As primeiras ondas contestatórias que decorreram da crise de 2008 foram polarizadas em alternativas burguesas e derrotadas em função desse enquadramento (“democracia” x “ditadura”; “neoliberal” x “desenvolvimentismo”; “OTAN” x “soberania nacional”, etc.). E embora a simultaneidade das revoltas aumentem cada vez mais, nem por isso haverá uma mudança de caráter qualitativo. Ou seja, embora a simultaneidade internacional das revoltas aumente em quantidade, esta não se traduz numa conexão real entre elas, na medida em que não existem grandes demonstrações de internacionalismo ou solidariedade internacional efetiva, assim como não dispomos de uma direção revolucionária internacional.
Portanto, consideramos que a superação da mídia burguesa (como pretensão do “monopólio das true news”), é uma das condições necessárias, embora não a única, para que essa mudança qualitativa ocorra. A necessidade de superação da mídia burguesa como meio de divulgação de nossas lutas impõe:
1. A manutenção de contato entre as minorias revolucionárias ativas em diferentes regiões;
Desde o início, a raiva dos manifestantes foi dirigida contra a elite política e seus símbolos, às sedes da autoridade, como governos, conselhos municipais ou tribunais; os escritórios dos partidos políticos são regularmente atacados, saqueados e queimados. Esses jovens proletários usam a violência de uma forma bastante “natural”, espontânea e primitiva. Isso pode ser facilmente explicado pela dureza do cotidiano iraquiano, pela “brutalização” que os anos de guerra infligiram à sociedade (no sentido de George L. Mosse), mas também por uma cultura popular que banaliza a violência [17]. O governo iraquiano prefere denunciar a presença de “vândalos” infiltrados nas manifestações. No entanto, esse uso moderado da violência parece estar se espalhando, ou, pelo menos, sendo aceito por outras categorias de manifestantes, como afirma a jornalista Hélène Sallon: “Essa disposição de usar a violência foi mais tarde compartilhada por muitos manifestantes. Pessoas que não eram necessariamente daquela geração raivosa e muito jovem me disseram: Bem, sim, porque não temos outro recurso, eles não nos ouvem, apenas fazem promessa após promessa. E então, em algum momento, sim, por que não violência?” [18]. Onde estaríamos sem os apelos incessantes de contenção por parte das autoridades políticas e religiosas?
O jornalista nota, no entanto, uma mobilização mais fraca em Bagdá, talvez pelo peso que Moqtada al-Sadr ali exerce sobre uma parte do proletariado, mas também, sem dúvida, pelo distanciamento entre os militantes e os jovens proletários que seguem nas ruas: “Em Bagdá, vemos que esse movimento também não decolou, porque tenho a impressão de que o protesto lá é muito mais politizado, no sentido dos partidos, e vimos nas manifestações deste verão algumas diferenças entre esses ativistas mais velhos, mais politizados e mais apegados aos partidos, e a essa nova geração, diferenças que eles próprios não conseguiam entender e das quais não tinham certeza de suas intenções. Vimos em Bagdá uma dificuldade maior na capacidade de mistura do movimento, mais do que em Basra ou Najaf, onde as razões socioeconômicas são compartilhadas por todos” [19].
As autoridades, atordoadas pela urgência e desordem, só gradualmente perceberam a magnitude da revolta. A primeira coisa que eles tiveram que fazer foi limitar a destruição, daí a implementação de um toque de recolher noturno e o envio de tropas de choque usando gás lacrimogêneo e canhões d'água. Mas o exército será chamado rapidamente para proteger as instalações de petróleo que os manifestantes regularmente ameaçam entrar. Para limitar a mobilização, o acesso à Internet é interrompido várias vezes em todo o país, às vezes por vários dias, com interrupções totais ou às vezes apenas nas redes sociais.
O primeiro-ministro Al-Abadi adotará publicamente uma postura conciliatória com os manifestantes, cujas demandas legítimas ele diz entender e diz que quer proteger o direito de manifestar-se (pacificamente). Ele também promete acelerar projetos de água e eletricidade no sul, convida delegações de líderes tribais para se reunirem com ele e anuncia uma alocação imediata de 3 bilhões de dólares para a região de Basra. Apenas pode contar com o apoio do seu aliado Moqtada al-Sadr, que, embora já tenha um pé na “zona verde”, espera, como sempre, contornar o protesto sem chamar os seus apoiantes às ruas. Sem medo, o líder xiita não hesita em usar a hashtag do Twitter “a revolução da fome vence”; com cautela, pede aos manifestantes que mostrem contenção e não ataquem prédios públicos. Após mais de oito dias de manifestações e, sem dúvida, muitas hesitações, acreditando na continuidade do movimento, ele pede a seus deputados que suspendam as negociações para a formação de um novo governo até que as reivindicações dos manifestantes sejam atendidas.
O 20 de julho parece ser um ponto de inflexão. Diante do imponente aparato policial e militar implantado tanto nas províncias do sul quanto na capital, os manifestantes evitaram o confronto e se aglomeraram nas principais praças públicas. Em Bagdá, vários milhares de manifestantes tentaram se aproximar da “zona verde”, mas a polícia os fez retroceder. As manifestações, que se tornaram muito menos violentas, continuaram até o domingo, dia 22. Nessa época o movimento chega ao fim, após quatorze dias de manifestações em todo o sul do país, incluindo pelo menos oito dias de distúrbios. A repressão deixou 11 mortos, a maioria deles manifestantes mortos a tiros. Essa mobilização, essa violência e essa repressão parecem sem precedentes no Iraque.
Motins de setembro / A água
Alguém poderia pensar que, uma vez que a revolta acabasse, o governo poderia desfrutar de um momento de trégua, mas isso não aconteceu. Tudo está recomeçando em Basra, desta vez por causa da água. Devido às deploráveis condições sanitárias e meteorológicas, a água distribuída pelas autoridades, a partir de agosto, mostra-se muito mais salgada e poluída do que de costume. Em poucas semanas, seu consumo provoca a intoxicação e hospitalização de mais de 30.000 pessoas. Como de costume, o governo responde com alvoroço, imaginando que a suspensão do Ministro da Eletricidade e de alguns funcionários será suficiente para acalmar os ânimos e permitir que a “zona verde” volte ao seu pitoresco curso diário. No entanto, um mau sinal, no domingo, 2 de setembro, centenas de manifestantes bloquearam vários pontos estratégicos na província de Basra. No dia seguinte, em Bagdá, realiza-se a reunião inaugural do parlamento eleito em maio; dividida entre a aliança de Moqtada al-Sadr e o primeiro-ministro Haidar al-Abadi por um lado e a do líder da milícia pró-iraniana Hadi al-Ameri e o ex-primeiro-ministro Nouri al-Maliki por outro, não podendo eleger um presidente da câmara.
Na terça-feira, vários milhares de pessoas se reuniram em Basra para protestar contra a negligência das autoridades. As forças da ordem dispararam para o ar e usaram gás lacrimogêneo para dispersá-las, eclodiram confrontos. No final do dia, seis pessoas foram mortas. Os manifestantes foram ainda mais numerosos na quarta-feira. Na quinta-feira, 6 de setembro, o acesso ao porto de Umm Qasr foi bloqueado por manifestantes e, à noite, em Basra, agitadores atacaram prédios públicos e sedes de partidos políticos, incluindo o consulado iraniano, sendo repelidos pelas forças de segurança.
As autoridades, temendo a eclosão de manifestações após as orações de sexta-feira (que acontecem ao meio-dia), enviarão um grande número de policiais para Basra e introduziram um toque de recolher na cidade a partir das 16 h. No entanto, durante o dia os manifestantes tentam entrar em um dos centros petrolíferos próximos à cidade e outros bloqueiam os acessos a Umm Qasr novamente, a situação se intensifica à noite. Os moradores se reúnem nas ruas e, em números crescentes, atacam rapidamente edifícios do governo, escritórios de partidos e milícias, as oficinas e a residência do governador regional, queimando tudo o que podem. O que causa grande repercussão, até internacionalmente, é o assalto, pela segunda vez, ao consulado iraniano, e, desta vez, para se desfazer em fumaça. No decorrer da noite, mais três manifestantes são mortos a tiros pela polícia.
