Arquivos revolucionários

terça-feira, 11 de janeiro de 2022

Queridos companheiros do Ilota (1883) - Errico Malatesta

Apresentação

Nos últimos anos temos visto a intensificação das lutas ao redor do globo contra a carestia, a violência estatal e nosso sacrifício para geração do lucro. Lutas que lutam, sumariamente, contra nossa condição como classe explorada. Apesar de todas as suas fraquezas, é nítido que estamos em um período de intensificação das lutas de nossa classe.

Contudo, no Brasil, apesar dos enormes aumentos nos combustíveis, no botijão de gás, na conta de luz e nos alimentos[1], apesar da contínua violência policial sobre nossas comunidades, apesar de nossa condenação de morte diante da obrigação de trabalhar em meio a uma pandemia, não vemos nenhum levante ou contestação com a mesma potência que vemos alhures. As respostas de classe são completamente minoritárias, rapidamente suprimidas e canalizadas.

A completa ausência de um movimento dessa amplitude e profundidade no Brasil explicasse, em partes, por nossa polarização entre bolsonarismo e petismo. A polarização é tão grande que conseguimos encontrar inúmeros “anarquistas” defendendo o petismo face ao “fascismo”, apelando ao voto e à confiança nas instituições burguesas para a solução de nossos problemas.[2]

O seguinte texto de Malatesta, de 1883, aborda justamente esse apelo da participação de socialistas no parlamento, o apelo de que participemos da criação de ilusões eleitoreiras, um chamado à “unidade antifascista” que serve apenas para enfraquecer nosso questionamento generalizado dessa sociedade (tanto de sua fração mais reacionária, quanto de sua fração mais progressista) e nosso programa por uma sociedade nova. Não participemos desse engordo, organizemo-nos de acordo com nossas próprias táticas e objetivos.

 

Queridos companheiros do Ilota (1883)[3] – Errico Malatesta


Tenho visto os esforços que vocês têm feito para avançar a organização do partido socialista e lhes parabenizo por isso.[4] A organização representa a própria vida e força de um partido e sem ela não seríamos nem capazes de difundir efetivamente nosso programa, quanto mais tentar lhe implementar.

Mas me surpreender que ao traçar as linhas gerais do tipo de organização que queremos, vocês fizeram um grave erro que pode gerar tanto o fracasso hoje, quanto certeza de nossa separação no futuro.

De um grande amor pela unidade e pelo acordo, vocês gostariam de ver-nos organizados sem importar as diferenças de opinião com respeito aos objetivos e meios, sendo o único laço entre nós a aspiração compartilhada de um socialismo vago e indeterminado.

Se um partido - especialmente um partido de ação - deve prosperar, ele tem de estar ciente do objetivo que deseja alcançar e especialmente os meios pelos quais deseja alcançá-lo. Do contrário, está inescapavelmente fadado a permanecer fraco e a desaparecer por meio de diferenças internas.

Eu certamente não estou me referindo àquelas diferenças secundárias de opinião, que não são indicativas de uma separação definitiva de caminhos. Por exemplo, há a perspectiva de que a propaganda oral pode ser mais efetiva do que a propaganda impressa, ou que um panfleto é preferível a um jornal, insurreição urbana aos bandos armados, ataques à propriedade ao invés de ataques à pessoa, o punhal irlandês à mina russa, ou vice-versa, sem haver algo que impeça a participação da mesma organização. Essas são questões a serem resolvidas de diferentes maneiras dependendo de circunstâncias e meios que não são mutuamente exclusivos e sobre os quais, no pior dos cenários, um revolucionário pode deferir à opinião majoritária em prol da necessidade de consenso.

Mas quando se trata de programas que são, ou acredita-se serem, incompatíveis, de que maneira você pode combiná-los e juntar pessoas que de começo já irão discutir e brigar umas com as outras?

Como, por exemplo, você propõe me organizar junto com um legalista, quando eu acredito que levar as pessoas à urna e fazê-las terem esperança de que o parlamento pode nos trazer reformas que provavelmente fariam nossas tarefas mais fáceis, já significa trair a causa do socialismo? Um legalista, no melhor dos casos, vê o sufrágio universal como um ganho que pode dar um grande impulso ao partido socialista; enquanto eu acredito ser a melhor maneira que a burguesia tem para alegremente oprimir e explorar o povo. Ele vê o sufrágio universal como o primeiro passo na direção da emancipação; eu vejo como o segredo para fazer o escravo firmar suas próprias correntes e uma garantia contra a revolta, fazendo o escravo pensar que ele é o mestre.

Então como você nos veria unidos? Enquanto ele estará fazendo campanha para garantir tais direitos ao voto e, quando os conseguir, para persuadir o povo a usá-lo, eu estarei me esforçando para prevenir que tais direitos sejam concedidos ou, se forem, para garantir que as urnas eleitorais estejam vazias e sejam vistas com desprezo.

Não desejo me prolongar nas razões de cada lado aqui. Não importa qual de nós está certo, isso não faz diferença ao fato de que, até o dia que um lado vencer sobre o outro, não podemos esperar seriamente lhes ver sendo membros úteis da mesma organização. Não é a primeira vez que digo isso.

