Apresentação
Nos últimos anos temos visto a intensificação
das lutas ao redor do globo contra a carestia, a violência estatal e nosso
sacrifício para geração do lucro. Lutas que lutam, sumariamente, contra nossa
condição como classe explorada. Apesar de todas as suas fraquezas, é nítido que
estamos em um período de intensificação das lutas de nossa classe.
Contudo, no Brasil, apesar dos enormes
aumentos nos combustíveis, no botijão de gás, na conta de luz e nos alimentos[1], apesar da contínua violência
policial sobre nossas comunidades, apesar de nossa condenação de morte diante
da obrigação de trabalhar em meio a uma pandemia, não vemos nenhum levante ou
contestação com a mesma potência que vemos alhures. As respostas de classe são completamente
minoritárias, rapidamente suprimidas e canalizadas.
A completa ausência de um movimento
dessa amplitude e profundidade no Brasil explicasse, em partes, por nossa polarização
entre bolsonarismo e petismo. A polarização é tão grande que conseguimos
encontrar inúmeros “anarquistas” defendendo o petismo face ao “fascismo”,
apelando ao voto e à confiança nas instituições burguesas para a solução de
nossos problemas.[2]
O seguinte texto de Malatesta, de 1883,
aborda justamente esse apelo da participação de socialistas no parlamento, o apelo
de que participemos da criação de ilusões eleitoreiras, um chamado à “unidade
antifascista” que serve apenas para enfraquecer nosso questionamento
generalizado dessa sociedade (tanto de sua fração mais reacionária, quanto de
sua fração mais progressista) e nosso programa por uma sociedade nova. Não
participemos desse engordo, organizemo-nos de acordo com nossas próprias
táticas e objetivos.
Queridos companheiros do Ilota (1883)[3] – Errico Malatesta
Tenho visto os esforços que vocês têm
feito para avançar a organização do partido socialista e lhes parabenizo por
isso.[4] A organização representa a
própria vida e força de um partido e sem ela não seríamos nem capazes de
difundir efetivamente nosso programa, quanto mais tentar lhe implementar.
Mas me surpreender que ao traçar as
linhas gerais do tipo de organização que queremos, vocês fizeram um grave erro
que pode gerar tanto o fracasso hoje, quanto certeza de nossa separação no
futuro.
De um grande amor pela unidade e pelo
acordo, vocês gostariam de ver-nos organizados sem importar as diferenças de
opinião com respeito aos objetivos e meios, sendo o único laço entre nós a
aspiração compartilhada de um socialismo vago e indeterminado.
Se um partido - especialmente um
partido de ação - deve prosperar, ele tem de estar ciente do objetivo que
deseja alcançar e especialmente os meios pelos quais deseja alcançá-lo. Do
contrário, está inescapavelmente fadado a permanecer fraco e a desaparecer por
meio de diferenças internas.
Eu certamente não estou me referindo
àquelas diferenças secundárias de opinião, que não são indicativas de uma
separação definitiva de caminhos. Por exemplo, há a perspectiva de que a
propaganda oral pode ser mais efetiva do que a propaganda impressa, ou que um
panfleto é preferível a um jornal, insurreição urbana aos bandos armados,
ataques à propriedade ao invés de ataques à pessoa, o punhal irlandês à mina
russa, ou vice-versa, sem haver algo que impeça a participação da mesma
organização. Essas são questões a serem resolvidas de diferentes maneiras
dependendo de circunstâncias e meios que não são mutuamente exclusivos e sobre
os quais, no pior dos cenários, um revolucionário pode deferir à opinião
majoritária em prol da necessidade de consenso.
Mas quando se trata de programas que
são, ou acredita-se serem, incompatíveis, de que maneira você pode combiná-los
e juntar pessoas que de começo já irão discutir e brigar umas com as outras?