O dia seguinte, sábado, 8 de setembro, é particularmente calmo em comparação ao precedente. O porto de Umm Qasr retomará suas atividades e a polícia estará de prontidão. Alguns militantes que se apresentaram como “organizadores” dos protestos denunciaram a destruição do dia anterior e anunciaram que parariam o movimento. O toque de recolher será finalmente suspenso à tarde. Deve-se notar que, pela primeira vez, o comandante da UMP declara que suas tropas estão prontas para se posicionar nas ruas de Basra para garantir a segurança e proteger os manifestantes pacíficos contra os agentes provocadores.
Por outro lado, o governo promete mais uma vez liberar recursos (sem dar valor ou prazo), embora ninguém tenha visto ainda nenhum dos 3 bilhões de dólares prometidos em julho. No mesmo dia, o parlamento se reunirá com urgência para discutir a crise de Basra, mas parte da assembleia, incluindo a Fatah Alliance (o braço político do UMP), pede a renúncia do primeiro-ministro Al-Abadi. No entanto, teatralmente, esse pedido será atendido por Moqtada al-Sadr, que até então tinha sido um aliado de Al-Abadi! O líder soberanista, portanto, insinuou uma aliança com o bloco pró-iraniano. Essa mudança de curso foi facilitada pelas posições assumidas pelo Grande Aiatolá Ali al-Sistani, que era altamente crítico em relação ao primeiro-ministro. Este último foi finalmente forçado a jogar a toalha e foi Adel Abdel Mahdi, ex-ministro do Petróleo, quem foi nomeado para sucedê-lo (ele só assumiu o cargo em 25 de outubro de 2018).
A situação permanece um tanto confusa, mas, embora alguns denunciem a agitação como resultado de um complô para conter a influência iraniana, parece, paradoxalmente, que o bloco pró-iraniano emergiu mais forte [20].
Nada que, a princípio, pudesse satisfazer os manifestantes, dos quais, em menos de uma semana, treze foram mortos e dezenas a mais feridos. Nada que anuncie uma melhora em suas condições materiais de vida. No entanto, as manifestações não estão recomeçando e a vida quotidiana em Basra e Bagdá está voltando à normalidade. Por quanto tempo? Todos estão esperando a próxima explosão e permanecem em guarda. Mas ninguém suspeita que levará cerca de um ano para ver os proletários iraquianos de volta às ruas, equipados com sua raiva incendiária.
Fim da primeira parte.
Notas
[1] – Quentin Müller, “Mutilés de Bassora, no Iraque: ‘J’aurais préféré aller au paradis’”, Libération, 28 de agosto de 2018.
[2] – Sobre esta cidade, podemos recomendar o documentário de Anne Poiret: “Mossoul, après la guerre”, lançado em 2019 pela Arte. Disponível em: <https://www.arte.tv/fr/videos/080541-000-A/mossoul-apres-la-guerre/>.
[3] – Os Estados Unidos concederam isenções ao Iraque para o comércio com o Irã, apesar das sanções que impõem a este país (relacionadas ao acordo nuclear).
[4] – O Grande Aiatolá Ali al-Sistani, uma figura respeitada em todas as comunidades por sua suposta sabedoria, é a mais alta autoridade religiosa do xiismo no Iraque. Ele desempenha o papel de árbitro, pesando o equilíbrio político dos dois lados, sempre à direita do atual equilíbrio de poder. No entanto, devido à sua aceitação do sistema político desde 2003, ele é um tanto ignorado aos olhos de muitos xiitas iraquianos.
[5] – Quentin Müller, op. cit.
[6] – Teva Meyer, “Reconstruire l’Irak: uma missão impossível?”, DSI, N° 143, setembro-outubro de 2019.
[7] – Moqtada al-Sadr, nacionalista xiita, soberanista e líder populista, goza de imensa popularidade entre o proletariado xiita iraquiano, mas não a adquiriu, ele a herdou de seu pai, o aiatolá Mohammad Sadeq al-Sadr, assassinado em 1999. Conhecido por sua versatilidade política e sua capacidade de manobra, ele é a personificação da oposição e da defesa dos pobres, sua aura foi um tanto maculada desde 2018 por sua participação no processo político institucional.
[8] – A “Zona Verde” é um enclave de alta segurança no coração da capital iraquiana que abriga o parlamento, ministérios, várias instituições e embaixadas. Algumas partes foram reabertas gradativamente à população ao longo de 2018, após quinze anos de fechamento total.
[9] – Noé Pignède, “Le sud de l’Irak face à une crise sanitaire et économique inédite”, La Croix, 29 de novembro de 2018.
[10] – Para uma descrição da cidade, ver por exemplo: Quentin Müller, “Bassora, la Venise d'Irak en péril”, orientxxi.info, 30 de agosto de 2018.
[11] – Myriam Benraad, “L'Irak est à nouveau en train de perdre la paix”, L'Opinion, 22 de agosto de 2018.
[12] – No Iraque, o fim de semana é de sexta a sábado e o domingo é o primeiro dia da semana.
[13] – Deve-se notar que, no Oriente Médio, disparar munição real (com uma Kalashnikov) na cabeça dos manifestantes para assustá-los e dispersá-los é uma prática comum dos órgãos de segurança pública. No entanto, é perigoso e pode, mesmo inadvertidamente, causar ferimentos ou morte. Este método é comumente usado nos eventos que evocamos no texto. Visar especificamente um manifestante é, portanto, apenas mais um passo que um policial pode facilmente dar no meio de um confronto violento, mesmo sem uma ordem específica de seu superior.
[14] – “Iraqi protesters withdraw from Najaf airport, air traffic resumes”, alarabiya.net, 13 de julho de 2018.
[15] – “Les manifestations s’étendent dans le sud de l’Irak”, lepoint.fr, 13 de julho de 2018.
[16] – Com exceção do Curdistão, que por suas especificidades sociais e políticas e sua autonomia muito avançada, permanece fora dessa mobilização, bem como daquela que terá início em outubro de 2019. Ver, por exemplo, Soulayma Mardam Bey, “Pourquoi les Kurdes d'Irak ne se soulèvent pas”, L'Orient le jour, 28 de novembro de 2019.
[17] – Loulouwa al-Rachid, “L’Irak après l’État Islamique: une victoire qui change tout ?”, Notes de l’Ifri, julho de 2017, p. 14
[18] – Hélène Sallon, “Le soulèvement social de Bassora, sintoma des maux de l’Irak”, 3 de outubro de 2018, Iremmo. Hélène Sallon, jornalista do Le Monde, é autora do livro altamente instrutivo “L'État islamique de Mossoul. Histoire d’une entreprise totalitaire”, La Découverte, 2018, 288 p.
[19] – Ibidem.
[20] – O primeiro-ministro Al-Abadi havia “relutantemente” se posicionado a favor de Washington, aplicando sanções a seu vizinho iraniano, atraindo a ira de Teerã. Elie Saïkali, “Lâché par Sadr, Abadi plus isolé que jamais”, L’Orient le jour, 10 de setembro de 2018.
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Segunda parte: 2019, reforma política ou guerra civil?
Original em francês disponível em: <https://ddt21.noblogs.org/?page_id=2545>.
Tradução da segunda parte para o inglês realizada por Friends of the Class War, disponível em <https://www.autistici.org/tridnivalka/tristan-leoni-iraq-from-riot-to-impossible-reform-2018-2019>.
A tradução ao português é baseada na versão em inglês com a inclusão das notas que estavam presentes apenas na publicação original em francês (da onde foram traduzidas para serem incluídas também).
