, incluindo o de promotor de 1895 a 1897, membro da Câmara dos Deputados de 1898 a 1902, e senador em 1914. Ele foi o promotor de uma lei de imigração em 1903.
[12] Refere-se a Samuel Gompers (1850-1924). Fundador e líder histórico da Federação Americana do Trabalho (AFL), 1908-1920. Simpatizou e apoiou campanhas em nome dos liberais mexicanos perseguidos nos Estados Unidos. A partir de março de 1911, forneceu seu apoio a Francisco I. Madero e mais tarde Venustiano Carranza. Lutou pela aproximação da COM [Confederação Regional de Trabalhadores Mexicanos] e da AFL, que resultou na Federação Pan-Americana do Trabalho em novembro de 1918. Em janeiro de 1921, visitou a Cidade do México para participar de uma conferência daquela federação.
[13] Refere-se à greve promovida pela Union Iron Works de São Francisco, opondo-se à sua filiação forçada à Federação Americana do Trabalho.
[14] Franklin Knight Lane (1864 - 1921). Democrata. Disputou o governo da Califórnia em 1902. De 1913 a 1920 serviu como Secretário do Interior dos Estados Unidos. Posteriormente comissário da Comissão Interestatal de Comércio; promoveu o envolvimento dos EUA na Primeira Guerra Mundial.

quinta-feira, 12 de maio de 2022

A pátria burguesa e a pátria universal (1915) - Ricardo Flores Magón


Apresentação

Em meio ao período em que vivemos, com o estalar de uma guerra no leste europeu e outros conflitos potencialmente bélicos no horizonte, consideramos essencial resgatar e traduzir esse material que foi feito em meio ao primeiro grande episódio revolucionário do século XX (a Revolução mexicana) e ao estalar da Primeira Guerra Mundial. 

Pensamos que Magón, nesse texto, expõe claramente alguns posicionamentos já divulgados em nosso blog anteriormente. Não temos pátria que defender, não devemos "recuperar a honra de nossa nação", pois essas posições apenas fazem apologia a uma frente única com a burguesia nacional, que invariavelmente serve aos interesses da última e contra um programa autônomo de reivindicações. Devemos difundir e construir movimentos contra a guerra que não criem esse sentimento de unidade com nossos exploradores, mas que na verdade nos coloquem em clara oposição com eles: deserções, greves (como o impedimento de transportar munições, de fabricar armamentos), manifestações contra a carestia de vida e bloqueios de rodovias são alguns exemplos.

A seguir apresentamos a tradução do texto La patria burguesa y la patria universal, que foi feita a partir da versão em espanhol e com auxílio da versão em inglês


A pátria burguesa e a pátria universal  

Camaradas:

A humanidade encontra-se em um dos momentos mais solenes de sua história. No Universo nada é estável: tudo muda, e nos encontramos no momento em que uma mudança está prestes a acontecer no modo como os seres humanos estão agrupados no conjunto de instituições econômicas, políticas, sociais, morais e religiosas, que constituem o que se chama sistema capitalista, ou seja, o sistema da propriedade privada ou individual.

O sistema capitalista morre ferido por si mesmo, e a humanidade, assombrada, presencia o formidável suicídio. Não são os trabalhadores que fazem as nações se voltarem umas contra as outras: é a própria burguesia que provoca o conflito, em sua avidez em dominar os mercados. A burguesia alemã realizava enormes progressos na indústria e no comércio, e a burguesia inglesa sentia inveja de sua rival. É isso que está por trás desse conflito que se chama de guerra europeia: inveja dos pequenos comerciantes, a inimizade dos traficantes e as brigas dos aventureiros. Nos campos da Europa não se disputa a honra de um povo, uma raça ou uma pátria, mas sim, nessa luta de feras, o bolso de cada indivíduo: são lobos famintos tentando capturar uma presa. Não se trata da honra nacional ferida ou da bandeira desrespeitada, mas sim de uma luta pela posição do dinheiro, o dinheiro que primeiramente fez suar o povo nos campos, nas fábricas, nas minas, em todos os lugares de exploração e agora querem que esse mesmo povo explorado o guarde com sua vida nos bolsos dos que lhe roubaram. 

Que sarcasmo! Maldita ironia! Faz-se o povo trabalhar por uma migalha, ficando os mestres com o lucro, e depois se faz os povos destruírem uns aos outros para que esse lucro não seja arrancado das mãos de seus verdugos. Nós pobres protegermos uns aos outros, tudo bem: esse é nosso dever, essa é a obrigação que nos impõe a solidariedade. Proteger-nos uns aos outros, ajudar-nos, defender-nos mutuamente, é uma necessidade que devemos satisfazer se não queremos ser aniquilados por nossos senhores; porém, nos armarmos e nos jogarmos uns sobre os outros para defender o bolso de nossos amos é um crime de lesa classe, é um delito que devemos rechaçar indignados. Às armas, tudo bem; porém contra os inimigos de nossa classe, contra os burgueses, e se nosso braço deve cortar alguma cabeça, que seja a do rico; se nosso punhal tem de alcançar algum coração, que seja do burguês. Porém, não destrocemos uns aos outros os pobres.

Nos campos da Europa os pobres destroçam uns aos outros para benefício dos ricos, que fazem acreditar que lutam em benefício da pátria. Bem; que pátria tem o pobre? Aquele que não conta com mais do que seus braços para ganhar o sustento, sustento que lhe falta se o amo maldito não sente vontade de explorá-lo, que pátria tem? Porque a pátria deve ser algo como uma boa mãe que ampara igualmente a todos seus filhos. Que amparo têm os pobres em suas respectivas pátrias? Nenhum! O pobre é um escravo em todos os países, é desgraçado em todas as pátrias, é um mártir sob todos os governos. As pátrias não dão pão ao faminto, não consolam o triste, não enxugam o suor do rosto do trabalhador cansado, não se colocam entre o fraco e o forte para que esse não abuse do primeiro; porém quando os interesses do rico estão em perigo, então os pobres são chamados à expor suas vidas pela pátria, pela pátria dos ricos; por uma pátria que não é nossa, senão de nossos verdugos. 

Abramos os olhos, irmãos de correntes e de exploração; abramos os olhos à luz da razão. A pátria é daqueles que a possuem, e os pobres não possuem nada. A pátria é a mãe carinhosa do rico e a madrasta do pobre. A pátria é o policial armado com o cassetete, que nos chuta para o fundo de uma masmorra ou nos põe a corda no pescoço quando não queremos obedecer as leis escritas pelos ricos em benefício dos próprios ricos. A pátria não é nossa mãe: é nosso verdugo! E para defender esse verdugo, nossos irmãos, os proletários da Europa, acabam com a existência uns dos outros. Imaginem o espaço que ocuparão mais de 6 milhões de cadáveres; uma montanha de cadáveres, rios de sangue e de lágrimas, isso foi o produzido até agora pela guerra europeia. E esses mortos são nossos irmãos de classe, são carne de nossa carne e sangue de nosso sangue. São trabalhadores que desde criança foram ensinados a amar a pátria burguesa, para que, chegada a ocasião, se deixassem matar por ela. O que possuíam de suas pátrias esses heróis? Nada! Não possuíam outra coisa que um par de braços robustos para ir atrás do sustento próprio e de suas famílias. Agora as viúvas, as carpideiras desses trabalhadores, terão que morrer de fome. As mulheres se prostituirão para arranjar um pedaço de pão; as crianças roubarão para arranjar comida aos seus pais idosos; os doentes irão ao hospital e para o túmulo. Bordel, presídio, hospital, morte miserável: esse é o prêmio pelo luto dos heróis que morrem por sua pátria, enquanto os ricos e os governantes esbanjam em festins o ouro pelo qual o povo na fábrica, na oficina e na mina suou. Que contraste! Sacrifício, dor, lágrimas para os que tudo produzem, para os criadores abnegados da riqueza. Prazeres e alegrias para os preguiçosos que estão em nossos ombros. Sacudamo-nos, agitemo-nos, trabalhemos para que caiam aos nossos pés os parasitas que acabam com nossa existência. Coloquemos resolutamente nossos punhos no pescoço do inimigo. Somos mais fortes que ele. Um revolucionário disse esta imensa verdade: “Os tiranos nos parecem grandes porque estamos de joelhos; levantemo-nos!” 

Bem: horrível como é a carniceria insensata que converte em matadouro o território do Velho Mundo, ela tem de produzir imensos bens à humanidade, e em lugar de nos entregarmos à tristes reflexões considerando somente a dor, as lágrimas e o sangue, nos alegremos, nos regozijemos de que tal hecatombe tenha acontecido. A catástrofe mundial que contemplamos é um mal necessário. Os povos, aviltados pela civilização burguesa, não se lembravam de que possuíam direitos, e se fazia indispensável uma sacudida formidável para despertá-los à realidade das coisas. Existem muitos que necessitam da dor para abrir seus cérebros à razão. O maltrato avilta o fraco e o tímido; mas no seio do homem envergonhado desperta sentimentos de dignidade e de nobre orgulho que lhe fazem se rebelar. A fome dobra o covarde e o entrega de joelhos ao burguês; porém é ao mesmo tempo um estímulo que faz os povos se levantarem. O sofrimento pode conduzir à resignação e à paciência; porém também pode colocar, nas mãos do homem valente, o punhal, a bomba e o revólver. E é isso que acontecerá quando terminar esta guerra infame, ou o que a fará terminar. As grandes batalhas no campo terminarão com a barricada e o motim dos povos rebeldes e as bandeiras nacionais desaparecerão no ar, para dar lugar à bandeira vermelha dos deserdados do mundo.

Então, a revolução que nasceu no México, e que ainda vive como um flagelo e um castigo para os que exploram, os que enganam e os que oprimem a humanidade, estenderá suas chamas benfeitoras por toda a terra e em lugar de cabeças de proletários rolarão pelo solo as cabeças dos ricos, dos governantes e dos sacerdotes, e um só grito subirá ao espaço vindo do peito de milhões e milhões de seres humanos: Viva Terra e Liberdade!

