terça-feira, 11 de janeiro de 2022

Queridos companheiros do Ilota (1883) - Errico Malatesta

Apresentação

Nos últimos anos temos visto a intensificação das lutas ao redor do globo contra a carestia, a violência estatal e nosso sacrifício para geração do lucro. Lutas que lutam, sumariamente, contra nossa condição como classe explorada. Apesar de todas as suas fraquezas, é nítido que estamos em um período de intensificação das lutas de nossa classe.

Contudo, no Brasil, apesar dos enormes aumentos nos combustíveis, no botijão de gás, na conta de luz e nos alimentos[1], apesar da contínua violência policial sobre nossas comunidades, apesar de nossa condenação de morte diante da obrigação de trabalhar em meio a uma pandemia, não vemos nenhum levante ou contestação com a mesma potência que vemos alhures. As respostas de classe são completamente minoritárias, rapidamente suprimidas e canalizadas.

A completa ausência de um movimento dessa amplitude e profundidade no Brasil explicasse, em partes, por nossa polarização entre bolsonarismo e petismo. A polarização é tão grande que conseguimos encontrar inúmeros “anarquistas” defendendo o petismo face ao “fascismo”, apelando ao voto e à confiança nas instituições burguesas para a solução de nossos problemas.[2]

O seguinte texto de Malatesta, de 1883, aborda justamente esse apelo da participação de socialistas no parlamento, o apelo de que participemos da criação de ilusões eleitoreiras, um chamado à “unidade antifascista” que serve apenas para enfraquecer nosso questionamento generalizado dessa sociedade (tanto de sua fração mais reacionária, quanto de sua fração mais progressista) e nosso programa por uma sociedade nova. Não participemos desse engordo, organizemo-nos de acordo com nossas próprias táticas e objetivos.

 

Queridos companheiros do Ilota (1883)[3] – Errico Malatesta


Tenho visto os esforços que vocês têm feito para avançar a organização do partido socialista e lhes parabenizo por isso.[4] A organização representa a própria vida e força de um partido e sem ela não seríamos nem capazes de difundir efetivamente nosso programa, quanto mais tentar lhe implementar.

Mas me surpreender que ao traçar as linhas gerais do tipo de organização que queremos, vocês fizeram um grave erro que pode gerar tanto o fracasso hoje, quanto certeza de nossa separação no futuro.

De um grande amor pela unidade e pelo acordo, vocês gostariam de ver-nos organizados sem importar as diferenças de opinião com respeito aos objetivos e meios, sendo o único laço entre nós a aspiração compartilhada de um socialismo vago e indeterminado.

Se um partido - especialmente um partido de ação - deve prosperar, ele tem de estar ciente do objetivo que deseja alcançar e especialmente os meios pelos quais deseja alcançá-lo. Do contrário, está inescapavelmente fadado a permanecer fraco e a desaparecer por meio de diferenças internas.

Eu certamente não estou me referindo àquelas diferenças secundárias de opinião, que não são indicativas de uma separação definitiva de caminhos. Por exemplo, há a perspectiva de que a propaganda oral pode ser mais efetiva do que a propaganda impressa, ou que um panfleto é preferível a um jornal, insurreição urbana aos bandos armados, ataques à propriedade ao invés de ataques à pessoa, o punhal irlandês à mina russa, ou vice-versa, sem haver algo que impeça a participação da mesma organização. Essas são questões a serem resolvidas de diferentes maneiras dependendo de circunstâncias e meios que não são mutuamente exclusivos e sobre os quais, no pior dos cenários, um revolucionário pode deferir à opinião majoritária em prol da necessidade de consenso.

Mas quando se trata de programas que são, ou acredita-se serem, incompatíveis, de que maneira você pode combiná-los e juntar pessoas que de começo já irão discutir e brigar umas com as outras?

Como, por exemplo, você propõe me organizar junto com um legalista, quando eu acredito que levar as pessoas à urna e fazê-las terem esperança de que o parlamento pode nos trazer reformas que provavelmente fariam nossas tarefas mais fáceis, já significa trair a causa do socialismo? Um legalista, no melhor dos casos, vê o sufrágio universal como um ganho que pode dar um grande impulso ao partido socialista; enquanto eu acredito ser a melhor maneira que a burguesia tem para alegremente oprimir e explorar o povo. Ele vê o sufrágio universal como o primeiro passo na direção da emancipação; eu vejo como o segredo para fazer o escravo firmar suas próprias correntes e uma garantia contra a revolta, fazendo o escravo pensar que ele é o mestre.

Então como você nos veria unidos? Enquanto ele estará fazendo campanha para garantir tais direitos ao voto e, quando os conseguir, para persuadir o povo a usá-lo, eu estarei me esforçando para prevenir que tais direitos sejam concedidos ou, se forem, para garantir que as urnas eleitorais estejam vazias e sejam vistas com desprezo.

Não desejo me prolongar nas razões de cada lado aqui. Não importa qual de nós está certo, isso não faz diferença ao fato de que, até o dia que um lado vencer sobre o outro, não podemos esperar seriamente lhes ver sendo membros úteis da mesma organização. Não é a primeira vez que digo isso.

Quando a reviravolta, que agora é conhecida pelo esperto eufemismo "a evolução de Costa", aconteceu, Costa fez tudo que pôde para esconder as mudanças que estava fazendo ao nosso programa compartilhado e esforçou-se para preservar a unidade do partido - apesar da unidade despedaçada envolta do programa - insistindo que estávamos todos basicamente de acordo. Alertamos as pessoas ao perigo, ressaltamos as diferenças, e tentamos salvar o partido revolucionário, mesmo pelo custo de ver suas fileiras encurtadas.