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Após as revoltas de outubro de 2018, o Iraque experimentou doze meses de relativa calma. No entanto, basicamente a situação econômica e social permaneceu praticamente a mesma. O Iraque não experimentou uma nova onda de protestos até outubro de 2019, que inicialmente se revelou muito semelhante à anterior. O que é novo, no entanto, é a magnitude e intensidade da mobilização, o nível de violência usado pelos manifestantes e o nível de repressão. Após um intervalo de algumas semanas devido a uma peregrinação xiita, o protesto, que parecia extinto, foi retomado, mas parecia estar transformado, tanto na forma como no conteúdo, e tanto em termos de demandas como na sociologia dos participantes. Com o passar das semanas, apesar das mortes, do cansaço e das fases de recuo, o movimento continua numa quase-rotina de manifestações e motins… mas não consegue encontrar uma saída. Embora o primeiro-ministro tenha prometido atender às demandas dos manifestantes, ele foi forçado a jogar a toalha no final de novembro, mergulhando o Iraque ainda mais na incerteza. No momento da redação, a mobilização permanece.
O primeiro-ministro Adil Abdul-Mahdi, que chegou ao poder em outubro de 2018, após a revolta proletária em Basra que causou a saída de seu antecessor, prometeu introduzir mudanças e combater a corrupção. Mas, como parece um hábito, ele não delineou nenhuma reforma significativa. É verdade que as agendas políticas não são ditadas por considerações econômicas e sociais, mas, de forma mais prosaica, por rivalidades comerciais e políticas. No entanto, estes últimos fazem parte da oposição entre Washington e Teerã, que tem sido particularmente forte desde maio de 2018 e a retirada americana do acordo sobre a energia nuclear iraniana.
1. Da remoção ao motim (29 de setembro – 5 de outubro)
Há sempre uma fagulha para desencadear uma mobilização, um pretexto para ir para a rua, um passo muito longe que leva a uma mudança, ainda que esta causa primeira rapidamente se torne ultrapassada ou mesmo esquecida [1]. No final de setembro, Bagdá enfrentou manifestações estudantis que foram reprimidas de forma bastante clássica pelo governo e a data de domingo, 29 de setembro, é considerada o ponto de partida do movimento [2]: várias centenas de pessoas se reuniram naquele dia para protestar contra a remoção de Abdul Wahab al-Saadi que aconteceu dois dias antes. Este comandante do Serviço de Contra-Terrorismo do Iraque [3], um herói nacional na luta contra o ISIS, é muito popular em algumas partes da população. Para seus detratores, ele é antes de tudo o homem dos Estados Unidos dentro do aparato militar. O caso provocou uma mobilização muito forte na internet, notadamente via Twitter com a hashtag “Somos todos Abdul Wahab al-Saadi”.
Dois dias depois, começaram as manifestações em várias cidades do país. Em Bagdá, o ponto de encontro dos manifestantes é obviamente a Praça Tahrir, em frente à “Zona Verde” na margem oposta do rio Tigre. A remoção já passou e os participantes adotam os slogans clássicos iraquianos para a melhoria dos serviços básicos, para a criação de empregos ou contra a corrupção, uma reminiscência da revolta de 2018. Um manifestante disse: “Tudo o que queremos é viver e nada mais, queremos viver como o resto do mundo. Queremos direitos muito básicos, eletricidade, água, emprego e remédios. Não queremos poder, dinheiro ou propriedade, tudo o que pedimos é para viver” [Deutsche Welle]. E outro acrescentou: “Estou sem trabalho. Eu quero me casar. Tenho apenas 250 dinares (menos de um quarto de dólar) no bolso e os funcionários do estado têm milhões” [Recapitulações de dinares].
Enquanto os manifestantes tentavam atravessar a ponte Al-Jumariyah, que os separa da “Zona Verde”, eles foram recebidos por canhões de água e bombas de gás lacrimogêneo, aos quais responderam com pedras e construindo barricadas de tipo com pneus em chamas e lixo [4]. Mas a polícia também usou munição real; dois manifestantes foram mortos, um em Bagdá e outro em Nasiriya, e mais de 200 outros ficaram feridos.
No dia seguinte, quarta-feira, 2 de outubro, as forças militares e de segurança foram massivamente implantadas em Bagdá. As estradas principais foram bloqueadas por veículos blindados, blocos de concreto e arame farpado. A Internet foi cortada em todo o país (exceto no Curdistão); as autoridades, visando o Facebook, Twitter e WhatsApp, esperavam pôr fim à mobilização.
Mesmo assim, os manifestantes se reuniram na Praça Tahrir e em várias cidades provinciais, incluindo Basra, Najaf, Nasiriya, Wasit e Diwaniyah. Em Bagdá, a estrada que leva ao aeroporto (oeste da cidade) foi bloqueada com pneus em chamas. Os confrontos eclodiram em várias localidades, onde edifícios que simbolizam o poder, bem como as instalações de partidos políticos [5] e milícias foram invadidos. Pelo menos sete manifestantes foram mortos.
Enquanto denunciavam as ações de “desordeiros” e “infiltrados” [na França seriam chamados de “casseurs”, que significa quem participa de “quebra-quebra”] entre manifestantes pacíficos, as autoridades impuseram toques de recolher em várias cidades. Mas nada ajudou: as manifestações agora eram diárias em todo o sul do país e se transformavam em tumultos, geralmente ao anoitecer.
Em Bagdá, a Praça Tahrir se tornou em poucos dias um ponto de fixação a partir do qual os manifestantes tentaram chegar à “Zona Verde” forçando o caminho para a ponte sobre o rio Tigre. Mas os quase 500 metros da ponte foram fortemente defendidos pela polícia e segmentados por várias barreiras de concreto, pelas quais os dois lados lutam pelo controle [6]. Nos primeiros dias, as batalhas às vezes ocorriam ao redor da praça, por exemplo, em 3 de outubro em uma praça 500 metros mais ao norte, onde dois veículos blindados [Humvees] das forças de segurança foram incendiados pelos manifestantes, mas a violência foi depois restringida à margem do rio Tigre. Esta mobilização em grande escala no coração da capital é uma novidade em comparação com os eventos de 2018.
Depois de alguns dias, o movimento assume um aspecto antissistema e agora existe, além das demandas de natureza econômica básica, uma exigência bem explícita de renúncia do governo. Mas que força política poderia compensar a folga e, no processo, satisfazer os manifestantes?
Assim como em 2018, o governo parece estar dominado pela violência do levante e faz malabarismos desajeitados entre cenoura e pau. Um toque de recolher completo foi imposto em Bagdá e em várias regiões, os funcionários públicos (ou seja, a maioria dos trabalhadores) foram instruídos a ficar fora das ruas. Apesar das ordens para mostrar moderação, os membros das forças de segurança frequentemente usam suas Kalashnikov para assustar os manifestantes, às vezes também para atingir os mais determinados deles ou para escapar de situações complicadas. Porque os combates têm sido particularmente acirrados e, até 3 de outubro, já morreram 31 pessoas, entre elas dois policiais (o que não é pouca coisa) [7]. Dois dias depois, o número de mortos já era de 100 mortos e 4.000 feridos. Durante esse período, houve muitas prisões, mas os manifestantes geralmente eram libertados após algumas horas em troca da assinatura de uma promessa de não voltar às ruas.
Do lado da cenoura, o primeiro-ministro Adel Abdul Mahdi explicou aos manifestantes que suas “demandas legítimas” foram ouvidas e que eles podem voltar para casa. Ele anunciou medidas sociais ambiciosas, incluindo seguro-desemprego, a construção de 100.000 unidades habitacionais e distribuição de terras subsidiadas, mas não definiu um cronograma. Ele se comprometeu a se reunir com os manifestantes para ouvir suas reivindicações e afirmou que os mortos durante as manifestações serão considerados “mártires”, o que significa que suas famílias terão direito a diversos benefícios.
Por sua vez, o muito influente Muqtada al-Sadr hesita (como sempre) entre elogiar a ordem (o poder, onde agora tem um pé dentro) e questionar o estabelecido: denunciou a violência dos serviços de segurança e apelou aos seus apoiadores para organizar manifestações pacíficas. Mas, em 4 de outubro, outra reviravolta acrobática, ele agora exige nada menos do que a renúncia do governo (que sua coalizão havia levado ao poder [ver a primeira parte deste artigo]) e a organização de eleições antecipadas!