E pela primeira vez o Sol não terá vergonha de enviar seus raios gloriosos a esta terra murcha, dignificada pela rebelião, e uma nova humanidade, mais justa, mais sábia, converterá todas as pátrias em uma só pátria, grande, bela, boa: a pátria dos seres humanos; a pátria do homem e da mulher, com uma só bandeira: a da fraternidade universal.

Saudemos, companheiros de fadiga e de ideais, a Revolução mexicana. Saudemos essa epopeia sublime do peão convertido em homem livre através da rebeldia, e ponhamos tudo que temos do nosso lado, nosso dinheiro, nosso talento, nossa energia, nossa boa vontade, e se necessário que sacrifiquemos nosso bem-estar, nossa liberdade e a nossa vida para que essa Revolução não termine com a elevação de qualquer homem ao Poder, mas que, seguindo seu curso reivindicador, termine com a abolição do direito de propriedade privada e a morte do princípio de autoridade; porque enquanto existirem homens que possuem e homens que nada têm, o bem-estar e a liberdade serão um sonho, continuarão existindo somente como uma bela ilusão jamais realizada.

A Revolução não deve ser o meio pelo qual os ímpios se elevam ao poder, mas sim o movimento justiceiro que mata a miséria e a tirania, que não são mortas elegendo governantes, mas pondo um fim ao chamado direito de propriedade privada. Esse direito é a causa de todos os males que a humanidade sofre. Não é necessário buscar a origem de nossos males em outra coisa, pois pelo direito de propriedade existe Governo e existem sacerdotes. O Governo é o encarregado de zelar para que os ricos não sejam despojados pelos pobres e os sacerdotes não têm outra missão além de infundir nos peitos proletários a paciência, a resignação e o temor à Deus, para que não pensem jamais em se rebelarem contra seus tiranos e exploradores. 

O Partido Liberal Mexicano - sindicato operário revolucionário - compreende que a liberdade e o bem-estar são impossíveis enquanto existirem o Capital, a Autoridade e o Clero, e para a morte desses três monstros, ou desse monstro de três cabeças, dedica todos seus esforços, e é devido à propaganda e à ação dos membros desse Partido que não existe um governo estável no México, ou seja, que não se fortaleça uma nova tirania. Não queremos ricos, não queremos governantes e nem sacerdotes; não queremos patifes que explorem as forças dos trabalhadores; não queremos bandidos que sustentem através da lei esses patifes, nem malfeitores que em nome de qualquer religião façam do pobre um cordeiro que se deixe devorar pelos lobos sem resistência e sem protesto.

Aqueles de vocês que querem conhecer a fundo pelo que luta o Partido Liberal Mexicano só têm de ler o Manifesto de 23 de setembro de 1911, promulgado pela Junta Organizadora do Partido.

Assim como a guerra europeia é um mal necessário, a Revolução mexicana é um bem. Há sangue, lágrimas, sacrifícios, de fato; porém, qual grande conquista foi obtida através de festas e prazeres? A liberdade é a maior conquista que pode desejar um peito digno, e a liberdade só é obtida enfrentando a morte, a miséria e o calabouço.

Pensar que se pode conquistar a liberdade de outra maneira é equivocar-se lamentavelmente.

Nossa liberdade está nas mãos de nossos opressores: por isso não podemos adquiri-la sem luta e sem sacrifício. 

Em frente! Se na Europa ainda se combate pela pátria, ou seja, pelos ricos, no México se luta por Terra e Liberdade! Em frente! O momento é solene. No México o sistema capitalista desmorona sob os golpes da plebe dignificada, e os clamores dos ricos e do clero chegam a Washington para perturbar o cérebro daquele pobre brinquedo da burguesia chamado Woodrow Wilson, o presidente anão, o oficial de sainete que, pela ironia do Destino, foi lançado como ator em uma tragédia na qual apenas personagens com mão de ferro deveriam participar.

Em frente! O remédio está ao nosso alcance. Para acabar com o sistema capitalista não precisamos fazer outra coisa senão tomar posse dos bens que se encontram nas garras dos ricos e declará-los propriedade de todos, homens e mulheres. O homem arrisca sua vida para elevar um governante, que por mais amigo do pobre que diga ser, nunca o será mais do que o é do rico, já que sua missão é zelar para que a lei seja respeitada, e a lei ordena que se respeite o direito de propriedade privada ou individual. Por quê se matar para ter um governo? Por quê não, melhor, se sacrificar para não ter nenhum, ainda mais razoável na medida em que o mesmo esforço que se faz para tirar um governante e colocar outro em seu lugar é o mesmo preciso para arrancar das mãos dos ricos a riqueza que detêm? 

A expropriação: esse é o remédio; porém deve ser a expropriação para o benefício de todos e não de alguns. A expropriação é a chave de ouro que abre as portas da liberdade, porque a posse da riqueza fornece a independência econômica. Aquele que não necessita alugar seus braços para viver, esse é livre. 

Em frente! Não é possível se deter e ser simples espectadores do drama formidável. Que cada um se una aos demais de sua classe: o pobre com o pobre; o rico com o rico, para que cada qual se encontre com os seus e em seu posto na batalha final: a dos pobres contra os ricos; a dos oprimidos contra os opressores; a dos famintos contra os fartos, e quando a fumaça do último disparo tiver dissipado, e do edifício burguês não reste pedra sobre pedra, que o sol brilhe em nossos rostos enobrecidos e que a terra se sinta orgulhosa de sentir-se pisada por homens e não por rebanhos.

Aprendamos algo de nossos irmãos, os revolucionários expropriadores do México. Eles não esperaram que ninguém se tornasse presidente da República para iniciar uma era de justiça. Como homens destruíram tudo que se opunha à sua ação redentora. Revolucionários de verdade, rasgaram a lei em pedaços; a lei maquiadora da injustiça; a lei protetora dos fortes. Com mão robusta, esmagaram as grades dos presídios e com as grades afundaram os crânios de juízes e cagatintas[1]. O burguês teve seu pescoço afagado com a corda dos enforcados, e com um gesto heroico, nunca testemunhado pelos séculos, eles colocaram sua mão sobre a terra, que palpita de emoção ao sentir-se possuída por homens livres....

Em frente! Que neste momento solene cada um cumpra seu dever.

Viva a anarquia! Viva o Partido Liberal Mexicano! Viva Terra e Liberdade!


Ricardo Flores Magón
Regeneración, n. 207, 9 de outubro de 1915.

Notas

[1] Pejorativo que se refere a uma pessoa que trabalha em escritório com algo envolvendo muita papelada e de pouca utilidade (ver: Collins Dictionary e Real Academia Española).

terça-feira, 3 de maio de 2022

O Passado de Nosso Ser - Barbaria

 



O passado de Nosso Ser [1,2]

Apresentação

Como parte de nosso objetivo geral enquanto grupo [Editora Amanajé], recebemos essa tradução, revisamos e compartilhamos. Entendemos que esse texto é de grande valia para compreendermos os processos de ruptura que ocorreram durante o período de ascenso e de refluxo da onda revolucionária do começo do século XX. No início desse ano, publicamos a tradução de um texto de Errico Malatesta, datado de 1883, no qual encontramos uma cristalização da negação de rebaixar e enfraquecer nosso programa para atingir uma maior aderência, uma maioria, o que simboliza uma clara ruptura com o democratismo (entendido aqui como a realização de concessões na busca da maioria). A tradução que trazemos agora expande sobre esse tema. 


Sobre o Barbaria

Barbaria nasceu em 2018, ainda que muitos de seus membros viessem de um grupo anterior chamado Germinal e que serviu como processo de clarificação programática. Comunistas contra a mercadoria, o Estado e o trabalho assalariado, o grupo encontra na esquerda comunista a corrente que melhor defendeu e aprofundou essas posições. Embora seus integrantes vivam no Estado espanhol, o Barbaria tenta pensar-se em um sentido internacionalista tanto na sua relação com outros grupos de revolucionários como nas lutas de nossa classe por todo o mundo. Assim o faz sob a convicção de que somente se pode deter o processo de extinção como espécie, ao qual nos leva a catástrofe capitalista, mediante uma revolução mundial, feita pelo proletariado internacional e seu órgão específico, o partido de classe. 

Textos essenciais para leitura:

- (es, en) http://barbaria.net/2018/05/27/el-pasado-de-nuestro-ser

- (es) http://barbaria.net/2020/12/15/el-capitalismo-de-stalin/ 

- (es) http://barbaria.net/2021/12/27/interseccionando-el-capitalismo/ 

- (es) http://barbaria.net/2019/06/09/el-decrecentismo-y-la-gestion-de-la-miseria/ 

- (es, en) http://barbaria.net/2019/10/14/diez-notas-sobre-la-perspectiva-revolucionaria/ 

- (es, pt, en) http://barbaria.net/2020/03/20/las-pandemias-del-capital/


Uma única prática humana é imediatamente
teoria: a revolução. O conhecimento humano avança
através de revoluções sociais. O resto é silêncio.
Amadeo Bordiga

O objetivo deste texto é retornar a um debate fundamental que teve lugar durante a fundação da Terceira Internacional há cem anos. Um debate entre o oficialismo do movimento comunista e aqueles que estavam infectados pelo vírus da “infantilidade esquerdista”, nas palavras polêmicas de Lenin. Um debate entre personagens muito conhecidos, como Lenin ou Trotsky, e outros não só mais desconhecidos, mas em boa medida deturpados, como Pannekoek, Gorter, Otto Rühle ou Amadeo Bordiga.

Mas para quê retomar este debate? Qual é a utilidade de discutir sobre polêmicas de cem anos atrás? Na realidade, o grande problema de quem se considera de “esquerda radical” é o completo desconhecimento destas discussões. Sem essa memória, vivem num presentismo contínuo que os leva, por nenhum motivo aparente - sem perceber - a cometer continuamente os mesmos erros, a estarem condenados a serem a esquerda do capital.

