quinta-feira, 12 de maio de 2022

A pátria burguesa e a pátria universal (1915) - Ricardo Flores Magón


Apresentação

Em meio ao período em que vivemos, com o estalar de uma guerra no leste europeu e outros conflitos potencialmente bélicos no horizonte, consideramos essencial resgatar e traduzir esse material que foi feito em meio ao primeiro grande episódio revolucionário do século XX (a Revolução mexicana) e ao estalar da Primeira Guerra Mundial. 

Pensamos que Magón, nesse texto, expõe claramente alguns posicionamentos já divulgados em nosso blog anteriormente. Não temos pátria que defender, não devemos "recuperar a honra de nossa nação", pois essas posições apenas fazem apologia a uma frente única com a burguesia nacional, que invariavelmente serve aos interesses da última e contra um programa autônomo de reivindicações. Devemos difundir e construir movimentos contra a guerra que não criem esse sentimento de unidade com nossos exploradores, mas que na verdade nos coloquem em clara oposição com eles: deserções, greves (como o impedimento de transportar munições, de fabricar armamentos), manifestações contra a carestia de vida e bloqueios de rodovias são alguns exemplos.

A seguir apresentamos a tradução do texto La patria burguesa y la patria universal, que foi feita a partir da versão em espanhol e com auxílio da versão em inglês


A pátria burguesa e a pátria universal  

Camaradas:

A humanidade encontra-se em um dos momentos mais solenes de sua história. No Universo nada é estável: tudo muda, e nos encontramos no momento em que uma mudança está prestes a acontecer no modo como os seres humanos estão agrupados no conjunto de instituições econômicas, políticas, sociais, morais e religiosas, que constituem o que se chama sistema capitalista, ou seja, o sistema da propriedade privada ou individual.

O sistema capitalista morre ferido por si mesmo, e a humanidade, assombrada, presencia o formidável suicídio. Não são os trabalhadores que fazem as nações se voltarem umas contra as outras: é a própria burguesia que provoca o conflito, em sua avidez em dominar os mercados. A burguesia alemã realizava enormes progressos na indústria e no comércio, e a burguesia inglesa sentia inveja de sua rival. É isso que está por trás desse conflito que se chama de guerra europeia: inveja dos pequenos comerciantes, a inimizade dos traficantes e as brigas dos aventureiros. Nos campos da Europa não se disputa a honra de um povo, uma raça ou uma pátria, mas sim, nessa luta de feras, o bolso de cada indivíduo: são lobos famintos tentando capturar uma presa. Não se trata da honra nacional ferida ou da bandeira desrespeitada, mas sim de uma luta pela posição do dinheiro, o dinheiro que primeiramente fez suar o povo nos campos, nas fábricas, nas minas, em todos os lugares de exploração e agora querem que esse mesmo povo explorado o guarde com sua vida nos bolsos dos que lhe roubaram. 

Que sarcasmo! Maldita ironia! Faz-se o povo trabalhar por uma migalha, ficando os mestres com o lucro, e depois se faz os povos destruírem uns aos outros para que esse lucro não seja arrancado das mãos de seus verdugos. Nós pobres protegermos uns aos outros, tudo bem: esse é nosso dever, essa é a obrigação que nos impõe a solidariedade. Proteger-nos uns aos outros, ajudar-nos, defender-nos mutuamente, é uma necessidade que devemos satisfazer se não queremos ser aniquilados por nossos senhores; porém, nos armarmos e nos jogarmos uns sobre os outros para defender o bolso de nossos amos é um crime de lesa classe, é um delito que devemos rechaçar indignados. Às armas, tudo bem; porém contra os inimigos de nossa classe, contra os burgueses, e se nosso braço deve cortar alguma cabeça, que seja a do rico; se nosso punhal tem de alcançar algum coração, que seja do burguês. Porém, não destrocemos uns aos outros os pobres.