Quando a reviravolta, que agora é conhecida pelo esperto eufemismo "a evolução de Costa", aconteceu, Costa fez tudo que pôde para esconder as mudanças que estava fazendo ao nosso programa compartilhado e esforçou-se para preservar a unidade do partido - apesar da unidade despedaçada envolta do programa - insistindo que estávamos todos basicamente de acordo. Alertamos as pessoas ao perigo, ressaltamos as diferenças, e tentamos salvar o partido revolucionário, mesmo pelo custo de ver suas fileiras encurtadas.

Fomos rejeitados, e ao invés de haver, como deveria, dois partidos coexistentes que se estimulariam mutuamente, o que tivemos ao invés disso foi, principalmente, desorganização, impotência, choques de personalidade, frieza e uma confusão de coisas e ideias. E onde quer que o partido tenha permanecido mais ou menos unido, como aconteceu em Romagna, foi por conta de enganos e mentiras e uma mudança que foi projetada para alcançar um socialismo de cantiga de ninar extremo, e foi engolido por nossos camaradas a um ritmo de lesma indetectável, sem nunca estarem cientes para onde estavam sendo levados. Por sorte, vimos sinais que nos fazem esperançosos de que, em breve, os vigorosos socialistas da Romagna, que são e sempre foram revolucionários, voltarão à razão, verão onde foram enganados, e sentirão toda a indignação e espanto que teriam sentido anos atrás, se tivessem lhes dito que "vocês terão um representante que sentará no parlamento de Vossa Majestade em nome da Coalizão democrática da Romagna, um colega e amigo para os representantes burgueses."

Agora que o esclarecimento finalmente chegou, queremos trilhar mais uma vez o caminho que causou tantos danos ao partido socialista italiano, e exigir uma redução das diferenças profundamente enraizadas entre nós e construir uma unidade fundada sobre um enganoso acordo superficial?

Isso pode satisfazer alguém ávido por um lugar nas bancadas de Montecitorio[5], que, portanto, precisa fazer seu melhor para reunir muitos eleitores, mas não irá satisfazer a nós que queremos fazer a revolução.

Sem deixar-nos sermos enganados pelas amadas tradições arruinadas pela traição além de uma possível recuperação, na prática hoje existe uma menor diferença real entre nós e os republicanos focados na ação - com os quais podemos viajar pelo menos a primeira parte da estrada (a saber, insurreição armada contra a monarquia) - do que existe entre nós e aqueles que acalmam os socialistas e exploram o socialismo para servir os interesses de qualquer facção da burguesia que ache conveniente vestir-se de vermelho.

E Costa mostrou que estava perfeitamente ciente da situação quando ele foi combatido pelos socialistas em Nápoles e buscou uma recomendação de Bovio, sentando-se alegremente em um banquete republicano junto com o honorável senhor Aporti.[6]

Deixemos Costa fazer o que quiser: não devemos levantar um dedo para atrasar sua derrocada política, já que o consideramos condenado a afundar até o fundo desse terreno escorregadio.

Mas nos organizemos.

Sim, vamos ordenar todos os recursos de nosso partido, mas vamos nos lembrar que, no que tange nossas preocupações como revolucionários e insurgentes, aqueles que defendem o parlamentarismo não são bem-vindos em nosso partido.

Será, sem dúvidas, doloroso nos despedir de antigos companheiros. Afetará a mim da mesma maneira que qualquer outro, já que entre meus adversários existem amigos queridos que foram, por um longo tempo, meus companheiros na prisão, no exílio, na pobreza, e que vão, espero, ser meus companheiros nas barricadas e compartilharão nossa vitória.

Mas quando a conversa se volta aos interesses da revolução, todas as considerações de personalidade devem ser silenciadas. Estendemos a mão para todos que acreditam, de boa-fé, que servem os interesses da revolução e agarramo-nos à esperança de que podemos lhes ver seguir seus corações. Mas nosso partido deveria ser nosso partido e nossa organização deveria ser nossa organização. E essa organização deveria ser a Associação Internacional dos Trabalhadores, cujo programa, incubado por muito tempo, ressoa hoje em alto e bom som como COMUNISMO, ANARQUIA e REVOLUÇÃO.

Logo, camaradas, fechemos as fileiras dessa associação, que seus desertores, tendo tentado em vão matá-la, estão ocupados proclamando morta, porque a existência da associação é uma reprovação permanente de seu comportamento, e porque o remorso de abandoná-la pode estar atormentando sua consciência.

 



[1] Etanol liderou alta de preços em 2021; veja itens que mais subiram no ano. 2022. Disponível em: <https://g1.globo.com/economia/noticia/2022/01/11/etanol-liderou-alta-de-precos-em-2021-veja-itens-que-mais-subiram-no-ano.ghtml>. Acesso em: 11 jan. 2022.

[2] A esse respeito, recomendamos a leitura do texto “As vicissitudes da luta de classes brasileira na pandemia capitalista”. Disponível em: <http://communismolibertario.blogspot.com/2021/08/as-vicissitudes-da-luta-de-classes.html>. Acesso em: 11 jan. 2022.