Nos primórdios da Terceira Internacional se discutiram questões chave em torno do que é uma revolução, qual é a natureza do comunismo, qual é a essência das instituições políticas burguesas, qual é a utilidade ou não de alcançar a hegemonia (comunista) dentro da classe proletária antes da explosão de um processo revolucionário, mas também quais estratégias e táticas adotar para acabar com as relações sociais capitalistas: a intervenção (ou não) nos parlamentos e nos sindicatos, a frente única ou a construção de “governos operários” dentro de regimes capitalistas, a defesa (ou não) do direito à autodeterminação dos povos…

Como podemos perceber, estas são questões que voltam a se apresentar constantemente para todo aquele que quer mudar radicalmente esta sociedade em decomposição que é o reino do capital. O que fazer em um momento no qual uma perspectiva de transformação revolucionária da sociedade não é atual e imediata, quando sua necessidade nunca foi maior, porém, ao mesmo tempo, não se enxerga seu horizonte imediato? Não seria útil, ao menos, se realizar um programa mínimo de melhoria das condições de vida das “maiorias sociais” – como se diz agora –, “sujando-se as mãos em um trabalho árduo” dentro dos parlamentos, dos sindicatos, na construção da independência nacional – como fazem as CUPs –, na aliança com setores menos reacionários que outros? É necessário sair da suposta torre de cristal em que vivem os maximalistas, os esquerdistas, encantados por nosso doutrinarismo abstrato. A ascensão do Podemos foi uma maré que arrastou consigo uma boa parte das organizações da chamada “esquerda radical”, sobretudo em sua versão “trotskista” (veja o caso de Anticapitalistas). Para nós, a forma de neorreformismo que o Podemos encarna é um fracasso antecipado; sua única virtude é ideológica, a fim de reforçar as esperanças (nocivas) de nossa classe no regime democrático e, consequentemente, no reino impessoal do capital. No Podemos e em suas diferentes ramificações cidadãs, mergulharam uma grande variedade de correntes da esquerda radical, não só de trotskistas – acostumados como estão às operações nocivas do entrismo, nocivas, antes de tudo, para seus militantes –, mas também autonomistas e libertários. É cada vez mais óbvio como o Podemos se parece com apenas mais um partido do regime, as esperanças de mudança – ainda que fossem moderadas e em pequena escala – defrontam-se com a continuação, a partir das experiências do Syriza ou dos governos municipais, dos despejos, com os quais as polícias municipais de Madrid e Barcelona perseguem e detêm os mais desfavorecidos, os imigrantes ilegais e como se orgulham de pagar a dívida com maior presteza que os rivais políticos.

Para enfrentar este neorreformismo só conhecemos um remédio, uma arma, um instrumento: a teoria. Uma teoria que em nosso caso parte de entender uma das principais contribuições de Marx, sua teoria sobre o capital e sobre o valor. Explicamos em numerosos textos publicados – e continuaremos fazendo em futuros textos e livros – que o grande limite destas formas de neorreformismo parte de sua ideia da autonomia da política, na crença de que se pode governar à margem do curso e das necessidades do capital e de seus movimentos impessoais [3]. A função determina o órgão. Os supostos governantes são funcionários dos movimentos dos mercados e estes passam por um mau momento, uma época na qual as bases reais do capital tendem a se esgotar pela expulsão de trabalho vivo – de cuja sucção vampiresca vive o capital – ocasionada pela revolução tecnológica. A impossibilidade real – e não só ideológica – de um reformismo do capital conduz a uma dinâmica de barbárie social e humana que se estende como uma mancha de óleo imparável.

Então não basta somente uma teoria que descreva a necrologia do capital, sua tendência catastrófica ao desmoronamento. Como dizia Bordiga, O capital de Marx é uma teoria antecipatória do comunismo. Entretanto, e como sabia o mesmo Bordiga, para isso é necessária uma reflexão orgânica sobre o programa comunista. E, nisso, nós temos uma diferença substancial em relação a autores como Robert Kurz ou Anselm Jappe, nos quais nos baseamos por suas reflexões sobre os limites internos do capital, mas cujo catastrofismo – na ausência de uma reflexão programática, de caráter comunista, que se sustente no fio histórico que é fundamental se reapropriar para continuar alinhavando – conduz a uma “socialdemocracia da catástrofe”[4].

Por tudo isso, é fundamental se dirigir a uma das principais fontes deste fio histórico. Aquela que foi atada há cem anos, quando, durante quase uma década, milhões de proletários e proletárias estremeceram a ordem estabelecida em todos os lugares.


A onda revolucionária de 1917-1927

Concentrar-nos-emos no período que vai desde a revolução russa de fevereiro, cujo centenário está prestes a cumprir-se, até o fracasso da revolução chinesa de 1927, massacrada pelo Kuomintang em Xangai, precisamente por essa teimosa busca por alianças progressistas que caracterizou a política do estalinismo internacional.

Na realidade, a onda revolucionária começa a diminuir de modo decisivo a partir de 1921. O ano de 1921 é o último momento de ascensão da revolução alemã, com a chamada Ação de março, que gerará confrontos decisivos na Saxônia. No ano anterior o movimento dos conselhos operários na Itália havia se exaurido. Ainda assim, haverá momentos decisivos de enfrentamento social em 1923 na Alemanha, na Bulgária durante o mesmo ano, em 1926 no Reino Unido, até chegar à China, em 1927. Essa mudança de trajetória da onda revolucionária será fundamental para entender os debates programáticos que constituem a raiz de nosso artigo. A revolução alemã explode em novembro de 1918, a partir dos marinheiros de Kiel. Imediatamente, os conselhos operários se estendem por todos os lugares, em todas as cidades alemãs e forçam a queda do 2º Reich. Em poucos dias acabava a Primeira Guerra Mundial, em 11 de novembro, às 11 horas. A extensão da onda revolucionária no coração da Europa Central é grande demais para as elites econômicas da burguesia internacional. O conflito que provocou mais de dez milhões de mortes entre os trabalhadores tem que acabar, antes que a revolução acabe com as próprias elites. Como em 1914, a socialdemocracia alemã será fundamental para esmagar a revolução e liderar a contrarrevolução que se pagará com mais de cem mil proletários assassinados entre 1918 e 1923.

Porém, há um primeiro aspecto do qual nos parece importantíssimo tomar consciência. As revoluções não são feitas nem preparadas, elas surgem, criam a si mesmas; são expressão da criatividade e do imaginário social, da autonomia humana e de sua capacidade de autoinstituição. Que partido criou os sovietes? Essa forma maravilhosa de comunidade social em revolução que, a partir da Rússia, invadiria o mundo desde Petrogado a Seattle, de Viena a Turim, da Finlândia ao Brasil… Uma forma – a tendência de constituir assembleias enormes e abertas, que surge cada vez que há um movimento de insurreição ou de luta social de nossa classe – que se repetiu permanentemente em revoluções e revoltas passadas: desde os comitês em Barcelona de 1936 aos Conselhos Húngaros de 1956, da revolta operária do Leste de Berlim de 1953 às enormes assembleias dos trabalhadores poloneses de 1980, desde as comissões de moradores de Portugal em 1974 à Praça Tahir do Egito em 2011 ou de outro modo às assembleias maciças do 15M. O que essas formas expressam é o gérmen do comunismo. Diante da separação e da atomização que imperam no reino do capital e em sua forma de democracia representativa – na qual votamos como idiotas, no sentido grego, isolados uns dos outros –, nos conselhos se redescobre o ser comum, o outro como aquele no qual eu me fundamento, a força e a beleza do ser e do estar juntos. Obviamente, não fetichizamos a forma-conselho – este será um dos limites fundamentais da esquerda germano-holandesa, como veremos –, porém sua forma expressa, sem dúvida, que o projeto comunista não é uma ideologia, mas sim que supõe um movimento real que tende a negar e a superar as condições existentes do capital, que a partir da contradição e do antagonismo – inseparável – da relação entre capital e trabalho assalariado, se despertam, em algumas ocasiões, movimentos de classe que tendem a negar o isolamento e as separações inerentes ao reino do capital e que, neste sentido, tendem a expressar formas de organização social que contém em gérmen um conteúdo comunista, comunitário, e que, em suas formas, revelam uma nova forma, nem alienada nem fictícia, de comunidade humana.

Como dizia Bordiga, nos períodos normais o que domina é a atomização social, a separação de um tecido social fragmentado. A revolução supõe uma ionização humana: o que eram partículas e átomos cidadãos e democráticos, separados uns dos outros, tendem a convergir e confluir em uma dinâmica conjunta, rompendo com a fragmentação social e cidadã. O importante é entender que tal dinâmica é “espontânea” ou, melhor dizendo, nasce da mesma dinâmica de autoatividade e criação social que se desprende de um processo revolucionário. Por outro lado, é normal que seja assim, posto que se o capital se fundamenta em nossas separações, qualquer processo de ascensão social que tenha um componente anticapitalista encontra sua seiva em negar tais separações.

As revoluções não são feitas, surgem. Daí o absurdo de construir partidos para a revolução. Praticamente todas as revoluções instituíram a si mesmas, na ausência do famoso partido revolucionário tão caro aos leninistas e aos trotskistas. A possibilidade do triunfo e da implantação de uma revolução comunista é outra história. O comunismo, como possibilidade, tem que nascer do processo de comunização e transformação das relações sociais e da vida cotidiana que se desdobra concomitantemente com a destruição do Estado e da luta contra o capital, o valor e suas diferentes metamorfoses. A função de uma organização comunista não é injetar a consciência de fora, isto é, o modelo leninista de O que fazer, mas sim ser um catalisador que acelera o desenvolvimento da consciência e da perspectiva comunista dentro da classe, ou seja, favorecer o processo de constituição do proletariado em classe, em partido – seguindo Marx no Manifesto Comunista. Como defendia Bordiga, seguindo Marx de 1848, o partido é a classe: a classe que se autoemancipa a si mesma, como ressaltou Marx nos estatutos da 1ª Internacional.

Consequentemente, a tarefa de uma organização comunista não é menor que no modelo leninista. Pelo contrário, é mais árdua, já que não se trata de substituir a classe, de conquistar sua confiança e aquiescência e se estabelecer em sua direção reconhecida. Trata-se de ser um órgão da classe que não se sobrepõe a ela, mas sim que tenta fazer com que a classe aprofunde por si própria a perspectiva da luta pelo comunismo. Como veremos ao longo deste longo ensaio, não se trata de uma questão semântica. Seu significado profundo, o que entendemos em última instância como comunismo – e se é uma sociedade autônoma ou heterônoma, uma sociedade longínqua ou um objetivo pelo qual se deve lutar desde já –, conecta-se profundamente à ideia da organização que tem de se construir e como se relacionar com o Estado, a política, os sindicatos, os parlamentos, as lutas imediatas, etc.