Como, por exemplo, você propõe me
organizar junto com um legalista, quando eu acredito que levar as pessoas à
urna e fazê-las terem esperança de que o parlamento pode nos trazer reformas
que provavelmente fariam nossas tarefas mais fáceis, já significa trair a causa
do socialismo? Um legalista, no melhor dos casos, vê o sufrágio universal como
um ganho que pode dar um grande impulso ao partido socialista; enquanto eu acredito
ser a melhor maneira que a burguesia tem para alegremente oprimir e explorar o
povo. Ele vê o sufrágio universal como o primeiro passo na direção da
emancipação; eu vejo como o segredo para fazer o escravo firmar suas próprias
correntes e uma garantia contra a revolta, fazendo o escravo pensar que ele é o
mestre.
Então como você nos veria unidos?
Enquanto ele estará fazendo campanha para garantir tais direitos ao voto e,
quando os conseguir, para persuadir o povo a usá-lo, eu estarei me esforçando
para prevenir que tais direitos sejam concedidos ou, se forem, para garantir
que as urnas eleitorais estejam vazias e sejam vistas com desprezo.
Não desejo me prolongar nas razões de
cada lado aqui. Não importa qual de nós está certo, isso não faz diferença ao fato
de que, até o dia que um lado vencer sobre o outro, não podemos esperar
seriamente lhes ver sendo membros úteis da mesma organização. Não é a primeira
vez que digo isso.
Quando a reviravolta, que agora é
conhecida pelo esperto eufemismo "a evolução de Costa", aconteceu,
Costa fez tudo que pôde para esconder as mudanças que estava fazendo ao nosso
programa compartilhado e esforçou-se para preservar a unidade do partido -
apesar da unidade despedaçada envolta do programa - insistindo que estávamos
todos basicamente de acordo. Alertamos as pessoas ao perigo, ressaltamos as
diferenças, e tentamos salvar o partido revolucionário, mesmo pelo custo de ver
suas fileiras encurtadas.
Fomos rejeitados, e ao invés de haver,
como deveria, dois partidos coexistentes que se estimulariam mutuamente, o que
tivemos ao invés disso foi, principalmente, desorganização, impotência, choques
de personalidade, frieza e uma confusão de coisas e ideias. E onde quer que o
partido tenha permanecido mais ou menos unido, como aconteceu em Romagna, foi
por conta de enganos e mentiras e uma mudança que foi projetada para alcançar
um socialismo de cantiga de ninar extremo, e foi engolido por nossos camaradas
a um ritmo de lesma indetectável, sem nunca estarem cientes para onde estavam sendo
levados. Por sorte, vimos sinais que nos fazem esperançosos de que, em breve,
os vigorosos socialistas da Romagna, que são e sempre foram revolucionários,
voltarão à razão, verão onde foram enganados, e sentirão toda a indignação e
espanto que teriam sentido anos atrás, se tivessem lhes dito que "vocês
terão um representante que sentará no parlamento de Vossa Majestade em nome da
Coalizão democrática da Romagna, um colega e amigo para os representantes
burgueses."
Agora que o esclarecimento finalmente
chegou, queremos trilhar mais uma vez o caminho que causou tantos danos ao
partido socialista italiano, e exigir uma redução das diferenças profundamente
enraizadas entre nós e construir uma unidade fundada sobre um enganoso acordo
superficial?
Isso pode satisfazer alguém ávido por
um lugar nas bancadas de Montecitorio[5], que, portanto, precisa
fazer seu melhor para reunir muitos eleitores, mas não irá satisfazer a nós que
queremos fazer a revolução.
Sem deixar-nos sermos enganados pelas
amadas tradições arruinadas pela traição além de uma possível recuperação, na
prática hoje existe uma menor diferença real entre nós e os republicanos
focados na ação - com os quais podemos viajar pelo menos a primeira parte da
estrada (a saber, insurreição armada contra a monarquia) - do que existe entre
nós e aqueles que acalmam os socialistas e exploram o socialismo para servir os
interesses de qualquer facção da burguesia que ache conveniente vestir-se de
vermelho.