[3] Esse texto foi traduzido a partir do disponível na obra The Method o Freedom: An Errico Malatesta Reader, de 2014, editada por Davide Turcato e publicada pela AK Press.

[4] Traduzido de “Cari Compagni dell’Ilota”, Ilota (Pistoia) 1, nº9 (1 de abril de 1883). O contexto para essa carta foi a deserção do anarquismo de Andrea Costa, um dos membros principais da Federação Italiana, que em 1879 começou a defender a extensão de táticas socialistas ao parlamento. Costa tinha um séquito significativo, principalmente na região da Romagna, e em novembro de 1882 ele havia sido eleito para o parlamento. Suas táticas haviam provocado debates acalorados em parte da imprensa socialista, e Ilota foi um dos periódicos que considerou essas táticas legítimas.

Em uma série de artigos recentes, o Ilota havia então apelado à união e organização conjunta de todas as forças socialistas, apesar das diferenças táticas. 

[5] Montecitorio é a sede da Câmara de Deputados Italiana.

[6] Giovanni Bovio era um filósofo e político republicano, e Pirro Aporti era um senador da extrema-esquerda.

sábado, 8 de janeiro de 2022

PROTESTOS NO CAZAQUISTÃO: 5 PONTOS-CHAVE PARA ENTENDER O QUE ESTÁ ACONTECENDO

Informe traduzido a partir do disponibilizado em espanhol por Communia



Tropas do exército se unem à repressão dos protestos no Cazaquistão nesta quarta-feira.

 

A repressão dos protestos no Cazaquistão internacionalizou-se: paraquedistas russos e tropas armênias, quirguizes e tajiques sob mandato da OTSC [Organização do Tratado de Segurança Coletiva] estão adentrando o país para enfrentar os manifestantes. As agências russas falam de uma ação conjunta para enfrentar “terroristas” e “bandidos”, as norte-americanas falam de uma tentativa de Putin para “expandir sua influência”. Ambas escondem a realidade: do domingo passado até hoje, o Estado cazaque colapsou diante do início de uma greve de massas que se estendeu por todo o país, porém ela está longe do nível de auto-organização dos trabalhadores que temos visto no Irã.

 

O que aconteceu?

 

Trabalhadores petrolíferos em greve selvagem, começo dos protestos no Cazaquistão.

 

Nem tentativa frustrada de golpe de Estado, nem invasão russa: repressão de uma greve de massas

 

A cronologia dos protestos no Cazaquistão fala por si mesma. No último domingo, 2 de janeiro, eclodiram protestos massivos em Zhanaozen depois que o governo dobrou os preços do gás. Depois das primeiras tentativas de repressão, os trabalhadores levantaram barricadas em toda a cidade.

Na noite de 3 e 4 de janeiro, começou uma greve selvagem nas empresas petrolíferas de Tengiz. Prontamente, a greve se estendeu às regiões vizinhas. Na verdade, o movimento grevista tem dois focos principais: Zhanaozen e Aktau, dois dos principais centros das indústrias extrativas. 

Protestos no Cazaquistão. Caminhões de grevistas chegam em Almati.


Em 4 de janeiro, chegaram caminhões com trabalhadores petrolíferos em Almati e milhares somaram-se ao protesto ocupando o centro da cidade e protestando em frente a prefeitura.

Protestos no Cazaquistão. Concentração massiva em frente a prefeitura de Almati.

 

O presidente Tokayev anunciou o estado de emergência nas regiões. Na manhã de 5 de janeiro, ele aceitou a renúncia do governo e propôs substituir o aumento de preços de 100% por outro de 50%. À tarde, ele anunciou que havia substituído seu mentor, o ex-ditador Nazarbayev, como chefe do Conselho de Segurança do país. Depois de reconhecer que os protestos haviam se estendido a mais da metade do país, anunciou que dezenas de “encrenqueiros” haviam sido “liquidados” e estavam sendo identificadas suas identidades.

Protestos no Cazaquistão. A prefeitura de Almati em chamas depois do ataque dos manifestantes.

 

Apesar da repressão, os manifestantes seguiram protestando na frente da prefeitura de Almati, superando as forças policiais (ver vídeo). O edifício acabou em chamas e as concentrações centraram-se no Ministério Público e na residência oficial do Presidente.

Também em Aktobe, outro grande foco insurrecional, o edifício de governo local foi atacado, sem êxito, pelos trabalhadores. Os protestos no Cazaquistão estavam longe de esgotarem-se.

Paraquedistas da unidade aerotransportada da presidência, os pretorianos do presidente, “varrendo” as ruas de Almati e aumentando a violência da repressão contra as manifestações no Cazaquistão.

 

A repressão continuou assassinando e prendendo em massa durante toda a noite. Em Almati, os manifestantes levantaram barricadas, e gravaram vídeos de vários casos de desarme das forças de segurança. Ante a resistência, em muitas cidades do país a polícia se dissolveu ou se uniu aos protestos.