No domingo, dia 6, a mobilização da polícia foi impressionante e a dos manifestantes muito limitada. As procissões foram impedidas de chegar à Praça Tahrir, o que levou a confrontos, especialmente no distrito de Sadr City, onde muitos manifestantes foram mortos ou feridos.
No dia seguinte, a calma voltou, a Internet foi restaurada e o protesto terminou. O número oficial de mortos nesta semana de violência foi de 157 mortos, incluindo 8 policiais, e cerca de 6.000 feridos. Além disso, 51 edifícios públicos e 8 sedes de partidos políticos foram incendiados. Algo nunca visto antes. O fim repentino dos protestos não é em si inédito, já que os movimentos sociais às vezes morrem de forma inexplicada e os comentaristas tentam, em vão, determinar a causa. A mídia ocidental geralmente não se interessa por isso, mas essa interrupção repentina pode ser facilmente explicada… pelo peso da religião: a celebração de Arba’een, que aconteceria este ano nos dias 19 e 20 de outubro [8]. Esta peregrinação xiita, parte da qual é feita a pé, atrai milhões de crentes de todo o mundo (mas principalmente de iraquianos) que vão para a cidade sagrada de Kerbala. Durante este período, o sul do país está paralisado, as cidades e vilas xiitas estão vazias e as estradas ficam cheias de peregrinos; a polícia e o exército são amplamente implantados para garantir a segurança.
Mas a política nunca está longe. Em 20 de outubro, alguns peregrinos agitam bandeiras iraquianas e entoam “Liberte Bagdá, fora corrupção!” ou “Não para a América! Não a Israel! Não à corrupção!”. Muqtada al-Sadr de fato pediu a seus apoiadores que dessem um aspecto anticorrupção a essa jornada.
2. Do motim à reforma? (25 a 27 de outubro)
Depois do Dia de Arba’een, esses milhões de peregrinos ainda não partiram para que as coisas voltassem ao normal. Não será bem assim. Já no dia 21, as forças de segurança iraquianas estavam começando a erguer fortificações em torno da “Zona Verde”. De fato, algumas pessoas já planejaram que a “retomada da turbulência social” [“rentrée sociale”] terá início na sexta-feira, 25 de outubro, ao sair das mesquitas, no aniversário da posse do primeiro-ministro. Os convites para manifestação naquele dia bem como as reuniões se multiplicaram nas redes sociais por iniciativa de ativistas da sociedade civil. Muqtada al-Sadr informou cautelosamente a seus apoiadores que eles têm “o direito de participar” dessas reuniões. O prazo dado pelo Grande Aiatolá Ali al-Sistani ao governo para responder às demandas dos manifestantes de outubro e para lançar luz sobre a violência que sofreram também expirou nesta data. Para piorar a situação, a comissão encarregada de investigar esses fatos deu suas conclusões alguns dias antes e anunciou a demissão de alguns oficiais. Nada que acalme uma população obcecada por boatos sobre tramas e presença de atiradores. Pelo contrário. A raiva está crescendo e, em antecipação, muitos iraquianos estavam estocando alimentos e combustível.
Na sexta-feira, dia 25, em seu sermão, o Grande Aiatolá exortou as forças de segurança e os manifestantes a “mostrarem moderação”. No início da tarde, a mobilização foi impressionante. Alguns manifestantes ocuparam os telhados dos edifícios que provavelmente hospedariam atiradores, incluindo uma torre abandonada de 18 andares com vista para a Praça Tahrir e a Ponte Al-Jumariyah, conhecida como Restaurante Turco.
As manifestações ocorreram em várias cidades no sul do país, incluindo Basra, Wasit, Nasiriya, Najaf, Karbala, Samawah, Amarah e Diwaniyah. As demandas econômicas ainda estavam muito presentes (água, luz, empregos, saúde). Notamos a notável participação, particularmente retratada, de algumas mulheres, inclusive mulheres sem véu, no meio de milhares de manifestantes do sexo masculino; uma delas disse: “Eu quero a minha parte do óleo!”.
Na capital, os manifestantes que se aproximavam da “Zona Verde” foram repelidos. Os confrontos eclodiram em muitas cidades. Uma parte do edifício da governadoria de Basra foi incendiada e dois carros da polícia sofreram o mesmo destino. A passagem da fronteira de Safwan foi bloqueada e incendiada. As instalações de um grupo de milícia foram atacadas com uma granada em Amarah, resultando em duas mortes. Durante o dia, pelo menos 27 ataques e queimadas de prédios oficiais ocorreram em todo o país, sem contar os ataques a escritórios de partidos ou casas de líderes políticos. O saldo do dia é particularmente pesado e sem precedentes: 63 mortos e 2.300 feridos! A maioria deles eram manifestantes mortos a tiros por munições reais das forças de segurança ou atingidos por disparos de gás lacrimogêneo de trajetória plana. Alguns teriam sido mortos por milicianos que defendiam suas instalações. Várias pessoas também morreram em incêndios em edifícios. Várias províncias estavam sob toque de recolher.
Em Bagdá, à medida que o confronto com a polícia se arrastava, os revoltosos acabaram erguendo barracas na Praça Tahrir para que ali passassem a noite e não precisassem retomar a praça no dia seguinte. Não muito longe dali, caminhões cheios de homens armados da milícia Sadrist Saraya al-Salam (Brigadas de Paz, ex-Exército Mahdi) foram posicionados para proteger os manifestantes. Uma presença longe de tranquilizar a todos (eles se retiraram após vinte e quatro horas).
No dia seguinte, as manifestações, motins e ataques a edifícios recomeçaram na metade sul do país; eles agora são diários. Dia após dia, o movimento se espalhou até mesmo para outras províncias, até então relativamente incólumes, onde os xiitas são minoria. Há relatos de manifestações estudantis em cidades como Tikrit (principalmente sunitas) ou, mais simbolicamente, em Mosul (Curdistão). Embora as reuniões geralmente fossem pacíficas, frequentemente se transformavam em tumultos noturnos. O toque de recolher parecia ser um meio de dissuasão, com os manifestantes às vezes até esperando que ele começasse antes de tomar as ruas.
Em Bagdá, a ponte que liga a Praça Tahrir à “Zona Verde” é o foco da atenção dos manifestantes. Armados com pedras e, mais raramente, com coquetéis molotov, tentaram repelir a polícia. Os mortos e feridos eram numerosos.
O domingo, 27 de outubro, foi um ponto de inflexão na mobilização. Durante esta nova semana, estudantes universitários e colegiais se juntaram ao movimento [9], incluindo estudantes religiosos da cidade sagrada de Najaf. No dia seguinte, o sindicato dos professores convocou uma greve nacional de vários dias em solidariedade. Juntaram-se os sindicatos de advogados, médicos, dentistas e engenheiros. Em muitas localidades, piquetes e protestos foram armados em frente às entradas dos prédios do governo para obstruir seu funcionamento.
A composição sociológica do movimento está, portanto, mudando. Não temos mais que lidar apenas com jovens proletários pobres de subúrbios desfavorecidos. Portanto, não é por acaso que as demandas estão mudando, ao passo que até agora eram antes de tudo materiais e muito básicas, e além disso havia apenas um ódio furioso dos corruptos. A ordem das prioridades mudou. Pela primeira vez, a imprensa fez ecoar testemunhos totalmente contrários ao que ouvíamos desde 2018, como aquele deste manifestante em Bagdá: “Perdemos o nosso país, não queremos terra, luz nem água, queremos ser livres e queremos derrubar este governo” [França 24]. Ou este médico de rua de 24 anos na Praça Tahrir [10]: “Nossas demandas são claras: mudar a lei eleitoral e realizar uma nova eleição que nos permita eleger a pessoa que queremos, não um partido que faz acordos às portas fechadas para decidir nosso futuro de acordo com seus próprios interesses” [The Washington Post].
As demandas são confusas e variadas. Mas, a partir de então, as reivindicações mais destacadas incluem a renúncia de todos os governantes, a revisão da lei eleitoral e da Constituição, o fim de um sistema baseado na etnia e identidade confessional, a diminuição do número de deputados, eleições antecipadas, redução do poder dos partidos, um governo de tecnocratas, um regime presidencial, etc.