E Costa mostrou que estava
perfeitamente ciente da situação quando ele foi combatido pelos socialistas em
Nápoles e buscou uma recomendação de Bovio, sentando-se alegremente em um
banquete republicano junto com o honorável senhor Aporti.[6]
Deixemos Costa fazer o que quiser: não
devemos levantar um dedo para atrasar sua derrocada política, já que o
consideramos condenado a afundar até o fundo desse terreno escorregadio.
Mas nos organizemos.
Sim, vamos ordenar todos os recursos de
nosso partido, mas vamos nos lembrar que, no que tange nossas preocupações como
revolucionários e insurgentes, aqueles que defendem o parlamentarismo não são
bem-vindos em nosso partido.
Será, sem dúvidas, doloroso nos
despedir de antigos companheiros. Afetará a mim da mesma maneira que qualquer
outro, já que entre meus adversários existem amigos queridos que foram, por um
longo tempo, meus companheiros na prisão, no exílio, na pobreza, e que vão,
espero, ser meus companheiros nas barricadas e compartilharão nossa vitória.
Mas quando a conversa se volta aos
interesses da revolução, todas as considerações de personalidade devem ser
silenciadas. Estendemos a mão para todos que acreditam, de boa-fé, que servem
os interesses da revolução e agarramo-nos à esperança de que podemos lhes ver
seguir seus corações. Mas nosso partido deveria ser nosso partido e nossa
organização deveria ser nossa organização. E essa organização deveria ser a
Associação Internacional dos Trabalhadores, cujo programa, incubado por muito
tempo, ressoa hoje em alto e bom som como COMUNISMO, ANARQUIA e REVOLUÇÃO.
Logo, camaradas, fechemos as fileiras
dessa associação, que seus desertores, tendo tentado em vão matá-la, estão
ocupados proclamando morta, porque a existência da associação é uma reprovação
permanente de seu comportamento, e porque o remorso de abandoná-la pode estar
atormentando sua consciência.
[1] Etanol liderou alta de preços em 2021;
veja itens que mais subiram no ano. 2022. Disponível em: <https://g1.globo.com/economia/noticia/2022/01/11/etanol-liderou-alta-de-precos-em-2021-veja-itens-que-mais-subiram-no-ano.ghtml>.
Acesso em: 11 jan. 2022.
[2] A esse respeito, recomendamos a leitura
do texto “As vicissitudes da luta de classes brasileira na pandemia capitalista”.
Disponível em: <http://communismolibertario.blogspot.com/2021/08/as-vicissitudes-da-luta-de-classes.html>.
Acesso em: 11 jan. 2022.
[3] Esse texto foi traduzido a partir do
disponível na obra The Method o Freedom: An Errico Malatesta Reader, de
2014, editada por Davide Turcato e publicada pela AK Press.
[4] Traduzido de “Cari Compagni
dell’Ilota”, Ilota (Pistoia) 1, nº9 (1 de abril de 1883). O contexto
para essa carta foi a deserção do anarquismo de Andrea Costa, um dos membros
principais da Federação Italiana, que em 1879 começou a defender a extensão de
táticas socialistas ao parlamento. Costa tinha um séquito significativo,
principalmente na região da Romagna, e em novembro de 1882 ele havia sido
eleito para o parlamento. Suas táticas haviam provocado debates acalorados em
parte da imprensa socialista, e Ilota foi um dos periódicos que
considerou essas táticas legítimas.
Em uma série de artigos recentes, o Ilota havia
então apelado à união e organização conjunta de todas as forças socialistas,
apesar das diferenças táticas.
[5] Montecitorio é a sede da Câmara de
Deputados Italiana.
[6] Giovanni Bovio era um filósofo e
político republicano, e Pirro Aporti era um senador da extrema-esquerda.
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