A Fundação da 3ª Internacional

Realiza seu 1º congresso em 1919 em Moscou. Nesse momento, se funda ao calor de uma onda revolucionária que se estendia pela Rússia, Finlândia, os Países Bálticos, Itália, Áustria, Hungria e diversos outros territórios que culminavam na Alemanha. Logo, será na realidade no 2º Congresso da Internacional em 1920, ao mesmo tempo em que o Exército Vermelho bolchevique se encontrava às portas de Varsóvia, quando começou a proposição de algumas das questões mais importantes que aludem ao sentido deste texto. Não é por acaso que será neste congresso em que se apresentará um dos piores textos de Lenin: Esquerdismo: a doença infantil do comunismo.

Porém, como vimos no parágrafo anterior, é essencial que nos dirijamos à Alemanha, pois o resultado da revolução neste país e as diferentes correntes que surgirão do processo alemão serão necessários para recuperar o fio histórico do qual falávamos no início de nosso trabalho.

Em novembro de 1918 explodiu a revolução alemã a partir da insurreição dos marinheiros de Kiel, que se negaram a entrar em combate, tal como queria o Comando Supremo do Exército. A criação espontânea dos conselhos alemães viu a reação imediata do SPD [5], que controlou seu processo de constituição – o que é uma advertência diante do fetichismo destas instituições, como se fossem comunistas por si mesmas.

Os revolucionários se dividirão entre anarquistas e marxistas. O peso do anarquismo alemão será importante – e confluirá em parte com as Unionen [Uniões] alimentadas pela esquerda comunista alemã, o KAPD [Kommunistische Arbeiterpartei Deutschlands; Partido Comunista Operário da Alemanha], como veremos – através da criação em 1918 da FAUD (União Livre de Trabalhadores da Alemanha [Freie Arbeiter-Union Deutschlands]). Enquanto as forças marxistas à esquerda do SPD e do USPD [6] estavam constituídas por duas correntes principais: a Liga Espartaquista em torno de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht e os IKD (Comunistas Internacionalistas da Alemanha [Internationale Kommunisten Deutschlands]) influenciados por Herman Gorter e Anton Pannekoek, que dirigiam o periódico holandês Die Tribune [A Tribuna].

Porém, na referida discussão coletiva terão particular importância as elaborações de Pannekoek, que não só ressaltará, como Rosa Luxemburgo, a importância da dinâmica espontânea do processo revolucionário, mas que extrairá e aprofundará lições decisivas desde o ponto de vista dos princípios de um programa comunista [7]. Em particular, Pannekoek recuperará as lições que Marx havia desenvolvido sobre o Estado em A guerra civil na França a partir da experiência da Comuna de Paris: o Estado não tem que ser conquistado nem tomado, mas destruído e substituído por um Estado não-Estado, sustentado pela auto-organização do próprio processo revolucionário. Obviamente, a dinâmica soviética e conselhista da revolução era um aprofundamento na linha da perspectiva revolucionária marxiana. De fato, as teses de Pannekoek chegaram a influenciar a esquerda comunista do partido bolchevique, Bukharin e Piatakov, que as fizeram suas. Em princípio, o (bom) livro de Lenin, O Estado e a revolução, era uma polêmica contra Bukharin e Pannekoek e seus desvios “anarquistas”, porém Lenin se convenceu de seus argumentos e fez suas as teses deles [8]. Com isto, o que queremos ressaltar é que os principais dirigentes da esquerda comunista alemã e holandesa não eram uns recém-chegados à política revolucionária, como se depreende, com malícia, das acusações do panfleto leninista, Esquerdismo: a doença infantil do comunismo.

O panfleto leninista, escrito pouco antes das sessões do 2º Congresso, supõe uma autêntica tergiversação das posições das esquerdas. Em todo caso, qual é o cerne do debate? Algo com que todos, o centro dirigente da Internacional Comunista (Lenin, Trotsky, Bukharin, Zinoviev, etc.) e as esquerdas (KAPD, PCdI, Sylvia Pankhurst, etc.) estavam de acordo: existe um refluxo da dinâmica revolucionária. A onda iniciada em 1917 começou sua lenta e progressiva queda. O que o centro da 3ª Internacional pretendia fazer era evitar tal refluxo e para isso levou a cabo uma série de medidas táticas, conotadas todas elas por atingir a maioria da classe operária antes da revolução.

É a isso que vão se opor todas as esquerdas, a que, sem ser um período revolucionário, se lute para se alcançar a maioria no interior da classe. Consideram que as táticas leninistas provocam a dissolução do programa comunista dentro do velho reformismo, dentro da sociedade do capital. A classe ou é revolucionária ou não é nada e as revoluções não são feitas: elas surgem. Com relação a isto, todas as esquerdas estão de acordo. Neste sentido, as intenções de forçar uma situação de modo voluntarista só conduzem a desorientar os comunistas no momento em que voltar a surgir uma situação revolucionária ou de ascensão de classe, além de desorientar as mesmas massas. O que os revolucionários têm de fazer na época de refluxo das lutas é manter uma coesão programática que seja o fio do presente que prepara a futura ascensão comunista. Vejamos como Pannekoek resume perfeitamente as diferenças em um texto memorável:

Uma destas tendências [a da esquerda, N. do A.] quer esclarecer e revolucionar os espíritos com a palavra e pela ação e, consequentemente, tenta opor do modo mais taxativo os princípios novos às ideologias antigas; a outra tenta ganhar para a ação prática as massas que ainda se mantêm à margem e pretende, na medida do possível, evitar o que pode contrariá-las e, mais que as diferenças, sempre destaca o que pode unir. A primeira aspira à distinção clara e precisa, a segunda aspira à reunião das massas; se deveria designar a primeira de radical e a segunda de oportunista [9].

Pannekoek resume de modo perfeito as diferenças. Uma tendência dá muito mais importância aos fatores conscientes do processo subjetivo da constituição da classe: para isso, é fundamental como surgem os novos princípios que põem em questão as formas de organização da 2ª Internacional (parlamentos, democracia, sindicatos, hierarquia dos chefes diante das massas nos partidos, etc.); enquanto a outra se adapta a elas e põe mais ênfase no que as une do que nas diferenças, tratando de adaptar-se a elas tal e como são em um período de refluxo. Para as esquerdas isto é oportunismo, já que o proletariado como tal só existe através de sua luta, de seu combate, de sua força convergente a partir de um objetivo comum, subversivo. De fundo, há uma diferença basilar na concepção da revolução e do comunismo:

Sua natureza [a do oportunismo, N. do A.] consiste em considerar somente o momento, e não o desenvolvimento ulterior, em manter-se na superfície dos fenômenos em lugar de se preocupar com as causas determinantes profundas. Quando não tem forças suficientes para realizar de imediato um objetivo, o oportunismo não tenta fazer com que as forças cresçam, mas estuda o meio de realizar o objetivo por outras vias, contornando as dificuldades. Dado que seu fim é o êxito momentâneo, o oportunismo sacrifica as condições de um êxito futuro e duradouro […], mas apenas o que se adquire então como clareza, perspicácia, coesão, autonomia das massas será o que tem valor duradouro como base da evolução ulterior em direção ao comunismo [10].

Pannekoek volta a resumir perfeitamente as diferenças. O oportunismo leninista vive do presente e de seu êxito contingente, mas não pensa qual é sua possível implantação duradoura em uma perspectiva comunista. A esquerda não duvida que seja possível desenvolver lutas sociais em conjunto com a esquerda reformista – por exemplo, as que se viveram em 1923 na Alemanha sob os governos do SPD e do KPD na Turíngia e na Saxônia –, o que afirma é que são lutas que não vão transcender, no futuro, em uma perspectiva comunista. Já que prefere, à aparência da luta imediata, seu desenvolvimento e implantação numa perspectiva de futuro, a esquerda trata de pensar o presente desde o futuro da sociedade comunista, e o oportunismo leninista e trotskista submete estes princípios e objetivos à flexibilidade da tática, de cada momento concreto, de cada conjuntura. O leninismo é um pensamento da conjuntura constante e permanente. E, não obstante, para os comunistas revolucionários há poucas conjunturas [11]. As conjunturas surgem, parafraseando Bordiga, quando se rompe o silêncio, quando a teoria devém revolução social. O cerne do profundo limite leninista consiste no fato de que ele teoriza que em “nossa tática é necessária a máxima flexibilidade”, pois se trata de “levar as amplas massas – hoje, todavia, em sua maior parte adormecidas, apáticas, rotineiras, inertes, sem despertar – a esta nova posição” [12]. Isto é, alcançar a maioria da classe quando essa se encontra apática, rotineira, inerte, quando não é classe em combate, quando não é classe em absoluto, no sentido histórico e subjetivo, o que é um meio seguro de fracasso, de derrota, de adaptação oportunista às formas burguesas do capital, já que não se pode separar a passividade social da ideologia que reproduz a “classe social” como categoria do capital nesse momento. O leninismo, como afirma Camatte [13], é uma ideologia idealista, que separa ser e consciência, corpo e mente. Pretende injetar de fora a “consciência de classe”, patrimônio dos revolucionários profissionais. Não entende que é o ser – em movimento, em revolução – quem cria a consciência. O leninismo, que crê ter o monopólio da consciência efetiva, se põe como um demiurgo por sobre as massas, jogando como um aprendiz de bruxo. Como indica Camatte:

Só com a mobilização do proletariado para a luta contra o modo de produção capitalista se produz a consciência, se faz efetiva, tanto para a classe como para alguns elementos (não separados dela) que haviam reconhecido e defendido a teoria em sua invariância. [14]

Daí o equívoco da obstinação leninista de intervir constantemente, em épocas de passividade social, no terreno do inimigo. É neste sentido que Lenin expõe, por exemplo, que há de se intervir nas divisões e nas crises do aparato político burguês para apoiar “os atritos, as disputas, os conflitos e o divórcio total” dentro da política burguesa, para logo apoiar um governo trabalhista contra o governo liberal, porque depois será a vez dos comunistas, se estes são inteligentes e não doutrinários. Para eles, a revolução é um assunto de tática, de maquiavelismo, de inteligência política. O leninismo é uma ideologia da confusão e das manobras [15]. Na realidade, desta maneira o que se provoca é uma enorme confusão diante da perspectiva possível da perspectiva comunista. Gera-se confusão em lugar de esclarecimento.