A impressão que se segue é que há muito mais manifestantes e que o protesto está se tornando bem-humorado, quase alegre. De fato, no final de outubro, uma ligeira diminuição da violência era perceptível. O saldo oficial na época foi de 100 mortos e 5.500 feridos. Além disso, 98 edifícios foram danificados ou queimados. Mas não se tratava mais de simplesmente expressar raiva queimando tudo ao seu alcance; a reforma política é agora o lema. Uma questão em relação à qual o capital pode fazer concessões imediatas e de baixo custo; uma questão de conforto.
3. A forma do movimento
– A “Ocupa” no rio Tigre
Enquanto algumas tendas foram erguidas na Praça Tahrir durante os primeiros dias para fornecer um posto de primeiros socorros, áreas de descanso ou refeitórios, o objetivo era, atrás das linhas, fornecer suporte logístico para aqueles na linha de frente (300 metros adiante) que tentavam forçar a entrada na ponte Al-Jumariyah.
Gradativamente, dois fenômenos paralelos foram surgindo: por um lado, os confrontos nesta ponte diminuíram de intensidade e se transformaram em uma “guerra falsa” para proteger, simbolicamente, os manifestantes reunidos na praça. Por outro lado, a organização se expandiu rapidamente. Moradores, “empresários e lojistas, senão cidadãos comuns, que não podem participar das manifestações porque estão trabalhando” [11], traziam comida e água em solidariedade. Tornou-se necessário administrar a logística, organizar o preparo e a distribuição das refeições (principalmente porque a comida de graça atrai os habitantes mais pobres da capital), bem como os equipamentos (máscaras, capacetes). O restaurante turco tornou-se um anexo da praça e foram construídos dormitórios em alguns andares. Os trabalhadores manuais fizeram as ligações necessárias para abastecer a praça com água e luz. Os primeiros postos médicos improvisados deram lugar a uma enfermaria com médicos, enfermeiras e farmacêuticos voluntários, depois a um verdadeiro hospital. Os tuk-tuks (autorriquixás) fornecem transporte para os feridos.
Logo, dezenas de tendas foram erguidas, cobrindo toda a praça e transbordando para as estradas adjacentes. A praça é transformada em ponto de encontro de ativistas, sindicalistas, representantes tribais, membros da sociedade civil ou da classe média educada, espectadores, etc [12]. Há uma infinidade de estandes onde todos – associações, sindicatos, corporações, artistas – expressam suas demandas, dando à praça a aparência de um campo antiglobalização: uma tenda vira uma biblioteca militante, outra uma sala de cinema “revolucionária”, aqui se podem fazer propostas de emenda à Constituição, ali um estande promove o “made in Iraq” (contra produtos fabricados no Irã) ao lado de um vendedor de bandeiras tricolores, um escritório jurídico ou um estande do Partido Comunista do Iraque. Por sua vez, os “artistas de rua” decoram as paredes com pinturas murais políticas.
Com o passar dos dias, a praça se tornou um espaço de convivência mais confortável, restaurantes e vendedores ambulantes estão se expandindo rapidamente, cabeleireiros e barbeiros abriram lojas e, claro, salas de oração são abertas. Mas também é algo para se manter ocupado, porque os dias e as noites são longos, daí os shows e os torneios de xadrez. E depois tem o esporte: os maratonistas organizaram uma minimaratona, foram demarcadas quadras de vôlei e campos de futebol. Nas noites de jogos de futebol (como parte das eliminatórias da Copa do Mundo de 2022), uma enorme multidão assiste ao jogo em uma tela gigante. E quando o Iraque ganhou a partida, a festa durou a noite toda.
Embora seja um memorial dedicado aos manifestantes mortos, a atmosfera é festiva e bem-humorada. Como em Beirute, a música Baby Shark está a caminho de se tornar o (não muito guerreiro) hino da praça. Esse estilo de acampamento pode ser encontrado, em menor escala, em outras cidades, notadamente em Basra e Nasiriya.
A organização deve ser impecável porque, para algumas pessoas, deve refletir a imagem que têm do Iraque ideal… e evocam “uma espécie de mini-estado” na praça [13]. Assim, grupos de voluntários varrem as ruas e coletam lixo. Daí também a questão da segurança. Nos primeiros dias, os manifestantes montaram bloqueios de estradas ao redor da praça para redirecionar o tráfego. Em seguida, um serviço da ordem (SO) foi criado para controlar todas as entradas da praça; as pessoas são revistadas para evitar que armas e itens perigosos sejam contrabandeados. Se necessário, os indivíduos suspeitos são “denunciados” à polícia que patrulha as ruas adjacentes com o consentimento dos ocupantes [14]. As lojas (com cortinas fechadas) e os depósitos ao redor da praça são “protegidos” por SOs para evitar roubos ou saques. Enquanto muitos se orgulhavam do fato de que mulheres com carrinhos de bebê podiam se mover com segurança pela praça, os proletários mais determinados foram mandados embora.
– As mulheres
Outro dado marcante é que desde 27 de outubro as mulheres, até então ausentes da mobilização, se envolveram nas manifestações, embora ainda sejam uma minoria extremamente pequena. Na maioria das vezes, são mulheres universitárias e estudantes do ensino médio que se deslocam em grupo (frequentemente grupos só de meninas). Suas procissões às vezes são protegidas e supervisionadas por homens.
Sua presença é mais visível, claro, no centro da capital, a Praça Tahrir. Mas as mulheres podem ser maioria na cozinha comunitária, estande de primeiros socorros e arte de rua: “Essas mulheres e meninas ajudaram os feridos, carregaram os feridos, forneceram alimentos e suprimentos, pintaram slogans inspiradores nas paredes, lavaram roupas e limparam as ruas” [15]. Embora façam mais do que isso, a divisão do trabalho e a alocação de espaço continuam muito influenciadas pelo gênero.
Este envolvimento é uma novidade no Iraque, onde desde a década de 1990, e especialmente a partir de 2003, com a crescente islamização da sociedade, a situação das mulheres está piorando em todos os níveis (social, educacional, jurídico, trabalhista, violência, etc. [16]). Algumas pessoas consideram que o movimento de 2019 pode ajudar a mudar a visão “tradicional” de muitos iraquianos (e mulheres iraquianas), particularmente aquela que exclui as mulheres da vida política. Desse ponto de vista, vale ressaltar que as mulheres presentes na Praça Tahrir não são vítimas de assédio sexual generalizado ou violência (ao contrário do que aconteceu, por exemplo, em 2011 na Praça Tahrir do Cairo [17]).
Entretanto, pode-se perguntar qual é a situação além do centro de Bagdá, onde se concentram ativistas, estudantes e jovens da classe média, especialmente porque, não esqueçamos, a participação das mulheres ainda é uma minoria. Nas províncias, as manifestações costumam ter uma característica ainda mais dominada por homens. Embora algumas das principais cidades do país tenham acampamentos semelhantes ao da Praça Tahrir, a metade sul do país é conhecida por seu conservadorismo e as tradições tribais são dominantes lá, principalmente no que diz respeito às mulheres (necessidade de mostrar humildade, casamentos arranjados, sistema de dote, assassinatos por honra, etc.). As mulheres, especialmente as estudantes, muitas vezes têm que enfrentar a pressão familiar para se manifestar (algumas usam máscaras cirúrgicas, que são comuns entre os manifestantes, para evitar serem reconhecidas).
Por outro lado, assim que a situação fica mais tensa, assim que os confrontos começam, não vemos mais nenhuma mulher nas ruas, os distúrbios no Iraque são assunto de homem – isso obviamente não é uma questão de bravura. A propósito, mais de 99% dos manifestantes mortos são homens.
– Insurgência?
O que chama a atenção é o contraste entre o clima festivo da Praça Tahrir, “transformada em um polo carnavalesco” [18], e a dureza dos confrontos que acontecem a 500 metros de distância.