Para fazer frente ao colapso ao qual havia sido levado o Estado pelos protestos no Cazaquistão, Tokayev lançou os paraquedistas contra os manifestantes e solicitou aos chefes dos Estados da OTSC que enviassem tropas para superar a “ameaça terrorista”, qualificando os manifestantes que havia tentando acalmar pouco antes como “bandos de terroristas internacionais”.

 

Quem são os manifestantes?

Assembleia de trabalhadores petrolíferos na última segunda-feira, nas primeiras fases das manifestações no Cazaquistão.

 

Nem terroristas internacionais, nem cidadãos indignados: trabalhadores em luta

 

Os protestos no Cazaquistão acontecem em um contexto mais amplo do que o apresentado pela imprensa. Como destacamos em nosso resumo anual de lutas, um dos avanços mais importantes de 2021 foi que desde o Cazaquistão até Donbass, passando pela Geórgia, os trabalhadores ensaiaram formas de afirmação como classe.

Não é casualidade que agora um dos epicentros dos protestos no Cazaquistão seja Zhanaozen. A onda de greves em Zhanaozen em julho foi uma referência em toda Ásia Central. O movimento que, como então destacamos, tendia a converter-se em greve de massas apesar dos obstáculos sindicais, não deixou desde então de agregar setores e conectar equipes, mantendo uma tensão constante que impossibilitou até agora uma repressão brutal aberta.

Porém, sua influência foi muito além do local. No Cazaquistão houve mais greves na primeira metade de 2021 que nos três anos anteriores juntos, todas centradas em Mangystau e Zhanaozen.

Quando um acidente nas minas de Karaganda em Novembro pressionou o ânimo dos mineiros para uma nova grande greve como a de 2017, os sindicatos apressaram-se a abafar qualquer tentativa de resposta. E praticamente ao mesmo tempo eclodiu a greve nas instalações de gás da Mangystaumunaigaz na região de Zhanaozen. A referência de Zhanaozen converteu a frustração dos mineiros em fermento de uma greve selvagem (= por cima dos sindicatos) que agora estourou.

É essa acumulação e confluência de lutas que vão acontecendo uma a uma – ainda que não todas – por cima dos sindicatos, que explica a rápida mobilização a partir do primeiro dia, quando o governo põe em marcha o aumento do preço do gás para o consumo doméstico e de transporte.

Mineiros de Dzhezkazgan em frente ao edifício de governo local de Karaganda na quinta-feira.

 

Por exemplo, desde o dia 2 os mineiros de Dzhezkazgan, em Karaganda, verdadeiro epicentro das greves selvagens, manifestam-se diante do edifício do governo por uma baixa na idade de aposentadoria, contra a inflação e pela liberdade de manifestação. Até o dia 5, em pleno colapso do Estado, os representantes políticos locais nem sequer se dignaram a receber as petições dos trabalhadores.

 

Para se aquecerem, os manifestantes acenderam uma fogueira e os moradores locais lhes levaram comida e chá. Os mineiros dizem à RFE/RL que a manifestação é pacífica. A polícia vigia a situação, porém não detém ninguém. A partir das 15 horas de 6 de janeiro, umas 300 pessoas encontram-se próximas do edifício do akimat. Segundo um dos participantes da ação, no período da noite havia muito mais manifestantes, e hoje estão somando-se novos participantes.

Na região de Karaganda, como em outras regiões, não funciona internet, há problemas com a comunicação de celular. A maioria das operadoras informam que somente é possível realizar chamadas de emergência.

 

Por que lutam os trabalhadores?

Uma trabalhadora em greve em Zhanaozen rechaça o argumento das “exigências do benefício” que oferece o presidente regional (direita).

 

Nem “Euromaidan” anti-russo, nem “luta contra a corrupção”: as necessidades básicas dos trabalhadores são o motor dos protestos no Cazaquistão

 

O detonador que acabou de acionar as greves e manifestações no Cazaquistão, fazendo-as confluir, foi o aumento do preço do gás.

As explorações extrativas estão no meio do deserto e todos os bens são importados. O aumento do gás para o transporte significa aumento geral dos preços e perda de um poder de compra que já estava no limite pelos baixos salários.

 

“Os preços do gás, que também produzimos, decolaram. Tudo depende do gás. Se o gás encarece, tudo encarece.

As pessoas comuns já dispõem de pouca renda, e a situação piorará. Que reduzam o preço do gás para 50-60 tenges. Ou que aumentem nossos salários para 200 mil tenges. Do contrário, não sobreviveremos quando tudo encarecer.

As autoridades dizem que não há gás suficiente, que a planta construída há 50 anos está desgastada, antiquada. E o que fizeram durante 30 anos?” – Um trabalhador, recolhido por RLT

 

Os diretores das plantas, sindicalistas e o presidente local tentaram “explicar” aos trabalhadores porque “precisavam” aumentar os preços (ver vídeo). O argumento de sempre: a empresa, caso contrário, entraria em perdas e perder-se iam os empregos, que era necessário aguentar e esperar um futuro melhor. Os trabalhadores responderam que contar “contos de fadas” não era uma solução para os problemas e políticos, sindicalistas e diretores saíram sem convencer ninguém. Os trabalhadores aprenderam a lição.