E é que, além disso, o leninismo subestima enormemente as formas políticas do capital. Lenin chega a dizer de modo polêmico que “o doutrinarismo de esquerda obstina-se em rechaçar incondicionalmente determinadas formas antigas, sem ver que o novo conteúdo encontra seu caminho através de todos os tipos de formas e que nosso dever de comunistas consiste em dominar todas” [16]. Nem toda forma se adapta a um conteúdo comunista, pelo contrário, somente formas que expressem autoatividade social se adaptam, potencialmente, a ela – ainda que sem fetichizar, por exemplo, os conselhos, como fez a esquerda germano-holandesa. Porém, as formas políticas do mundo do capital implicam inevitavelmente num conteúdo mercantil. Do mesmo modo que não se pode utilizar a mercadoria e o dinheiro contra a lógica do capital – o grande erro do proudhonismo –, não se pode se voltar o Estado, os partidos políticos e os sindicatos como aparatos do Estado contra a mercadoria e o capital. Não se tratam apenas de formas cooptadas por burocracias que as põem a serviço da burguesia. Tais formas já são parte do movimento do capital, de sua metamorfose. O Estado moderno, capitalista, é o resultado da separação e da fragmentação social provocadas pela produção e pelo mercado capitalista – entre empresas diferentes, entre trabalhadores que competem entre si –; essa separação, essa guerra de todos contra todos, implica que a única comunidade “universal” que pode subsistir é representativa, fictícia… Daí o funcional à opressão mercantil. Nos encontramos diante de uma comunidade cidadã que vive não só separada no terreno da produção material da vida, mas também no mundo simbólico da política e da representação cidadã. Todos somos cidadãos iguais perante a lei, porque na vida material pertencemos a classes antagônicas, umas das quais – o proletariado – não pode se reconhecer como tal senão para negar ao capital e a si mesma. Dentro do mundo do capital só pode se reconhecer parcialmente, de modo corporativo e sindical, como mercadoria que vende sua força de trabalho. Os sindicatos são uma mediação necessária com o capital neste sentido. Partidos, parlamentos, sindicatos… e o Estado são metamorfoses, por conseguinte, da dinâmica iniciada pelo capital: metamorfose da separação das pessoas dos meios de reprodução e produção da vida. A política e a democracia codificam e tornam coesa essa separação. Existem porque essa separação também existe. Rompê-la é subverter a política e o Estado. Por isso, diferentemente do que diz Lenin, não se trata de  sujar as mãos de modo inteligente, de utilizar estas formas para poder fazer com que se estenda dentro delas um conteúdo que ajude a subversão social. A função determina o órgão. A função da política é inseparável da reprodução material e ideológica do capital, do mesmo modo que a forma do valor é inseparável de seu conteúdo: neste caso, o trabalho abstrato é o resultado da separação dos meios de produção e reprodução da vida, ou seja, do processo histórico de expulsão de suas terras pelo qual passaram os camponeses medievais e a destruição de suas comunidades seculares, o que implica que a expressão social da riqueza só pode ocorrer de modo mediado, através do mercado. Também a forma da política é inseparável do dito conteúdo. É uma forma a priori, representativa e fictícia, porque faz abstração das condições materiais de existência – condições de exploração e antagonismo social, de subalternidade da vida –, e é por abstrair tais condições materiais que pode reproduzi-las. No feudalismo, o senhor era ao mesmo tempo o detentor dos direitos econômicos e dos jurídicos e políticos. No mundo do capital, a separação entre privado e público que dá origem à política moderna faz o Estado pressupor como algo natural o funcionamento do capital e de suas dinâmicas. Do mesmo modo que a riqueza só pode se expressar de modo mediado através do mercado, a fragmentação social que a individualização moderna implica, o fato de todos sermos cidadãos separados uns dos outros, faz com que a comunidade humana e material não possam exercer sua universalidade de modo autônomo e imanente. Exige-se uma comunidade fictícia e alienada, o Estado, que é quem reconstrói artificialmente através da soberania e da representação a comunidade social. Essa é a essência da política moderna. Por outro lado, a separação entre público e privado faz precisamente com que os fundamentos materiais do capital sejam naturalizados, obscurecidos e coisificados. Pode-se redistribuir os efeitos da dinâmica mercantil, mas sem nunca pôr em questão a produção do capital. Toda ascensão social se confronta com essa separação codificada que é o Estado e a política democrática. Uma forma que, longe de poder ser utilizada com inteligência – Lenin dixit –, é uma das mais obstinadas inimigas do movimento comunista, do movimento emancipador.

Então, o grande limite do leninismo é a incapacidade de entender os conteúdos inquestionáveis – deterministas – da política burguesa. Sua forma é inseparável de um conteúdo burguês [17]. A função determina o órgão. A participação neste tipo de instituição é inseparável de seus conteúdos burgueses. Daí a falácia leninista de poder utilizá-los em benefício de um discurso emancipatório, falácia que também nunca se cumpriu: jamais se verificou a estratégia leninista no teste que mais gostam de repetir, o teste dos fatos. Pelo contrário, a burguesia utilizou este tipo de organismo, em todos os momentos e em todo lugar, como mecanismo de integração dos conteúdos subversivos que brotam permanentemente nesta sociedade, a partir do antagonismo entre capital e proletariado. A política subsume, integra magistralmente tal antagonismo. Definitivamente, com a tática leninista assistimos à fábula do caçador caçado, de como “a inteligência é oportunista” (Bordiga), isto é, a presumida inteligência tática, sem princípios e disposta a sujar as mãos, recepciona totalmente a lógica que pretende combater.

Acontece que, como dissemos anteriormente, as possibilidades revolucionárias surgem em outro terreno, no terreno dos terremotos sociais, da convergência e da ionização humana de partículas sociais que anteriormente estavam enfrentadas entre si e que a partir da experiência da opressão, da luta, de uma lenta maturação subterrânea da consciência irrompem na cena autêntica da vida coletiva pondo em questão a separação constitutiva do mundo do capital. É então que o proletariado começa a se constituir em classe, quando os revolucionários podem atuar como catalisadores do processo social para que a classe acelere a perspectiva consciente de sua autoemancipação. Como indica Pannekoek no texto já citado:

Da mesma maneira que um pequeno partido radical não pode realizar uma revolução, tampouco um grande partido de massas ou uma coalizão de partidos diversos pode realizá-la. Ela surge espontaneamente das massas; as ações decididas por um partido revolucionário às vezes podem dar o impulso (ainda que isto aconteça raramente), porém, as forças decisivas se encontram em outro lugar, nos fatores psíquicos, no fundo do subconsciente das massas e no fundo dos grandes acontecimentos da política mundial. A tarefa de um partido revolucionário consiste em divulgar antecipadamente noções claras de maneira que em todas as partes dentro da massa se encontrem elementos que saibam o que devem fazer em tais momentos e saibam julgar por si mesmos a situação [18].

Pannekoek volta a ser novamente de uma clarividência invejável. As revoluções não são feitas nem por um pequeno partido – como era o KAPD, com 40 mil militantes no momento de seu nascimento em 1920 – nem por partidos muito maiores como foi o VKPD [19]. Acontece que as revoluções brotam espontaneamente das massas. As revoluções surgem. O comunismo tem que ser um plano consciente da espécie – para usar as palavras de Bordiga. As forças decisivas da possível implantação de uma dinâmica comunista se encontram na consciência dos objetivos e dos princípios que as mesmas massas proletárias alcançam na revolução. A função dos comunistas não é substituir tal dinâmica, mas ser um catalisador que permite que o mesmo sujeito da história – a classe, que é quem se constitui em partido – se aprofunde em tal dinâmica consciente. É dessa forma que a tática leninista não é senão, na melhor das hipóteses, um enorme elemento de confusão com seu taticismo heterônomo, propriedade de um gabinete da revolução – o partido de vanguarda – que é quem conhece a história de antemão e faz com que as massas inconscientes e amorfas tomem o bom caminho devido a sua clarividência – a dos intelectuais que injetam a consciência de fora. Do engano só brotam enganos e da falta de clareza, confusão. Na vida real – como Umberto Terracini do PCdI respondeu a Lenin –, é inútil dizer uma coisa – como, por exemplo, que as massas confiem em uma unidade com a socialdemocracia, em participar dos sindicatos reacionários, dos parlamentos burgueses – para que elas façam outra coisa, porque na realidade isso é um gancho lançado pela vanguarda clarividente. A perspectiva leninista parte da impotência constitutiva da classe. E dessa impotência só surge impotência. De uma tática heterônima não pode surgir nenhum processo autônomo de autoemancipação social.

As esquerdas, pelo contrário, confiam que a dinâmica de emancipação social surge da capacidade de criatividade, da autoinstituição social do proletariado, demonstrada permanentemente em todas as explosões revolucionárias e em toda revolta autêntica. O programa comunista busca um fim – a autoemancipação da espécie – através de princípios apropriados – a autonomia e a capacidade instituinte da classe – e as táticas do programa comunista têm de ser harmônicas a tais objetivos e a princípios.

Isso requer separar-se das táticas herdadas da 2ª Internacional que, como insistem Gorter e Pannekoek, continuam impregnando as táticas da maioria da 3ª Internacional. Continuemos raciocinando junto de Pannekoek:

Enquanto as massas permanecerem amorfas, pode parecer que trabalho semelhante é ineficaz; porém, a clareza dos princípios atua interiormente em muitas pessoas que primeiramente se mantêm afastadas da revolução e mostra sua força ativa dando-lhes uma diretriz clara. Se, por outro lado, tenta se formar um grande partido, edulcorando os princípios, fazendo coalizões e concessões, quando a revolução chega se dá a elementos duvidosos a possibilidade de adquirir influência sem que as massas possam se aperceber de sua insuficiência.