Nos campos da Europa os pobres destroçam uns aos outros para benefício dos ricos, que fazem acreditar que lutam em benefício da pátria. Bem; que pátria tem o pobre? Aquele que não conta com mais do que seus braços para ganhar o sustento, sustento que lhe falta se o amo maldito não sente vontade de explorá-lo, que pátria tem? Porque a pátria deve ser algo como uma boa mãe que ampara igualmente a todos seus filhos. Que amparo têm os pobres em suas respectivas pátrias? Nenhum! O pobre é um escravo em todos os países, é desgraçado em todas as pátrias, é um mártir sob todos os governos. As pátrias não dão pão ao faminto, não consolam o triste, não enxugam o suor do rosto do trabalhador cansado, não se colocam entre o fraco e o forte para que esse não abuse do primeiro; porém quando os interesses do rico estão em perigo, então os pobres são chamados à expor suas vidas pela pátria, pela pátria dos ricos; por uma pátria que não é nossa, senão de nossos verdugos. 

Abramos os olhos, irmãos de correntes e de exploração; abramos os olhos à luz da razão. A pátria é daqueles que a possuem, e os pobres não possuem nada. A pátria é a mãe carinhosa do rico e a madrasta do pobre. A pátria é o policial armado com o cassetete, que nos chuta para o fundo de uma masmorra ou nos põe a corda no pescoço quando não queremos obedecer as leis escritas pelos ricos em benefício dos próprios ricos. A pátria não é nossa mãe: é nosso verdugo! E para defender esse verdugo, nossos irmãos, os proletários da Europa, acabam com a existência uns dos outros. Imaginem o espaço que ocuparão mais de 6 milhões de cadáveres; uma montanha de cadáveres, rios de sangue e de lágrimas, isso foi o produzido até agora pela guerra europeia. E esses mortos são nossos irmãos de classe, são carne de nossa carne e sangue de nosso sangue. São trabalhadores que desde criança foram ensinados a amar a pátria burguesa, para que, chegada a ocasião, se deixassem matar por ela. O que possuíam de suas pátrias esses heróis? Nada! Não possuíam outra coisa que um par de braços robustos para ir atrás do sustento próprio e de suas famílias. Agora as viúvas, as carpideiras desses trabalhadores, terão que morrer de fome. As mulheres se prostituirão para arranjar um pedaço de pão; as crianças roubarão para arranjar comida aos seus pais idosos; os doentes irão ao hospital e para o túmulo. Bordel, presídio, hospital, morte miserável: esse é o prêmio pelo luto dos heróis que morrem por sua pátria, enquanto os ricos e os governantes esbanjam em festins o ouro pelo qual o povo na fábrica, na oficina e na mina suou. Que contraste! Sacrifício, dor, lágrimas para os que tudo produzem, para os criadores abnegados da riqueza. Prazeres e alegrias para os preguiçosos que estão em nossos ombros. Sacudamo-nos, agitemo-nos, trabalhemos para que caiam aos nossos pés os parasitas que acabam com nossa existência. Coloquemos resolutamente nossos punhos no pescoço do inimigo. Somos mais fortes que ele. Um revolucionário disse esta imensa verdade: “Os tiranos nos parecem grandes porque estamos de joelhos; levantemo-nos!” 

Bem: horrível como é a carniceria insensata que converte em matadouro o território do Velho Mundo, ela tem de produzir imensos bens à humanidade, e em lugar de nos entregarmos à tristes reflexões considerando somente a dor, as lágrimas e o sangue, nos alegremos, nos regozijemos de que tal hecatombe tenha acontecido. A catástrofe mundial que contemplamos é um mal necessário. Os povos, aviltados pela civilização burguesa, não se lembravam de que possuíam direitos, e se fazia indispensável uma sacudida formidável para despertá-los à realidade das coisas. Existem muitos que necessitam da dor para abrir seus cérebros à razão. O maltrato avilta o fraco e o tímido; mas no seio do homem envergonhado desperta sentimentos de dignidade e de nobre orgulho que lhe fazem se rebelar. A fome dobra o covarde e o entrega de joelhos ao burguês; porém é ao mesmo tempo um estímulo que faz os povos se levantarem. O sofrimento pode conduzir à resignação e à paciência; porém também pode colocar, nas mãos do homem valente, o punhal, a bomba e o revólver. E é isso que acontecerá quando terminar esta guerra infame, ou o que a fará terminar. As grandes batalhas no campo terminarão com a barricada e o motim dos povos rebeldes e as bandeiras nacionais desaparecerão no ar, para dar lugar à bandeira vermelha dos deserdados do mundo.