 

O ano passado essas empresas começaram a ser otimizadas em grande escala. Cortaram-se postos de trabalho, os trabalhadores começaram a perder seus pagamentos, os bônus, muitas empresas converteram-se em simples empresas de serviços.

Quando na região de Atirau a empresa Tengiz Oil despediu 40 mil trabalhadores de uma vez, foi um verdadeiro choque para todo o oeste do Cazaquistão. O Estado não fez nada para evitar essas demissões massivas. E é necessário entender que um trabalhador petrolífero alimenta de 5 a 10 membros de sua família. A demissão de um trabalhador condena automaticamente toda a família à fome.

Aqui não existem postos de trabalho, exceto no setor petrolífero e nos setores que atendem suas necessidades. - Ainor Kurmanov

 

As manifestações no Cazaquistão são na verdade uma revolução?

Almati na última terça-feira.

 

Os protestos no Cazaquistão não chegaram a uma revolução, é uma greve de massas que não ainda não está auto-organizada

 

O que estamos vendo não é uma revolução, mas uma greve de massas que não para de se estender e que, contudo, bastou para colapsar o aparato repressivo do Estado cazaque.

Salvo em algumas empresas de Zhanaozen, as lutas confluíram, porém não as assembleias e os comitês elegidos por essas. Em seu conjunto, a luta está ainda longe do nível de auto-organização dos trabalhadores que temos visto no Irã.

O resultado é que os trabalhadores descobriram sua própria força e apareceram como sujeito político determinante a nível nacional... porém, não têm capacidade de organizar o poder que ficou vago.

Essa debilidade organizativa das manifestações no Cazaquistão não pode deixar de se converter em uma fraqueza programática. Vimos isso em Aktau, ontem à noite. Os dirigentes sindicais assumiram a liderança dos protestos com o consentimento das forças repressivas e do governo regional, reafirmaram as reivindicações básicas às quais se opunham até recentemente, e reivindicaram a manutenção da ordem. Muito simbolicamente, estenderam uma bandeira nacional – símbolo do interesse que enfrentam os trabalhadores – o mais rápido possível.

Os sindicatos semeiam o caminho para a derrota, como em todos os lados, porém ao final desta há algo pior que um novo corte nas necessidades básicas. Reforçado pelos paraquedistas russos e animado ante a perspectiva de contar com 2.500 soldados quirguizes e tajiques que a OTSC lhe prometeu imediatamente, o presidente Tokayev ordenou ao exército a “disparar para matar” contra os “20.000 bandidos” que continuam a protestar em Almati.

Então, por que os países da área de influência russa mandam tropas?

Tropas paraquedistas russas embarcam para reprimir os protestos no Cazaquistão.

 

As classes dirigentes reconhecem e se unem diante de seu inimigo, sem deixar de proteger-se ante o que poderia fazer seu competidor frente a um vazio de poder

 

As classes dirigentes regionais entenderam claramente desde o primeiro momento o que havia por debaixo das manifestações no Cazaquistão. Sabem reconhecer o inimigo de classe quando o veem em movimento. Há dez anos não lhes tremeu o pulso na hora de reprimir a sangue e fogo em Zhanaozen.

Tampouco têm dúvidas as agências e os governos europeus e anglo-saxões. Desta vez não existem apoios e mensagens como na Rússia, Bielorrússia, Ucrânia, Geórgia... ou cada vez que uma facção burguesa faz algo que possa incomodar o imperialismo russo.

A “união sagrada” entre as facções da burguesia produz-se automaticamente cada vez que o proletariado entra em cena. Inclusive entre rivais imperialistas. Basta recordar Berlim em 1953, ou Budapeste em 1956. Nesse caso, quando a Chevron é uma das empresas petrolíferas diretamente afetadas pelas greves em Tengiz, não podia se esperar outra coisa.

Porém, tampouco deixam de competir entre si, nem deixam de tentar tirar vantagem, ainda que somente seja simbólica ou propagandista do que em realidade é um revés para todas elas. É expressivo como a imprensa anglo e seus ecos em outros idiomas, apesar de não colocarem o tema nas primeiras páginas, tentaram puxar a sardinha pro seu lado apresentando as manifestações no Cazaquistão como uma revolta “contra a corrupção e a desigualdade”, o que poderia ter réplicas também na própria Rússia.

Putin sabe de sobra que não deve temer uma intervenção de seus rivais imperialistas, nem sequer sofrerá novas represálias econômicas por lançar suas tropas de elite contra os protestos no Cazaquistão. Porém teme, com razão e como os demais governos da região, os custos econômicos e os riscos políticos de um vazio de poder.

Seu objetivo primário é cortar pela raiz qualquer possível evolução revolucionária das manifestações no Cazaquistão. Porém, há mais. Frente a seus rivais imperialistas quer mostrar a capacidade da Rússia para “manter a ordem” em sua esfera direta de influência. E frente aos governos aliados na Ásia Central e no Cáucaso, mandar o sinal de que é capaz de lhes manter no poder em caso de enfrentarem uma mobilização de classe como a que impulsiona os protestos no Cazaquistão...