Depois de alguns dias de ocupação, a massa de manifestantes era tanta que transbordou da praça e aos poucos tomou conta da margem do rio Tigre a montante da ponte Al-Jumariyah. Devido ao crescente formalismo da Praça Tahrir, a ponte deixou de ser um ponto por onde se pretendia chegar à “Zona Verde”. A partir de então, todos defenderam suas posições em um confronto impressionante que parecia um espetáculo (os manifestantes tomaram posse de uma primeira barreira de concreto, e cada lado se posicionou em uma posição abrigada [19]). Os elementos mais radicais saíram, portanto, da praça e tentaram bloquear ou mesmo cruzar as três pontes localizadas mais ao norte (Al-Sinak, Al-Ahrar e Al-Shuhada). As forças policiais tentaram impedi-los. Muitas lutas aconteceram na Praça Al-Khalani e na Rua Al-Rasheed, pontos estratégicos de acesso a esse setor. Lutas eram geralmente muito violentas; com manifestantes (homens muito jovens) atirando pedras (muitas vezes com estilingues) e coquetéis molotov contra a polícia que respondeu com gás lacrimogêneo, pedras e às vezes coquetéis molotov! A aparência desleixada das forças de segurança às vezes era tal que se tinha a impressão de assistir a duas gangues rivais lutando entre si armadas com paus. Exceto que um deles tinha Kalashnikovs. Nessas condições, um dia de tumulto sem morte ou ferimentos graves é um milagre. Vários membros das forças policiais também morreram durante os confrontos.
Na capital, porém, o confronto mantém um aspecto simbólico e ritualizado. Não se estende além do distrito ao norte da Praça Tahrir, não há destruição, quase nenhum saque e nenhuma tentativa de espalhar o conflito para outras partes da cidade (exceto muito ocasionalmente). Além disso, é claro que, para muitos, não se trata de atacar o Estado e as forças policiais em geral, já que policiais estão circulando pela Praça Tahrir e colaborando com o serviço de ordem dos manifestantes (no dia 1º de dezembro, soldados e manifestantes limparam a rua Al-Rasheed juntos). Na capital, a estratégia policial parece ser de fato antes de tudo defensiva – defendendo a “Zona Verde” e as rotas estratégicas que levam a ela. Isso pode ser explicado principalmente pela fraqueza das forças anti-motim, que provavelmente não têm os meios para recapturar a Praça Tahrir. Tal recaptura exigiria o exército ou a PMU e provocaria um banho de sangue com consequências políticas incertas [20]. Nas cidades de província, esse aspecto ritualizado da violência parece muito menos presente e a destruição material é comum.
No final de novembro, quando um ressurgimento de confrontos era perceptível, parecia que alguns dos manifestantes eram mais críticos da ação dos revoltosos; alguns, retransmitidos pela mídia, inverteram a realidade evocando um movimento intrinsecamente pacífico dentro do qual elementos externos defendiam a violência e semeavam o caos. Podemos ver até mesmo alguns manifestantes se interpondo entre a polícia e os revoltosos (para dificultar a ação destes últimos).
– Bloqueando a economia?
Desde o início do movimento, os manifestantes têm como alvo a infraestrutura econômica – campos de petróleo, refinarias, estradas, pontes, passagens de fronteira, portos, aeroportos – que consideram ser de interesse estratégico. Algumas dezenas ou várias centenas deles bloqueiam o caminho que leva a esses locais e, acima de tudo, queimam pneus para impedir a passagem de caminhões e funcionários. É claro que não existe uma estratégia nacional desenvolvida, os bloqueios de estradas são, ao longo das semanas, erguidos e removidos repetidamente, dependendo da mobilização dos manifestantes, da repressão que sofrem ou das negociações locais que ocorrem entre as autoridades, xeiques tribais e potenciais representantes dos manifestantes (por exemplo, um chefe tribal pode ser acionado para recrutar cerca de dez pessoas contra o desbloqueio de um local). O caso mais emblemático é o do porto de Umm Qasr, perto de Basra, cujos acessos são frequentemente bloqueados. Os serviços administrativos do país também são alvo de inúmeros bloqueios e ocupações que paralisam seu funcionamento.
As ações de greve parecem afetar de forma intermitente apenas o setor público. O setor privado é, como vimos, relativamente subdesenvolvido (sobre essa questão, consulte a “primeira parte”). O setor mais estratégico é o petrolífero e, como resultado, é muito provável que os trabalhadores sejam tratados um pouco melhor lá do que em outros lugares. Uma vez que a extração e exportação de petróleo são quase a única fonte de receita do país, a prioridade do governo é garantir sua continuidade, portanto, as implementações de segurança adequadas. Funciona porque, apesar de dois meses de mobilização, o patamar das exportações de petróleo não foi afetado pelos acontecimentos. No máximo, foram relatadas algumas interrupções no fluxo de petróleo de alguns campos de petróleo para Umm Qasr, ou uma desaceleração na atividade nas refinarias (às vezes levando à escassez local de combustível), mas esses impactos são relativamente marginais [21]. Embora seja surpreendente que este setor não esteja, de uma forma ou de outra, no centro dos protestos, a situação ainda deve mudar [22].
No entanto, bloquear o porto de Umm Qasr, principal ponto de entrada das importações, custaria à economia iraquiana vários bilhões de dólares [23]. Dezenas de navios não conseguiram descarregar sua carga. Este é um problema real para a entrada de produtos alimentares (cereais, óleo, açúcar, etc.) dos quais o Iraque depende muito. O preço de alguns alimentos (principalmente de origem vegetal) aumentou fortemente na capital.
Por fim, deve-se notar que a atividade econômica das empresas (especialmente as menores) também é prejudicada por frequentes apagões de internet.
– Contra o Irã
Já mencionamos na primeira parte os aspectos anti-iranianos, soberanistas e nacionalistas das manifestações de 2018. Eles são muito perceptíveis também em 2019. Nas cidades do sul do Iraque, os manifestantes frequentemente visam os vários consulados iranianos na região (e alguns de seus funcionários foram evacuados no início de outubro). O consulado em Kerbala, por exemplo, foi invadido várias vezes e os manifestantes tentam regularmente hastear lá a bandeira do Iraque. Nas ruas, eles atacam retratos do Grande Aiatolá Khomeini ou do General Qassem Soleimani. Em Najaf, eles renomearam a Rua Khomeini como Rua da “Revolução de Outubro”. As declarações do Guia Supremo Iraniano, Ali Khamenei, que descreve as manifestações como resultado de um complô americano-sionista, contribuem para exacerbar a ira dos iraquianos.
Esse foco no controle iraniano sobre o país (associado à corrupção política) continua muito presente e até atingiu o pico no final de novembro, quando as manifestações foram severamente reprimidas no Irã. O consulado da cidade sagrada de Najaf foi, portanto, queimado duas vezes por rebeldes.
4. Da “Zona Verde”
A partir de 25 de outubro, a situação é tão confusa que as forças políticas representativas da burguesia iraquiana hesitam sobre as medidas a serem implementadas para pôr fim aos protestos.
As forças de segurança estão mobilizadas por todo o lado, mas o governo parece privilegiar sobretudo a utilização de unidades policiais, especialmente a polícia de choque, considerada mais confiável e para o qual foram recrutados muitos ex-milicianos da PMU nos últimos anos. Em alguns casos, o exército é deslocado como reforço, incluindo unidades muito leais (mas mal adaptadas), como as do Serviço Contra-Terrorista. Mas, a cada vez, significa correr o risco de ver essas unidades cometerem um massacre ou, ao contrário, mostrar pouco espírito de luta (no dia 5 de novembro, manifestantes capturaram um veículo blindado em Umm Qasr). Em Kerbala, em duas ocasiões, homens uniformizados desarmados puderam ser vistos mostrando seu apoio aos manifestantes ou marchando lado a lado com eles. O governo está ciente de que algumas unidades podem estar desobedecendo a ordens de repressão muito forte.