Então, a revolução que nasceu no México, e que ainda vive como um flagelo e um castigo para os que exploram, os que enganam e os que oprimem a humanidade, estenderá suas chamas benfeitoras por toda a terra e em lugar de cabeças de proletários rolarão pelo solo as cabeças dos ricos, dos governantes e dos sacerdotes, e um só grito subirá ao espaço vindo do peito de milhões e milhões de seres humanos: Viva Terra e Liberdade!

E pela primeira vez o Sol não terá vergonha de enviar seus raios gloriosos a esta terra murcha, dignificada pela rebelião, e uma nova humanidade, mais justa, mais sábia, converterá todas as pátrias em uma só pátria, grande, bela, boa: a pátria dos seres humanos; a pátria do homem e da mulher, com uma só bandeira: a da fraternidade universal.

Saudemos, companheiros de fadiga e de ideais, a Revolução mexicana. Saudemos essa epopeia sublime do peão convertido em homem livre através da rebeldia, e ponhamos tudo que temos do nosso lado, nosso dinheiro, nosso talento, nossa energia, nossa boa vontade, e se necessário que sacrifiquemos nosso bem-estar, nossa liberdade e a nossa vida para que essa Revolução não termine com a elevação de qualquer homem ao Poder, mas que, seguindo seu curso reivindicador, termine com a abolição do direito de propriedade privada e a morte do princípio de autoridade; porque enquanto existirem homens que possuem e homens que nada têm, o bem-estar e a liberdade serão um sonho, continuarão existindo somente como uma bela ilusão jamais realizada.

A Revolução não deve ser o meio pelo qual os ímpios se elevam ao poder, mas sim o movimento justiceiro que mata a miséria e a tirania, que não são mortas elegendo governantes, mas pondo um fim ao chamado direito de propriedade privada. Esse direito é a causa de todos os males que a humanidade sofre. Não é necessário buscar a origem de nossos males em outra coisa, pois pelo direito de propriedade existe Governo e existem sacerdotes. O Governo é o encarregado de zelar para que os ricos não sejam despojados pelos pobres e os sacerdotes não têm outra missão além de infundir nos peitos proletários a paciência, a resignação e o temor à Deus, para que não pensem jamais em se rebelarem contra seus tiranos e exploradores. 

O Partido Liberal Mexicano - sindicato operário revolucionário - compreende que a liberdade e o bem-estar são impossíveis enquanto existirem o Capital, a Autoridade e o Clero, e para a morte desses três monstros, ou desse monstro de três cabeças, dedica todos seus esforços, e é devido à propaganda e à ação dos membros desse Partido que não existe um governo estável no México, ou seja, que não se fortaleça uma nova tirania. Não queremos ricos, não queremos governantes e nem sacerdotes; não queremos patifes que explorem as forças dos trabalhadores; não queremos bandidos que sustentem através da lei esses patifes, nem malfeitores que em nome de qualquer religião façam do pobre um cordeiro que se deixe devorar pelos lobos sem resistência e sem protesto.

Aqueles de vocês que querem conhecer a fundo pelo que luta o Partido Liberal Mexicano só têm de ler o Manifesto de 23 de setembro de 1911, promulgado pela Junta Organizadora do Partido.