... o que é certo, mas somente em partes, porque o fundamental não depende dele, senão do desenvolvimento da auto-organização dos trabalhadores. Um passinho a mais de onde os trabalhadores chegaram até agora e as seguranças da classe dirigente se dissipariam.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

Crise sanitária ou Crise civilizatória? - Círculo de Comunistas Esotéricos

A presente tradução foi realizada através da versão em espanhol do manifesto do Círculo de Comunistas Esotéricos de Santiago, no Chile, março de 2020. 


BREVES NOTAS SOBRE A COVID-19 E O CAPITALISMO.

"Aos judeus estava proibido examinar o futuro. A Torá e a oração instruem-nos, em vez disso, na recordação. E isso vinha desencantar-lhes com o futuro, ao qual aqueles que recolhem informações com advinhos são vítimas. Porém, por isso mesmo, não se converteu o futuro em um tempo vazio e homogêneo aos judeus. Dado que assim, cada segundo constituía a pequena porta pela qual Messias podia adentrar." Walter Benjamin, Sobre el concepto de historia


O universo cinematográfico bombardeou-nos até a exaustão com os seus filmes de catástrofe: zumbis, alienígenas, monstros nucleares, tornados com tubarões, meteoritos, vírus, bombas atómicas e tudo o que se possa pensar que possa afetar e comprometer a existência ao ponto de anulá-la ou reduzí-la ao mínimo. A humanidade enquanto condição do humano como cisão do animal foi preparada, pelo menos simbolicamente, para o seu desaparecimento durante muito tempo.

O aparecimento do Covid-19 durante os primeiros dias de 2020 é a materialização de todo este projeto que estava em curso ou, pelo menos, é a transferência para o mundo material de um projeto imaginativo. No entanto, nenhuma medida adotada pelos vários Estados à escala global se aproxima sequer daquilo a que a ficção nos tinha habituado. O espaço de ficção que é a cinematografia habituou-nos à distância, tanto real como imaginária, a fim de entrar num mundo simbólico diferente. Distância que também entendemos como uma divisão produtiva para não confundir que o que acontece no ecrã é uma ficção que difere do que acontece neste lado, evitando cair na paranoia de que o que acontece ali é verdadeiro, mas pelo menos tem um índice de veracidade. Agora esta distância é anulada pela antecipação que o filme dá à realidade. 

O tom espetacular que a catástrofe assume do seu antecedente midiático acaba por gerar a ideia de que todas as catástrofes devem ser rastreadas até ao que as indústrias culturais geraram e que, portanto, todas as catástrofes devem ser narradas e representadas de forma espetacular. Se Frédéric Jamestown afirmou que "é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo", a situação atual que se abre com a pandemia de Covid-19 exige uma reformulação desta frase. Com os comentários da população no espaço digital e analógico, bem como a cobertura mediática, e, por outro lado, as medidas de prevenção de desvios que têm sido tomadas em todo o mundo, são evidentes que se a atual crise do capitalismo se encontra a um nível nunca antes visto, o fim do mundo imaginado a partir de tal crise é igualmente apoteótico

Mas não é por acaso que este desejado fim do mundo é tão apoteótico, nem que é exclusivamente um produto da indústria cultural. Em termos da psicanálise, as fantasias sobre o fim do mundo são projeções do próprio colapso do indivíduo, devido a uma divisão do self, o resultado de processos esquizoides que encontram no modo de produção capitalista moderno um terreno fértil capaz de projetar e introjetar tanto medidas autorrepressivas como transbordamento narcisista. O jogo de posições duplas, opostas e contraditórias, em torno da mesma questão é a lógica constitutiva da nossa subjetividade empobrecida.

Voltando à distância entre a representação cinematográfico-fotográfica e o que poderíamos chamar "vida cotidiana", há uma característica particular que pode ser detectada nesta distância entre ficção e a realidade - no caso da existência específica desta última de forma uniforme e totalizante - e que é que nos filmes há um elemento que atua como um fator que não é ponderado: a produtividade do trabalho humano com as suas contradições no plano material dentro do mundo capitalista moderno.

Num mundo centrado na produtividade, na autovalorização do valor e na desvalorização do trabalho humano, uma crise sanitária nunca é exclusivamente uma crise destas características porque o que se revela são precisamente as condições e contradições do modo de produção, a sua administração social e as formas de socialização que dela decorrem. Neste sentido, a circulação global do Covid-19 vem exprimir contemporaneamente a circulação da mercadoria que a precede. Há muitos antecedentes históricos: a peste bubônica da Ásia à Europa, a gripe e a varíola do Velho Mundo ao "Novo Mundo", a gripe espanhola no início do século XX são o corolário epidemiológico da expansão global do capitalismo. Um microrganismo é mais letal do que um dispositivo, mas isto não é uma questão de saúde, mas sim da dimensão da economia política e das suas formas de administração e gestão.