No domínio da segurança, importa acrescentar que, durante este período, o acesso à Internet foi repetidamente encerrado porque, segundo o Primeiro-Ministro, estava a ser utilizada para “espalhar violência e ódio”. Essas interrupções, que duram algumas horas ou alguns dias, às vezes são limitadas a redes sociais e aplicativos de mensagens apenas – embora sejam baseadas em uma tecnologia menos poderosa do que a usada no Irã ao mesmo tempo, uma vez que os aplicativos VPN são capazes de contorná-los.
A resposta do Estado também deve ser política a fim de separar os manifestantes mais moderados dos mais radicais. Mas os políticos estão divididos e os primeiros anúncios de uma remodelação do gabinete deixam os manifestantes completamente frios. Em 26 de outubro, os deputados sadristas e da Aliança Fatah (o braço político do PMU) retiraram seu apoio ao governo e exigiram eleições parlamentares antecipadas (e alguém se pergunta quem poderia se beneficiar delas) bem como uma mudança na lei eleitoral e na Constituição. A intervenção do general iraniano Qassem Soleimani [24], que então viajou para a capital iraquiana, foi necessária para que a Aliança Fatah restaurasse seu apoio ao primeiro-ministro 24 h depois.
Por sua vez, o presidente iraquiano, Barham Saleh, prometeu uma nova lei eleitoral e eleições antecipadas, que o primeiro-ministro se apressou em considerar inviáveis. Além disso, não há garantia de que o anúncio de tal eleição seria suficiente para desmobilizar a população como na França em junho de 1968.
Enquanto uma comissão parlamentar começava a redigir emendas à Constituição, a barganha e as negociações estavam bem encaminhadas e, em 9 de novembro, soubemos que as principais forças políticas do país acabavam de chegar a um acordo para manter o primeiro-ministro Adel Abdul Mahdi no cargo e pôr fim ao protesto “através de todos os meios”. No entanto, um programa de reformas, em particular anticorrupção, bem como emendas constitucionais é implementado para satisfazer a população. Este é também o trabalho do general Soleimani, que até conseguiu fazer com que Muqtada al-Sadr parasse de convocar novas eleições (uma ideia que agora é apoiada apenas pelos Estados Unidos). O anúncio deste acordo, embora o movimento de protesto pareça ter parado, não é suficiente para quebrar o impasse.
5. Sobre a ameaça de guerra civil
Apesar da vitória sobre o Estado Islâmico, a situação de segurança no Iraque está longe de ser ideal. Os últimos partidários do Califado parecem estar mais ativos (talvez por causa dos acontecimentos na Síria e da morte de Abu Bakr al-Baghdadi). E a isso devemos adicionar as ações de outros pequenos grupos guerrilheiros islâmicos sunitas. Todos eles se beneficiam da mobilização das forças de segurança contra os manifestantes. Não passa uma semana sem que uma patrulha militar seja emboscada ou que caia morteiros em um aeroporto, uma base militar ou mesmo na “Zona Verde”. Também há ativistas executados, sequestrados ou desaparecidos, sendo questionável se não é obra de espiões ou milicianos. Em Basra, por exemplo, em 3 de outubro, homens mascarados mataram um ativista conhecido e sua esposa em sua casa. No dia 5 de outubro, homens armados e mascarados atacaram as instalações de várias emissoras de televisão da capital, espancando funcionários e saqueando a cena. Em 1º de novembro, em Nasiriya, um comandante da PMU foi assassinado. Em 15 de novembro, as explosões feriram e mataram vários manifestantes em Nasiriya e Bagdá, etc. Quanto aos “atiradores não identificados” atirando em manifestantes pacíficos e policiais, eles são, sem dúvida, essencialmente uma lenda urbana.
A situação é confusa, mas, na verdade, nenhuma das forças políticas locais têm interesse na eclosão de uma guerra civil. Todo mundo sabe que esse evento também pode ser desencadeado involuntariamente [25]. Todas as partes interessadas locais, assim como o Irã, têm pressionado até o momento para que a situação não degenere, por isso que os milicianos do PMU estão na segunda linha desde o início dos eventos. Durante os primeiros dois meses de mobilização, os incidentes armados diretamente ligados ao protesto foram extremamente raros e com pouco impacto.
No final de novembro, paralelamente ao ressurgimento da violência (entre manifestantes e policiais), havia sinais de aumento da tensão no nível de segurança (nas tribos e na PMU), o que não era um bom augúrio. Como veremos a seguir, o movimento parece ter ficado paralisado e parece não haver saída. E mesmo que os ativistas locais descrevam a mobilização como sempre constante, isso é, pelo menos, duvidoso. Por outro lado, o número de mortos certamente está aumentando. Neste contexto, não seria surpreendente se os manifestantes mais determinados estivessem planejando ir mais longe em sua luta contra as forças policiais – vimos na França, à força dos motins, com os coletes amarelos expressando seu desejo de “voltar na próxima vez com uma arma”, mas no Iraque a proximidade com armas é bem diferente da França. Também no final de novembro, parece que os manifestantes usaram artefatos explosivos e há rumores de disparos de arma de fogo contra as forças de segurança.
6. Estagnação ou recurso à violência? (1 de novembro – 29 de novembro)
A sexta-feira, 1º de novembro, encerrou simbolicamente a semana que viu o movimento de protesto assumir uma nova cara com a entrada em cena dos sindicatos, classes médias e estudantes. Após a oração, dezenas de milhares, talvez centenas de milhares de “Bagdadis” reuniram-se na Praça Tahrir, provavelmente a maior manifestação da história do Iraque desde 2003. À noite, confrontos violentos acontecem com a polícia. Na própria Praça Tahrir, a situação se estabilizou e os confrontos na ponte Al-Jumariyah diminuíram de intensidade, concentrando-se doravante nas três pontes mais ao norte. Na segunda-feira, dia 4, em Bagdá e Salhiya, os manifestantes tentaram se aproximar dos prédios de rádio e televisão, mas foram repelidos. Há mais novos mortos na capital.
No final da semana, o governo, que notou a situação de impasse, mas também a crescente participação no movimento de uma classe média a princípio pouco familiarizada com o confronto físico, contou novamente com uma forte presença coercitiva. Na noite de quinta-feira, dia 7, os acampamentos dos manifestantes são atacados em Basra e Kerbala e em muitas cidades a polícia está na ofensiva. Houve muitas baixas e um grande número de prisões (agora são 300 mortos e mais de 15.000 feridos). Quando o porto de Umm Qasr retomou as operações, os sindicatos de professores pediram para voltar ao trabalho e, no sábado, as principais forças políticas anunciaram que concordariam em manter o primeiro-ministro no cargo (conforme exposto acima). Todos acreditavam que este teria sido um ponto de inflexão e que o fim de semana poderia paralisar o movimento.
No domingo, dia 10, a semana começou com manifestações em várias cidades, mas na capital a mobilização foi bem menor do que costumava ser. Os confrontos agora se concentravam na Praça Al-Khalani, que as forças de segurança tentavam apreender (ponto estratégico de controle de acesso às pontes da região). À noite, na Praça Tahrir, enquanto os combates ocorriam nas proximidades, os manifestantes lançaram balões brancos no céu em sinal de paz.
Nos dias seguintes, novos apelos à greve de professores e alunos permitiram que as fileiras de manifestantes aumentassem. Enquanto uma árvore de Natal decorada com bandeiras iraquianas [26] era erguida na Praça Tahrir, perto de Basra, pela enésima vez, os moradores bloquearam os acessos ao porto de Umm Qasr, a vários campos de petróleo, áreas industriais e ao aeroporto internacional da cidade.
Os confrontos em torno da Praça Al-Khalani ainda foram particularmente violentos e vários manifestantes morreram lá. Após várias noites de luta, os manifestantes desmontaram as imponentes barreiras de concreto instaladas pela polícia, recuperaram o controle da praça e parte da ponte Al-Sinak e apreenderam um imponente estacionamento de vários andares com vista para a entrada da ponte que eles converteram em posto de observação e dormitório.