“Enquanto as massas permanecerem amorfas” qualquer atividade comunista no imediato é ineficaz, porque, além disso:

A adaptação aos pontos de vista tradicionais é uma tentativa de conquistar o poder sem que se verifique a condição prévia, a subversão das ideias. Isto atua, pois, no sentido de reter o curso da revolução. Além disso, é uma ilusão, pois as massas, quando se põem em revolução, podem captar apenas as ideias mais radicais; pelo contrário, enquanto a revolução não chega, não captam mais do que as ideias moderadas. Uma revolução é, ao mesmo tempo, um período de comoção das ideias das massas; cria as condições de tal comoção e está condicionada, por sua vez, por ela; e por isto, pela força dos princípios claros que têm de transformar o mundo inteiro, que a direção da revolução recai no partido comunista [20].

Pannekoek continua ainda imerso em um paradigma no qual a direção da revolução recai no partido comunista [21], porém, na realidade, tudo na citação, em seu pensamento e em sua prática vai para outro sentido. As revoluções supõem um enorme cataclismo social, o qual provoca uma revolução da vida e da prática humana e de classe, uma aceleração da consciência. Como indicava o mesmo Trotsky, nos tempos de normalidade social, as décadas parecem dias, mas, durante a revolução social, os tempos e os espaços se dilatam e cada dia vale por uma década de normalidade social, os tempos se aceleram mediante o calor da comunização das relações sociais e das vidas. É este o espaço fértil para que germine uma perspectiva comunista. Então, nesses momentos em que os tempos se dilatam com uma força e criatividade sem par, é quando se tem de lançar por inteiro à ação – como salientava Bordiga –, porém para isso é fundamental se encontrar “armado” com um programa comunista composto de objetivos e princípios claros, objetivos e princípios que têm de ser apreendidos e desenvolvidos pelas multidões em revolução. Nesses momentos de revolução social descobre-se a virtude do isolamento teórico prévio, quando se rompe o silêncio e a prática humana, quando se faz teoria na revolução. Nesses momentos nos quais tudo está em jogo, é fundamental lutar de maneira intransigente para afirmar uma perspectiva multitudinária que destrua os poderes mercantis e políticos do capital, afirmando o poder autônomo das multidões proletárias em revolução e reconhecendo que a finalidade é a dissolução de todas as classes sociais, a sociedade comunista. Se previamente se viveu na confusão e na conivência permanente com as instituições políticas e econômicas do capital, é impossível improvisar a força e a clarividência necessária. Este é outro dos grandes problemas do leninismo, o que ajudou, além disso, com que toda uma geração de quadros da 3ª Internacional se convertesse em líderes dos partidos stalinistas no final dos anos 1920 e 1930 [22].

A revolução comunista é uma grande descontinuidade com o passado opressor. O cisma prévio dos comunistas prepara o futuro no momento em que se fertiliza com as multidões em revolução. O afastamento do presente é o que garante o futuro do amanhã. O partido comunista é a linha do futuro no presente e é fundamental manter tal fio, a contracorrente, porque é a única maneira de reconhecermos a maré quando ela estiver a nosso favor e tivermos que nos deixar arrastar por ela.


Sobre a flexibilidade tática

A vida na nova humanidade está na revolução,
a revolução nasce do cisma.
Amadeo Bordiga

Como vimos ao longo deste texto, do que todas as esquerdas da 3ª Internacional acusavam o centro da direção moscovita da Internacional era de uma flexibilidade tática que ia contra a natureza comunista dos partidos e das possibilidades de desenvolvimento da revolução proletária na Europa Ocidental. O importante era se ater aos princípios programáticos, a fim de poder aproveitar as oportunidades que viriam na esteira de posteriores ascensões sociais e de classe. O pior que se poderia fazer nesse momento eram adaptações oportunistas dos princípios. Em relação a isto, Amadeo Bordiga era particularmente claro:

Mas o pior de todos os remédios que se pode utilizar para reparar as situações desfavoráveis seria pôr em questão periodicamente os princípios teóricos e organizativos em que se baseia o partido, com o objetivo de modificar a extensão de sua zona de contato com as massas. Nas situações em que diminui a predisposição revolucionária das massas, o que muitos defendem, como levar o partido até as massas [ver Lenin, N. do A.], equivale na realidade a desnaturalizar o caráter do partido, a expulsar precisamente aquelas qualidades que são as adequadas como vetores que influem sobre as massas no momento em que retomam o movimento ofensivo [23].

Como podemos comprovar, as orientações de Bordiga e do Partido Comunista da Itália (PCdI) são muito similares, nas questões-chave, à esquerda germano-holandesa. É fundamental manter a intransigência em torno dos princípios teóricos e programáticos. Desviar desse caminho é o pior serviço que um revolucionário pode fazer à perspectiva comunista, já que supõe desnaturalizar o caráter do partido e proporcionar uma ajuda inestimável à burguesia e à manutenção do status quo. É necessário saber manter sempre a perspectiva do que é essencial e não se deixar desviar pelo contingente:

O movimento comunista internacional tem de estar composto não somente por aqueles que se encontram firmemente convencidos da necessidade da revolução, que estão dispostos a lutar por ela à custa de qualquer sacrifício, mas por aqueles que estão decididos a continuar em um terreno revolucionário quando as dificuldades da luta mostrarem que a meta é mais áspera e distante [24].

Ou seja, ser comunista é uma escolha muito difícil. Não basta a simples convicção e o sacrifício, são necessárias uma solidez e intransigência teóricas que ajudem a se manter no terreno da revolução quando a força das massas reflui. Em uma época de revolução, muitas pessoas, seguindo a onda, se dirigem à perspectiva revolucionária, mas apesar disso são poucos os que se mantêm quando a onda vai contra a corrente. Por isso é fundamental não se deixar cegar por questões contingentes nem tratar – a todo custo – de levar o partido às massas quando estas se encontram atomizadas e passivas. É necessário defender a perspectiva programática do comunismo para que, quando retornar a ionização social da materialidade revolucionária, nós comunistas possamos ser não só um produto passivo, mas sim um fator ativo, um catalisador do aprofundamento imanente por parte da classe em tal perspectiva.

Se as possibilidades revolucionárias forem menos imediatas, não correremos por um momento o risco de nos distrairmos da necessidade de continuar tecendo o fio da preparação (comunista) nem de cair, pelo contrário, na solução de outros problemas contingentes, o que só beneficiaria a burguesia [25].

Bordiga constrói uma relação recíproca, de maior a menor importância, seguindo uma rigorosa hierarquia entre teoria, fins, princípios, programa, tática e organização. Veja que a organização é a última em importância ou, visto de outro modo, a síntese entre múltiplas determinações abstratas: nela vivem a teoria, os fins, os princípios, o programa e a tática comunista. A organização comunista só pode existir como organismo vivo de seu programa, daí a parte complicada da construção das organizações revolucionárias. É importante que observemos que a tática tem de estar subordinada ao programa comunista, aos princípios e aos fins. Não se pode aplicar uma tática contrária aos princípios, por exemplo. Por isso a importância da batalha das esquerdas em relação à flexibilidade leninista. Por sua vez, a teoria marxista não vive fora da luta por alguns fins – a comunidade livre das mulheres e dos homens, a sociedade na qual desaparecem as classes sociais – e por alguns princípios que foram sendo adquiridos ao longo da secular luta proletária – por exemplo, a necessária destruição do Estado burguês, ou o fato de que a perspectiva comunista não pode existir fora de uma dinâmica revolucionária de massas. Tampouco pode prescindir do programa, ou seja, a bússola e o mapa que nos orienta para alcançar os objetivos e os princípios do comunismo na prática das multidões em revolução. O programa vai se enriquecendo à luz das experiências passadas. Por exemplo, nesta época foi decisivo ir esclarecendo que os comunistas não podem participar de parlamentos burgueses ou de sindicatos, ou que a questão nacional é inseparável do fortalecimento político e material das frações da burguesia e do capital. Por outro lado, na prática e na teoria comunistas a questão das táticas, as questões concretas que em contextos específicos se apresentam aos revolucionários, também estão presentes. Muitas questões que nessa época Bordiga considerava táticas, hoje em dia têm que fazer parte do programa comunista, como o abstencionismo, já que fazem parte do caminho que tem de traçar o fio comunista tecido pelo proletariado que deveio classe. Por fim, a organização: uma parte fundamental da batalha das esquerdas comunistas europeias foi contra uma autonomização do tático, do contingente, que dissolvia no reino espontâneo do fetichismo do capital a perspectiva comunista, seus princípios e seu programa.