O salto qualitativo da era moderna consiste em ter transformado o conceito de guerra de uma perspectiva militar para uma perspectiva socioeconômica operacional. "A guerra é a continuação da política por outros meios", observou Karl von Clausewitz no século XIX, o que se manifesta em estados de catástrofe como o que estamos a viver atualmente. Além disso, temos de considerar que uma boa parte da intervenção teórica deste autor teve lugar quando, de fato, houve uma distinção entre milícias e sociedade civil, uma divisão que contemporâneamente foi pulverizada ao ponto de equipar a sociedade a uma guerra permanente.

A sociedade é cada vez mais vista como uma máquina de guerra, que desencadeia uma série de forças que se exprime na ideia do inimigo interno, cujo assentamento nos territórios coincide frequentemente com a expansão sistemática da lógica do capital para todas as esferas da vida que tem sido chamada de "neoliberalismo". Desta forma, todos os conflitos políticos são imediatamente desencadeados no terreno económico, que se torna a verdadeira continuação da guerra, para além do espetáculo da chamada política internacional. A economia não seria mais do que a continuação da política por outros meios.

Este estado de guerra econômica permanente, uma vez que não pode ser resolvido externamente como um conflito armado, é resolvido internamente por cada órgão como um estado de guerra interna contra tudo o que dificulta a reprodução do capital. Isto não se limita às medidas de vigilância e controle - em que Agamben enfatiza, por exemplo - mas estende-se a cada indivíduo em particular, a uma internalização do conflito em cada indivíduo não só como agente produtivo/consumidor/cidadão, mas fundamentalmente na sua experiência do mundo, que passa a ser vivida como algo imediatamente hostil, algo que só pode ser resolvido através da divisão, tanto de si próprio como da sua própria experiência. 

Estamos na presença de um terror que não é imposto através da repressão física direta, mas através da introdução do terror na psique de cada indivíduo, que através da exploração de medos que têm a sua origem em fantasias infantis, permite a criação de uma subjetividade esquizoide, que na sua ambivalência é a mais apta a receber e transmitir ordens, ao mesmo tempo em que as rejeita porque não permite que a sua própria subjetividade seja construída ou libertada.

O autoconfinamento no espaço privado é a internalização da especulação financeira, com o seu colapso bolsista global e um colapso gradual das políticas econômicas neoliberais. O distanciamento social propagado hoje em dia como medida de precaução é a expressão internalizada do isolamento subjetivo-econômico.  A política de autocuidado é a consumação da política narcisista da sociedade de mercadorias porque é realizada individualmente e não coletivamente, libertando forças individuais que em nenhum momento se cruzam com forças comunitárias. O narcisismo social é propagado, mas não uma forma alternativa de vida que se opõe àquela que torna possível este tipo de narcisismo.

 O que se exprime e procura no espaço privado é a capacidade de cada indivíduo para não se aborrecer. Séries, filmes, livros, atividades em linha, videoconferências, etc., acabam por se tornar um paliativo à possibilidade de tédio. Por outras palavras, em face de uma crise de saúde, o que importa é não cair nesse espaço vazio que é o tédio. Que humanidade vazia, alienada e empobrecida nos tem acontecido! 

Uma pobreza inteiramente nova caiu sobre nós ao mesmo tempo em que o enorme desenvolvimento das forças produtivas e da tecnologia está a promover, e a imaginar, viagens no tempo e no espaço para lugares remotos no universo. E o reverso dessa pobreza é a riqueza sufocante de ideias que se deu entre o povo - ou melhor, com as quais se depararam - à medida que a astrologia e a sabedoria do yoga, a Ciência Cristã e a quiromancia, o vegetarianismo e a gnoses, a escolástica e o espiritualismo foram reavivados. Uma vez que a contradição material entre escassez real e escassez artificial não está resolvida, a saída que resta é o "enriquecimento espiritual" que torna esta contradição mais tolerável. 

Esta pobreza já não pode ser caracterizada do ponto de vista dos recursos materiais ou do ponto de vista da distribuição dos rendimentos, porque o empobrecimento da experiência é de uma ordem qualitativa. A pobreza da nossa experiência é apenas uma parte da grande pobreza que assumiu uma nova face, tão exata e perfeita como a dos mendigos da Idade Média. 

Qual é o valor dos bens da educação se não estivermos unidos a eles pela experiência? E onde a sua simulação ou sobreposição nos leva é algo que a horrível malha híbrida de estilos e visões de mundo do século passado nos mostrou tão claramente que devemos considerar uma honra confessar a nossa pobreza. Sim, confessemos: a pobreza da nossa experiência não é apenas pobre nas experiências privadas, mas nas da humanidade em geral. É uma espécie de nova barbárie.

Haverá aqueles que professam que a pandemia de Covid-19 foi propagada pelo turismo internacional. Eles estão parcialmente certos ao pensar assim. O problema que se destaca nesta formulação é que o próprio turismo e a forma como se desenvolveram nos últimos setenta anos é um produto da pobreza sistêmica em que nos encontramos.  Por que é que as pessoas vão fazer turismo? Principalmente para fugir ao cotidiano do mundo. Ninguém vai como turista a um mundo que conhece, porque tudo lhe é familiar. Ser turista é expor-se de forma mediada a outros mundos, procurando reforçar a experiência do que já é conhecido, verificando que o que é procurado como novidade foi o que foi prometido de antemão. 