Assim como a guerra europeia é um mal necessário, a Revolução mexicana é um bem. Há sangue, lágrimas, sacrifícios, de fato; porém, qual grande conquista foi obtida através de festas e prazeres? A liberdade é a maior conquista que pode desejar um peito digno, e a liberdade só é obtida enfrentando a morte, a miséria e o calabouço.

Pensar que se pode conquistar a liberdade de outra maneira é equivocar-se lamentavelmente.

Nossa liberdade está nas mãos de nossos opressores: por isso não podemos adquiri-la sem luta e sem sacrifício. 

Em frente! Se na Europa ainda se combate pela pátria, ou seja, pelos ricos, no México se luta por Terra e Liberdade! Em frente! O momento é solene. No México o sistema capitalista desmorona sob os golpes da plebe dignificada, e os clamores dos ricos e do clero chegam a Washington para perturbar o cérebro daquele pobre brinquedo da burguesia chamado Woodrow Wilson, o presidente anão, o oficial de sainete que, pela ironia do Destino, foi lançado como ator em uma tragédia na qual apenas personagens com mão de ferro deveriam participar.

Em frente! O remédio está ao nosso alcance. Para acabar com o sistema capitalista não precisamos fazer outra coisa senão tomar posse dos bens que se encontram nas garras dos ricos e declará-los propriedade de todos, homens e mulheres. O homem arrisca sua vida para elevar um governante, que por mais amigo do pobre que diga ser, nunca o será mais do que o é do rico, já que sua missão é zelar para que a lei seja respeitada, e a lei ordena que se respeite o direito de propriedade privada ou individual. Por quê se matar para ter um governo? Por quê não, melhor, se sacrificar para não ter nenhum, ainda mais razoável na medida em que o mesmo esforço que se faz para tirar um governante e colocar outro em seu lugar é o mesmo preciso para arrancar das mãos dos ricos a riqueza que detêm? 

A expropriação: esse é o remédio; porém deve ser a expropriação para o benefício de todos e não de alguns. A expropriação é a chave de ouro que abre as portas da liberdade, porque a posse da riqueza fornece a independência econômica. Aquele que não necessita alugar seus braços para viver, esse é livre. 

Em frente! Não é possível se deter e ser simples espectadores do drama formidável. Que cada um se una aos demais de sua classe: o pobre com o pobre; o rico com o rico, para que cada qual se encontre com os seus e em seu posto na batalha final: a dos pobres contra os ricos; a dos oprimidos contra os opressores; a dos famintos contra os fartos, e quando a fumaça do último disparo tiver dissipado, e do edifício burguês não reste pedra sobre pedra, que o sol brilhe em nossos rostos enobrecidos e que a terra se sinta orgulhosa de sentir-se pisada por homens e não por rebanhos.

Aprendamos algo de nossos irmãos, os revolucionários expropriadores do México. Eles não esperaram que ninguém se tornasse presidente da República para iniciar uma era de justiça. Como homens destruíram tudo que se opunha à sua ação redentora. Revolucionários de verdade, rasgaram a lei em pedaços; a lei maquiadora da injustiça; a lei protetora dos fortes. Com mão robusta, esmagaram as grades dos presídios e com as grades afundaram os crânios de juízes e cagatintas[1]. O burguês teve seu pescoço afagado com a corda dos enforcados, e com um gesto heroico, nunca testemunhado pelos séculos, eles colocaram sua mão sobre a terra, que palpita de emoção ao sentir-se possuída por homens livres....

Em frente! Que neste momento solene cada um cumpra seu dever.

Viva a anarquia! Viva o Partido Liberal Mexicano! Viva Terra e Liberdade!


Ricardo Flores Magón
Regeneración, n. 207, 9 de outubro de 1915.

Notas

[1] Pejorativo que se refere a uma pessoa que trabalha em escritório com algo envolvendo muita papelada e de pouca utilidade (ver: Collins Dictionary e Real Academia Española).

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