Bordiga criticou sempre a ideia do “mal menor” como uma infecção mortal sobre “o corpo da doutrina e da vontade de ação” dos comunistas. E o fato é que, na realidade, é trivial distinguir momentos melhores ou piores desde a perspectiva da autoemancipação proletária – isto é, a de sua negação enquanto classe –, já que:

A ofensiva capitalista contra o proletariado existe desde antes de meu nascimento e desde antes do nascimento do movimento proletário. É o modo de ser do capitalismo. A simples presença destes asquerosos que administram a economia e a sociedade de modo mercantil é já uma ofensiva e nós estamos obrigados a viver sob esta opressão. Que tipo de ofensiva têm que lançar os burgueses além daquela da qual necessitam cotidianamente para preservar o capitalismo? A luta de classes é um fato permanentemente ofensivo. Existe um momento da história em que a ofensiva se inverte, porém este momento precisa, como condição essencial, que exista um partido autenticamente comunista. O inverso não é certo. Não se pode dizer: temos o partido e, portanto, lançamos a ofensiva. O partido é condição necessária, mas não suficiente. [26]

A ofensiva do capitalismo é permanente, mas às vezes se dá uma inversão da práxis que rompe com o fetichismo mercantil. Diferentemente da doutrina trotskista, para Bordiga é um contrassenso dizer que falta o partido para resolver “a crise da humanidade” ou que com a existência de tal partido poderia se levar a cabo uma revolução. As revoluções não são feitas, elas surgem. O partido é um órgão da classe, se alimenta das ascensões e dos combates da classe e pode ser um fator ativo só a partir da autoatividade da classe, porém para isso é necessário que a revolução surja:

São necessárias aquelas condições que nós definimos, pegando emprestada a terminologia da física, como “polarização social”, assim como ocorre nos campos elétricos, nos sólidos cristalinos, na ionização de um gás. O número dos elétrons e dos átomos interessados não tem importância para desencadear o evento, mas é necessário que se produza para se expandir quantitativamente. A conquista da assim chamada maioria se dá depois de se verificar as condições iniciais da teoria, ação e ambiente. Podemos experimentar todas as táticas que quisermos sempre e quando em nosso slogan revolucionário não existirem palavras que possam estar em contraste, que desrespeitem ou simplesmente se esqueçam de nossos princípios. Por isso, não queríamos que se pusesse [nos debates da 3ª Internacional, N. do A.] a condição da maioria. Poderá se verificar a “conquista da maioria”, mas não é uma ponte pela qual é necessário se passar obrigatoriamente antes de a revolução ter ionizado as moléculas sociais. […] Hoje somos muitos? Somos poucos? De que importa se conseguimos estar na linha que une centenas de milhões de homens que lutaram com as centenas de milhões que lutarão? Este é o verdadeiro problema, o arco histórico que conjuga as revoluções do comunismo originário com o comunismo desenvolvido. [27]

O importante para uma organização comunista é unir-se ao programa histórico de nossa perspectiva, o que reconduz, como diria Walter Benjamin, às gerações do passado com as possibilidades da redenção emancipadora. O partido é “a linha do futuro no presente”. Isto que é decisivo.

Como vimos, existia uma comunhão de princípios e intenções entre a esquerda comunista germano-holandesa e os italianos e a eles teriam que se unir outras tendências da esquerda comunista, como a britânica de Sylvia Pankhurst ou a búlgara. Isto não quer dizer que sobre uma série de questões – por exemplo, os sindicatos ou a questão nacional nas periferias do capitalismo – não houvesse diferença entre eles. Estas diferenças em boa medida aumentaram nas correntes formais que afirmavam pertencer a uma das principais alas da esquerda comunista. Os germano-holandeses não veem em Bordiga senão um ultraleninista, ao passo que a esquerda italiana vê neles um conselhismo que fetichiza a forma da auto-organização em detrimento do conteúdo do programa comunista – sem entender que, precisamente neste período do qual estamos falando, Gorter, Pannekoek, etc. construíram um partido como o KAPD. Não obstante, houve organizações e personalidades mais individuais que trataram de realizar uma confluência entre ambas as correntes, definindo – nas diferenças e perspectivas – a legitimidade da existência de uma esquerda comunista internacional. Esta opção convence-nos.

Além disso, nos anos 20, quando, todavia, as perspectivas teóricas não tinham sido definidas com rigor, a confluência era muito evidente. Il Soviet [O Soviet], o periódico dirigido por Bordiga em Nápoles, publicou o texto de Pannekoek citado aqui amplamente sobre El desarollo de la revolución mundial y la táctica de los comunistas [O desenvolvimento da revolução mundial e a tática dos comunistas]. De fato, e como se lembram Jean Barrot e Denis Authier [28], o Il Soviet não publicava só Pannekoek, mas também Gorter e Pankhurst [29]. Por outro lado, não publicaram nenhum artigo de Lenin e, dos russos, publicavam sobretudo os esquerdistas, como Alexandra Kollontai. Isto era o que Bordiga dizia sobre Pannekoek para apresentar o artigo, já mencionado, que publicaram na Il Soviet:

Como se sabe, o camarada Lenin, em sua admirável atividade, encontrou ultimamente tempo para se dedicar, em um opúsculo especial escrito na véspera do Congresso de Moscou, ao movimento radical dentro do comunismo internacional, definindo-o como doença infantil do comunismo. Neste opúsculo, são colocados em destaque especialmente nossa infantilidade e a de nosso periódico; e depois das palmadas do padre, nos resignamos a aguentar pacientemente as provocações dos queridos irmãos de nossa casa, que não nos faltarão.

Porém, da mesma maneira que para as crianças impertinentes que foram punidas nunca lhes falta um tio protetor para consolá-las com alguma guloseima, aqui nós também recebemos uma guloseima em forma de grande artigo – que será editado também em opúsculo – publicado com o título indicado acima.

Achamos oportuno lembrar que Pannekoek afirmou nitidamente desde 1912, antes de Lenin, o que se converteu em uma referência do comunismo internacional: a destruição do Estado democrático-parlamentar como primeira tarefa da revolução proletária. Lembraremos também que uma testemunha competente e pouco suspeita, Karl Radek, definiu Pannekoek como “o espírito mais claro do socialismo internacional” [30].

A força e a ironia das palavras falam por si mesmas. Mais tarde será a esquerda comunista internacional no exílio a que começa, através da revista Bilan, a realizar essa confluência, influenciada por algumas das posições da esquerda germano-holandesa – em relação à Rússia, ao Estado, aos sindicatos, etc. –, ainda que vá ser a revista dirigida por Marc Chiric nos anos 40 e 50, Internationalisme [Internacionalismo] – órgão da Gauche Communiste de France [esquerda comunista da França] –, quem realizará com mais força tal síntese.

Em todo caso, ao longo deste texto nós tentamos deixar clara a questão essencial deste debate sobre táticas, estratégia e perspectiva comunistas nos nascimentos da 3ª Internacional. Na realidade, as esquerdas comunistas, em sua pluralidade, não eram defensoras infantis de uma ofensiva contínua, de uma guerra de movimentos cega e visceral – como mais tarde Gramsci acusaria não só a Bordiga ou a Pannekoek, mas também a Trotsky e Rosa Luxemburgo, realizando um polpettone [31] indigesto. Na realidade, a esquerda comunista internacional é uma esquerda ocidental que entende, como Gorter lembra permanentemente em sua Resposta ao Camarada Lenin [Carta Aberta], que nos países do capitalismo avançado não se pode reproduzir as táticas que os bolcheviques levaram a cabo na Rússia. Não são infantis, muito pelo contrário. Reconhecem, diferentemente de Lenin, a maior fortaleza das instituições políticas da burguesia no Ocidente. Têm consciência do determinismo a que essas instituições implicam e sabem que nem todas as formas podem ser utilizadas. Como Bordiga lembrava a Lenin nos debates de Moscou, o parlamentarismo ocidental é virulento [32].

Os companheiros russos não podiam nem sequer imaginar, pois não experimentaram o que era o parlamentarismo. Não podiam imaginar o rol de coesão social e desvio das energias revolucionárias que a democracia parlamentar representou. Bordiga viveu isso na própria carne durante o bienio rosso [biênio vermelho] (1919-1920). Giolitti, o político liberal burguês e bicho papão italiano sabia perfeitamente: 150 deputados socialistas no parlamento. Medo? Nenhum. Que fossem 300.

Para terminar nosso artigo, queremos restituir a força do resumo que Gorter leva a cabo a respeito das diferenças entre as esquerdas e o centro leninista:

Para a internacional, a revolução europeia ocidental se desenvolverá conforme as leis e a tática da revolução russa.

Para a Esquerda, a revolução europeia ocidental tem leis que lhes são próprias e se aterá a elas.

Para a Internacional, a revolução europeia ocidental estará em condições de fazer compromissos e alianças com partidos de pequenos camponeses e pequeno-burgueses, inclusive com partidos da grande burguesia.

Para a Esquerda isso é impossível.

Segundo a Internacional, haverá durante a revolução na Europa Ocidental “cisões” e rachas entre os partidos burgueses, pequeno-burgueses e dos camponeses pobres.

Segundo a Esquerda, partidos burgueses e partidos pequeno-burgueses formarão, até o fim da revolução, uma frente única.

A 3ª Internacional subestima o poder do capital europeu ocidental e norte-americano.

A Esquerda concebe sua tática em função deste enorme poder.

A 3ª Internacional não vê de maneira alguma no capital financeiro, no grande capital, o poder capaz de unificar todas as classes burguesas.

A Esquerda elabora sua tática com relação a esse poder.

A 3ª Internacional, ao não admitir que o proletariado da Europa Ocidental se encontra reduzido a suas próprias forças, não tenta desenvolver espiritualmente este proletariado que, não obstante, continua em todos os domínios vivendo sob a influência da ideologia burguesa, e adota uma tática que deixa persistir a submissão às ideias da burguesia.

A Esquerda adota uma tática que visa em primeiro lugar emancipar o espírito do proletariado.

A 3ª Internacional, ao não ver a necessidade de emancipar os espíritos, nem a união de todos os partidos burgueses e pequeno-burgueses, baseia sua tática em compromissos e “cisões”, deixa substituir os sindicatos e tenta conquistá-los.

A Esquerda, pretendendo em primeiro lugar a emancipação dos espíritos e convencida da unidade das formações burguesas, considera que é necessário acabar com os sindicatos e que o proletariado necessita de melhores armas.

Pelas mesmas razões, a 3ª Internacional não ataca o parlamentarismo.

A Esquerda, pelas mesmas razões, quer a abolição do parlamentarismo.

A 3ª Internacional deixa a escravidão ideológica no Estado em que estava na época da 2ª.

A Esquerda pretende extirpá-la dos espíritos. Corta o mal pela raiz.

A 3ª Internacional, ao não admitir a necessidade de em primeiro lugar, na Europa Ocidental, emancipar os espíritos e, tampouco, a unidade de todas as formações burguesas em tempos de revolução, tenta agrupar as massas enquanto massas, então, sem se perguntar se são verdadeiramente comunistas, nem orientar sua tática de maneira que o sejam.

A Esquerda quer formar em todos os países partidos que reúnam unicamente comunistas e concebe sua tática em consequência disto. É através do exemplo destes partidos, pequenos ao começar, que ela quer transformar em comunistas a maioria dos proletários, em outras palavras, as massas.

A 3ª Internacional considera, pois, as massas da Europa Ocidental um meio.

A Esquerda considera-as como um fim.

Por causa desta tática – perfeitamente justificada na Rússia –, a 3ª Internacional pratica uma política de chefes.