Neste sentido, o turismo é o oposto de aventura, uma experiência antecipada e encerrada pela circulação de mercadorias à escala global. Onde se procura novidade, só existe o mesmo mundo mercantil do qual se tenta fugir, reforçando a condição de uma individualidade fraturada, desmoronada mas não liquidada, que só se pode expressar como um niilismo hostil face ao mundo. O fato de muitos dos infectados não se terem isolado do resto da população é um sintoma de uma pulsão de morte generalizada, que em nenhum caso é uma expressão individual, mas coletiva. 

Também não faltará quem termine por levantar a bandeira do "humano-vírus" ou "capitalismo do vírus", que acaba por ser tão irracional como o que provoca esta reação. Neste sentido, é possível estabelecer uma homologação entre o "cada homem por si" que alguns Estados desenvolveram e a máquina higiénica dos totalitarismos do século XX, que visava o desaparecimento forçado de uma grande parte da população. A única resposta que tem sido tomada como eficaz face à crise sanitária da Covid-19 é a repressão e o controle populacional, técnicas sociais que têm sido amplamente conhecidas e divulgadas durante décadas.

Apesar disso, o exército de reserva produtiva/consumidor continua em movimento porque a produção não pode parar e alguém - sempre Outro, nunca Eu - deve ser sacrificado. Todos os Estados preferiram salvar a economia em vez de salvar o povo. Isto é válido tanto para o presente como para o futuro, porque embora já existam sinais claros da crise econômica que se tem arrastado pelo menos desde 2008, à medida que os dias ou meses passam, a crise irá piorar se não for salva desde agora. Vai ser um amanhã de pessoas no desemprego ou no endividamento crescente dos bancos, que serão novamente enriquecidos pela pobreza das massas e pelos salvamentos que lhes são concedidos por todos os Estados. 

Há aqueles à esquerda hoje que clamam por um estado protecionista de estilo antigo, mesmo nas suas táticas do movimento operário clássico com certos apelos a uma Greve Geral frente ao Covid-19.  Os apelos a um estado mais forte, "para nos proteger", também apareceram, algo que no Chile vemos desde a revolta de Outubro e o seu prolongamento como eclosão social até aos dias de hoje. Aqui a Greve Geral não pode ser um apelo voluntarista pelo simples fato de que, dado o panorama, é articulada como uma medida sanitária e que recai, quer queiramos quer não, numa medida de controle. Já pensou nessa possibilidade regressiva?

É incrível saber que os limites do processo civilizador capitalista moderno nos levaram uma vez mais a pensar que o Estado é a única salvação possível num mundo em crescente decomposição. Acreditamos que o que está a desmoronar-se em algumas partes do mundo ocidental é o Estado neoliberal. É uma questão de ver como as pessoas reagiram ao Covid-19 em Espanha, Itália e Chile, três países geograficamente distantes mas com estruturas institucionais muito semelhantes e próximas. Ao existirem sistemas de saúde muito limítrofes, o que resta é a repressão e o controle. Nada tem sido preventivo, mas apenas repressivo. 

O Estado neoliberal em decomposição, com todas as nuances que podem existir entre os diferentes Estados particulares, torna claro que não há possibilidade de salvação perante uma emergência como a que vivemos hoje se não for através do controle e da repressão.  Este princípio é básico porque onde o mercado foi desencadeado como um segundo poder da primeira ordem em termos de gestão da sociedade, tende a atuar através do desdobramento exponencial do sujeito automático tão bem conhecido e que agora chega a um ponto em que, com todo o seu poder e arrogância, decide mais do que nunca sobre a vida das pessoas. 

Não é surpreendente, portanto, que a vida de cada pessoa e a totalidade de todas as vidas vale menos do que a produção que deve ser poupada a todo o custo. O Estado neoliberal não foi colocado em crise por uma ação de massa ou por um micro-organismo, mas por si mesmo, privilegiando o seu papel administrativo de vida mercantil. O guardião deu um murro na cara, colocando-se fora de ação. Mas ele voltará reforçado e pronto para ser outra pessoa, para ser ele próprio novamente.

A única saída para a crise sanitária é questionar os limites e projeções do projeto civilizacional em que nos desenvolvemos e que manifesta a sua crise de uma forma galopante com milhares, e possivelmente milhões, de mortes em todo o planeta a partir de um episódio específico. Esta humanidade está condenada à morte e a uma pseudovida, razão pela qual é necessário que nasça um novo tipo de humanidade, que aprenda e incorpore de forma negativa o que a civilização moderna-capitalista lhe deu. Não se trata de encontrar o verdadeiro significado da humanidade porque ela não existe como tal, mas apenas como uma articulação histórica específica. Não há humanidade essencial, mas há a possibilidade de transformá-la constantemente na história. Não há lugar onde esta essência de "o humano" possa ser resgatada.

 

Essa possibilidade reinventiva é o que chamamos COMUNISMO.