Fomos rejeitados, e ao invés de haver, como deveria, dois partidos coexistentes que se estimulariam mutuamente, o que tivemos ao invés disso foi, principalmente, desorganização, impotência, choques de personalidade, frieza e uma confusão de coisas e ideias. E onde quer que o partido tenha permanecido mais ou menos unido, como aconteceu em Romagna, foi por conta de enganos e mentiras e uma mudança que foi projetada para alcançar um socialismo de cantiga de ninar extremo, e foi engolido por nossos camaradas a um ritmo de lesma indetectável, sem nunca estarem cientes para onde estavam sendo levados. Por sorte, vimos sinais que nos fazem esperançosos de que, em breve, os vigorosos socialistas da Romagna, que são e sempre foram revolucionários, voltarão à razão, verão onde foram enganados, e sentirão toda a indignação e espanto que teriam sentido anos atrás, se tivessem lhes dito que "vocês terão um representante que sentará no parlamento de Vossa Majestade em nome da Coalizão democrática da Romagna, um colega e amigo para os representantes burgueses."

Agora que o esclarecimento finalmente chegou, queremos trilhar mais uma vez o caminho que causou tantos danos ao partido socialista italiano, e exigir uma redução das diferenças profundamente enraizadas entre nós e construir uma unidade fundada sobre um enganoso acordo superficial?

Isso pode satisfazer alguém ávido por um lugar nas bancadas de Montecitorio[5], que, portanto, precisa fazer seu melhor para reunir muitos eleitores, mas não irá satisfazer a nós que queremos fazer a revolução.

Sem deixar-nos sermos enganados pelas amadas tradições arruinadas pela traição além de uma possível recuperação, na prática hoje existe uma menor diferença real entre nós e os republicanos focados na ação - com os quais podemos viajar pelo menos a primeira parte da estrada (a saber, insurreição armada contra a monarquia) - do que existe entre nós e aqueles que acalmam os socialistas e exploram o socialismo para servir os interesses de qualquer facção da burguesia que ache conveniente vestir-se de vermelho.

E Costa mostrou que estava perfeitamente ciente da situação quando ele foi combatido pelos socialistas em Nápoles e buscou uma recomendação de Bovio, sentando-se alegremente em um banquete republicano junto com o honorável senhor Aporti.[6]

Deixemos Costa fazer o que quiser: não devemos levantar um dedo para atrasar sua derrocada política, já que o consideramos condenado a afundar até o fundo desse terreno escorregadio.

Mas nos organizemos.

Sim, vamos ordenar todos os recursos de nosso partido, mas vamos nos lembrar que, no que tange nossas preocupações como revolucionários e insurgentes, aqueles que defendem o parlamentarismo não são bem-vindos em nosso partido.

Será, sem dúvidas, doloroso nos despedir de antigos companheiros. Afetará a mim da mesma maneira que qualquer outro, já que entre meus adversários existem amigos queridos que foram, por um longo tempo, meus companheiros na prisão, no exílio, na pobreza, e que vão, espero, ser meus companheiros nas barricadas e compartilharão nossa vitória.

Mas quando a conversa se volta aos interesses da revolução, todas as considerações de personalidade devem ser silenciadas. Estendemos a mão para todos que acreditam, de boa-fé, que servem os interesses da revolução e agarramo-nos à esperança de que podemos lhes ver seguir seus corações. Mas nosso partido deveria ser nosso partido e nossa organização deveria ser nossa organização. E essa organização deveria ser a Associação Internacional dos Trabalhadores, cujo programa, incubado por muito tempo, ressoa hoje em alto e bom som como COMUNISMO, ANARQUIA e REVOLUÇÃO.

Logo, camaradas, fechemos as fileiras dessa associação, que seus desertores, tendo tentado em vão matá-la, estão ocupados proclamando morta, porque a existência da associação é uma reprovação permanente de seu comportamento, e porque o remorso de abandoná-la pode estar atormentando sua consciência.

 



[1] Etanol liderou alta de preços em 2021; veja itens que mais subiram no ano. 2022. Disponível em: <https://g1.globo.com/economia/noticia/2022/01/11/etanol-liderou-alta-de-precos-em-2021-veja-itens-que-mais-subiram-no-ano.ghtml>. Acesso em: 11 jan. 2022.

[2] A esse respeito, recomendamos a leitura do texto “As vicissitudes da luta de classes brasileira na pandemia capitalista”. Disponível em: <http://communismolibertario.blogspot.com/2021/08/as-vicissitudes-da-luta-de-classes.html>. Acesso em: 11 jan. 2022.

[3] Esse texto foi traduzido a partir do disponível na obra The Method o Freedom: An Errico Malatesta Reader, de 2014, editada por Davide Turcato e publicada pela AK Press.

[4] Traduzido de “Cari Compagni dell’Ilota”, Ilota (Pistoia) 1, nº9 (1 de abril de 1883). O contexto para essa carta foi a deserção do anarquismo de Andrea Costa, um dos membros principais da Federação Italiana, que em 1879 começou a defender a extensão de táticas socialistas ao parlamento. Costa tinha um séquito significativo, principalmente na região da Romagna, e em novembro de 1882 ele havia sido eleito para o parlamento. Suas táticas haviam provocado debates acalorados em parte da imprensa socialista, e Ilota foi um dos periódicos que considerou essas táticas legítimas.

Em uma série de artigos recentes, o Ilota havia então apelado à união e organização conjunta de todas as forças socialistas, apesar das diferenças táticas. 

[5] Montecitorio é a sede da Câmara de Deputados Italiana.

[6] Giovanni Bovio era um filósofo e político republicano, e Pirro Aporti era um senador da extrema-esquerda.

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