A Esquerda, pelo contrário, pratica uma política de massas.

Por causa desta tática, a 3ª Internacional leva à ruína não só a revolução europeia ocidental, mas também e sobretudo a revolução russa.

A Esquerda, pelo contrário, graças a sua tática leva o proletariado mundial à vitória.

A fim de permitir aos operários compreenderem melhor nossa tática, vou resumir também minha exposição sob a forma de breves teses, a serem lidas, é claro, à luz do todo:

A tática da revolução europeia ocidental deve ser absolutamente diferente da tática da revolução russa.

Pois entre nós o proletariado está só.

É necessário, então, fazer a revolução completamente sozinho, contra todas as outras classes.

Portanto, a importância das massas proletárias é proporcionalmente maior e a dos líderes menor que na Rússia.

O proletariado deve dispor, para fazer a revolução, das melhores armas de todas.

Uma vez que os sindicatos são armas ineficazes, é necessário substituí-los ou transformá-los por meio de organizações de fábrica [33] convocadas a se unificarem.

Ao se encontrar o proletariado restringido a fazer a revolução só e sem ajuda, é necessária a mais elevada evolução das inteligências e dos corações. Por isso é melhor não recorrer ao parlamentarismo em tempos de revolução [34].


Notas

[1] Tradução de Thiago Papageorgiou do artigo El pasado de nuestro ser, disponível no website do Grupo Barbaria. Inclui entre colchetes a tradução do título das obras além da tradução de nomes de revistas, partidos e grupos; comentários do autor com comentários dentro das citações são indicados com N. do A. entre colchetes. Todas as citações foram traduzidas a partir do espanhol. [N. T.]
[2] O presente texto foi escrito e publicado em setembro de 2016.
[3] Ver nossa publicação: Auge y estallido de una burbuja. Sobre Podemos y otras consideraciones contra el Estado [A ascensão e o estouro de uma bolha. Sobre o Podemos e outras considerações contra o Estado].
[4] Veja a respeito da carta de J. C. publicada na revista italiana Il Lato Cattivo [O Lado Nocivo] e disponível aqui [A Propósito da Crítica do Valor: Uma Carta a Anselm Jappe]. Ver também o artigo de Federico Corriente, “Jacques Camatte y el eslabón perdido de la crítica social” [Jacques Camatte e o elo perdido da crítica social], Salamandra, nº 21-22, no qual ele indica justamente que o referido elo é a teoria do proletariado revolucionário. Ao enxergar este apenas como capital variável, Kurz fetichiza o capital como uma coisa, que não nasce nem se reproduz a partir de uma relação social permanentemente contraditória, como a que entrelaça capital e trabalho assalariado. O capital nasce da exploração do trabalho assalariado, é isto que cria a condição de possibilidade, na verdade a única condição de possibilidade, de que o proletariado supere o capital se negando a si mesmo.
[5] Partido Social-Democrata Alemão [Sozialdemokratische Partei Deutschlands], o mais forte de toda a 2ª Internacional.
[6] O Partido Social-Democrata Independente da Alemanha [Unabhängige Sozialdemokratische Partei Deutschlands] foi um racha do SPD de caráter centrista, entre o reformismo e a revolução, no qual confluíram personalidades da social-democracia como Bernstein, Kautsky, Hilferding, etc.
[7] Sobre a história da esquerda germano-holandesa, desde seu início até seu final, ver o livro muito documental da CCI: La gauche hollandaise [A esquerda holandesa].
[8] Com limites evidentes, como se pôde comprovar na dinâmica revolucionária aberta no ano de 1917 na Rússia. Obviamente, com isso não pretendemos negar que o ineditismo da experiência e das dificuldades do mesmo processo revolucionário e de seu isolamento ulterior criaram uma situação extremamente complexa e difícil, mas o fato de Lenin não ter relacionado sua teoria do Estado e de sua extinção com a do partido ajudou com que finalmente o partido dirigisse o processo revolucionário e o substituísse, se confundindo com o Estado e levando a cabo o próprio processo contrarrevolucionário. Esta contrarrevolução não chegava de fora da dinâmica revolucionária, como durante a Comuna de Paris ou em 1905, mas do próprio partido bolchevique.
[9] Anton Pannekoek, “El desarollo de la revolución mundial y la táctica de los comunistas” [O desenvolvimento da revolução mundial e a tática dos comunistas], in Contra el nacionalismo, contra el imperialismo y la guerra: ¡Revolución proletaria mundial! [Contra o nacionalismo, contra o imperialismo e a guerra: Revolução proletária mundial!]. Ediciones Espartaco Internacional, p. 227.
[10] Ibid., p. 228-229.
[11] Ver a respeito nosso artigo, Las instituciones son el limite [As instituições são o limite].
[12] Esta citação e a anterior foram extraídas de Lenin, La enfermedad infantil del izquierdismo en el comunismo, ed. Progreso, Moscou.
[13] Ver Jacques Camatte, El KAPD y el movimiento proletario [O KAPD e o movimento proletário].
[14Ibid. Aqui Camatte realiza, além disso, uma explicação sintética de como o partido comunista é uma expressão orgânica da classe (um produto que por isso mesmo pode ser um fator ativo na época da revolução), que no momento de ascensão revolucionária pode passar de um elemento histórico a um fator formal, ativo, sempre e quando não se separe da classe, porque, além disso, a classe em revolução devém partido (Marx, Manifesto Comunista).
[15] O leninismo é uma ideologia do manobrismo, dirá com força o comunista francês (amigo de Bordiga e crítico ulterior dos surtos leninistas do comunista napolitano), Lucien Laugier. Ver a respeito disso seu texto extraordinário L’antikapdédisme du PCI [O antikapdismo do PCI], ao qual voltaremos mais adiante.
[16] Lenin, op. cit.
[17] No texto de Laugier já citado, este realiza uma crítica muito pertinente ao mesmo Amadeo Bordiga. Sua radicalidade comunista na hora de questionar o valor, o dinheiro, o mercado, a empresa, etc. não é transferida à política, à crítica do Estado acima de tudo. É importante ter em conta que o capitalismo se sustenta sobre uma dualidade, economia e política, com a qual a revolução comunista tem que romper conscientemente.
[18] Ibid., p. 229 e 330.
[19] Vereinigte Kommuntische Partei Deutschlands [Partido Comunista Unificado da Alemanha], fusão entre o antigo KPD e o USPD, a social-democracia independente.
[20] Anton Pannekoek, op. cit., p. 230.
[21] Paradigma com o qual romperá rapidamente, porém, por desgraça, em uma direção conselhista que dissolve a função do partido como órgão da classe, um órgão interno a esta e não substitucionista, como indicava Camatte na citação acima.
[22] Referimo-nos a personagens como Togliatti, Thorez, Rakosi, ou até mesmo Gramsci, não à segunda geração de líderes stalinistas que não haviam passado pelo “período heróico" prévio, como Dolores Ibarruri, Thälmann ou Santiago Carrillo. Que saibamos, é algo que não foi ainda desenvolvido suficientemente desde um ponto de vista teórico, isto é, como o taticismo leninista na 3ª Internacional, a busca constante por ziguezagueadas e imbróglios ajudou a posterior emersão da política stalinista no Komintern, política qualitativamente diferente da de Lenin e Trotsky, porém que encontrou seus fundamentos neles, além de ajudar uma série de quadros dos partidos comunistas, sem solidez teórica, a iniciar o processo de “bolchevização” e stalinização dos partidos comunistas. O exemplo do PCdI é paradigmático quanto a isso e o papel de Gramsci nisso é nefasto, ainda que obviamente não tão nefasto e pérfido como foi o caso desse “profissional da contrarrevolução” em que se converteu Palmiro Togliatti.
[23] Amadeo Bordiga, “Partito ed azione di clase” [Partido e ação de classe; disponível em português aqui], in- Scritti 1911-1926 [Escritos 1911-1926], Fondazione Amadeo Bordiga, vol. 5, p. 362.
[24] Ibid., p. 367. [Nota do Revisor: Em tradução direta do italiano no site n+1: “Se as possibilidades revolucionárias forem menos imediatas, não correremos por um momento o risco de nos distrairmos de tecer nossa própria trama de preparação e de cair na solução de outros problemas contingentes, dos quais só a burguesia ganharia.”]
[25] Ibid.
[26] Amadeo Bordiga, “1919-1926: Rivoluzione e controrivoluzione in Europa” [1919-1926: Revolução e contrarrevolução na Europa], n+1. Trata-se da transcrição de um informe de Bordiga em uma das reuniões periódicas do Partido Comunista Internacional. Como dizem os companheiros da n+1, as gravações foram encontradas por acaso em um mercado de segunda mão e são de um valor extraordinário para a reconstrução teórica e histórica dos debates da 3ª Internacional que Bordiga realiza. Disponível aqui.
[27] Ibid.
[28] Jean Barrot (Gilles Dauvé) e Denis Authier, La izquierda comunista en Alemania. 1919-1921 [A esquerda comunista na Alemanha. 1919-1921]. Zero ZYX, Madrid, 1978. Trata-se de um livro muito recomendado.
[29] De fato, Bordiga realizou uma enérgica defesa de Pankhurst quando ela foi expulsa da Internacional Comunista. Veja no tomo 6 de seus Scritti [Escritos], “Il Partito Comunista Inglese e Sylvia Pankhurst” [O Partido Comunista Inglês e Sylvia Pankhurst], p. 152.
[30]  Trata-se de uma nota resgatada pela Invariance [Invariância] (a revista de Jacques Camatte), quando publicou o texto de Pannekoek que mencionamos, e publicada na edição castelhana da Espartaco Internacional.
[31] Obra literária ou cinematográfica complexa e desordenada. [N. T.]
[32] Amadeo Bordiga: “1919-1926: Rivoluzione e controrivoluzione in Europa” [1919-1926: Revolução e contrarrevolução na Europa], op. cit.
[33] Há um equívoco na tradução do termo alemão Betriebsorganisationen, organizações de empresa ou local de trabalho, traduzido aqui como organizações de fábrica. [N. T.]
[34] Gorter, Carta Aberta ao Camarada Lenin.