A quarta semana consecutiva de mobilização começou em 17 de novembro com numerosos chamados por um dia de greve geral do movimento Sadrista e de várias organizações sindicais, incluindo, talvez pela primeira vez, um sindicato de trabalhadores do petróleo [27]. A convocação de uma greve, no entanto, tem efeito real apenas no setor público. O dia começou como de costume com vários bloqueios de estradas e foi marcado em Bagdá por confrontos em torno da ponte Al-Ahrar. Paradoxalmente, o porto estratégico de Umm Qasr retomou suas atividades… para ser novamente bloqueado no dia seguinte. No entanto, nos dias que se seguiram, a mobilização diminuiu e o Ministério do Interior pode, ainda na terça-feira, anunciar o fim do “alerta máximo”. Muitos, doravante, acreditam que o restabelecimento da calma é possível, e no dia 20 de novembro importantes chefes tribais do sul do país foram recebidos pelo Primeiro-Ministro para discutir as demandas dos manifestantes. À noite, os ocupantes da Praça Tahrir dançavam e tocavam música… mas a batalha pelo controle das pontes ainda estava feroz, e o tributo daquela noite de confrontos ficou mais pesado do que “normalmente” – quatro manifestantes foram mortos e dezenas de outros feridos (nesta fase, houve cerca de 330 mortos e 15.000 feridos em todo o país desde o início do movimento).
No dia seguinte, mais oito manifestantes foram mortos em Bagdá e os confrontos eclodiram em Kerbala. Os confrontos também ocorreram em torno do porto de Umm Qasr, mas os manifestantes que ocupavam os acessos desde segunda-feira foram expulsos. Na Praça Tahrir, os xeiques recebidos no dia anterior foram vaiados [28] e, durante a noite, foi o escritório de Assuntos Tribais em Nasiriya que foi incendiado por manifestantes. Os combates recomeçaram com maior força em torno das pontes de Bagdá, causando cerca de mais dez mortes. Mas, a partir daí, novos focos de violência desenfreada apareceram: Kerbala, mas acima de tudo Najaf e Nasiriya. Há vários dias, os manifestantes bloqueiam as principais pontes desta que é a quarta maior cidade do país e capital da província de Dhi Qar, a mais pobre do Iraque.
A última semana de novembro começou com bloqueios de estradas e manifestações em todo o país, mas os confrontos foram muito mais intensos do que nos dias anteriores (13 manifestantes mortos no domingo). Com o passar dos dias, o nível de violência aumentou e o número de mortos também.
Em Bagdá, a situação ao redor das pontes permaneceu tensa. No dia 25, um artefato explosivo foi lançado contra os policiais, ferindo cerca de dez deles. Dois dias depois, em Basra, outro artefato explosivo foi direcionado a um policial. Ainda em Basra, embora os manifestantes ainda estivessem mobilizados, eles removeram as barreiras após negociações com as autoridades. O resto do sul do Iraque está em chamas: motins em Samawa, quartéis da polícia atacados na Babilônia, um banco incendiado em Kerbala, etc.
Na cidade sagrada de Najaf, onde há relatos de tiros contra a polícia, as instalações de um partido islâmico foram incendiadas por manifestantes e, então, no dia 27, foi a vez (nada menos que) do consulado iraniano ser engolfado em chamas. Mas é em Nasiriya que a luta parece mais violenta, onde manifestantes atearam fogo no prédio da governadoria e na casa de um membro do parlamento, o que resultou em um alto número de mortos. A Internet foi fechada na cidade. No dia 28, as forças de segurança, que receberam reforços militares de Bagdá, tentam limpar as pontes sobre o Eufrates, causando um novo massacre. Em retaliação, um edifício das forças de segurança foi incendiado e o do comando militar da província sitiado. O número de mortos foi de 46 (33 em Nasiriya, 11 em Najaf e 2 em Bagdá), um dos dias mais mortais desde o início do movimento.
À noite, combatentes tribais armados com Kalashnikovs bloquearam alguns acessos à cidade para impedir a chegada de novas unidades policiais. Em Najaf, por outro lado, as milícias PMU chegaram como reforços, equipadas com veículos blindados, a fim de “proteger os santuários religiosos”. Nos dias seguintes, apesar do toque de recolher, as procissões fúnebres reuniram milhares de habitantes. A situação é explosiva… e o primeiro-ministro anunciou sua renúncia.
Fim da segunda parte.
Observação do autor: A conclusão deste texto, “De la crise de l’État”, será publicada em breve.
Notas
[1] – O terremoto social no Líbano de 17 de outubro de 2019 é causado pelo anúncio de um imposto sobre as mensagens da WhatsApp.
[2] – Deve-se lembrar aqui que, no Iraque, o fim de semana vai de sexta-feira a sábado e o domingo é o primeiro dia da semana.
[3] – O Serviço Antiterrorista Iraquiano representa, com sua “Divisão de Ouro”, a ponta de lança do exército iraquiano. Colocado sob a autoridade direta do Primeiro-Ministro, equipado e supervisionado pelos americanos, participou ao lado das Unidades de Mobilização Popular (UGPs, equipadas e supervisionadas pelos iranianos) da recaptura, em 2016-2017, dos territórios detidos pela ISIS.
[4] – Ainda não se conhecem os paletes (plataformas de carga) no Iraque.
[5] – Com exceção das organizações Sadristas e do Partido Comunista.
[6] – Foi a partir da Praça Tahrir e através desta ponte que, em 2016, os manifestantes dos protestos contra a corrupção liderados por Al-Sadr entraram na “Zona Verde”.
[7] – Deve-se notar que, no Oriente Médio, disparar munição real (com uma Kalashnikov) acima das cabeças dos manifestantes para assustá-los e dispersá-los é uma prática comum para as autoridades responsáveis pela aplicação da lei. No entanto, a manobra é perigosa e pode, mesmo não intencionalmente, causar ferimentos ou morte. Este método é muito banalmente usado nas manifestações que evocamos neste texto. Visar especificamente um manifestante é, portanto, apenas mais um passo facilmente dado por um policial no meio de um confronto violento, mesmo sem ordens específicas de seus superiores.
[8] – Esta celebração ocorre no 20º safar do calendário muçulmano. Comemora o fim do período de luto em honra do Imam Hussein (filho de Ali e Fátima, neto de Muhammad) após o seu assassinato no ano de 680 em Kerbala. Reunindo milhões de fiéis a cada ano (15 milhões em 2018, talvez 20 milhões em 2019, incluindo 3,5 milhões de iranianos), esta peregrinação é o maior encontro religioso anual do mundo.
[9] – Isto pode ter começado como uma reação ao espancamento de um estudante em uma manifestação anterior.
[10] – Os jornalistas ocidentais estão agora mais propensos a encontrar interlocutores com este tipo de discurso e, portanto, os favorecerão, particularmente porque correspondem a seu próprio ponto de vista.
[11] – Mustafa Habib, “Visiting The Square In Baghdad, Where Protestors Rule A Utopian Iraq”, niqash.org, 7 de novembro de 2019.
[12] – Embora provavelmente com um pouco mais de moralidade do que nas rotundas francesas de 2018, há também encontros de um tipo completamente diferente. A imprensa relata assim a celebração do casamento de dois médicos voluntários na Praça Tahrir (em 16 de novembro).
[13] – “Angry Iraqis pour into the streets in protest”, kuwaittimes.net, 2 de novembro de 2019.
[14] – Sofia Barbarani, “Protesters say Tahrir Square is everything Iraq is not”, aljazeera.com, 12 de novembro de 2019.
[15] – “Peaceful Activities Continue Despite Bullets from the Government”, iraqicivilsociety.org, 25 de novembro de 2019.
[16] – Voir Myriam Benraad, L’Irak par-delà toutes les guerres. Idées reçues sur un état en transition, Paris, Le Cavalier Bleu, 2018, p. 75-81.
[17] – Mustafa Habib, “How Iraq’s Protests Are Also Changing The Country’s Culture”, niqash.org, 28 de novembro de 2019.
[18] – “Deadly bomb explosion hits Baghdad amid anti-gov’t protests”, aljazeera.com, 16 de novembro de 2019.
[19] – Postados no restaurante turco, os manifestantes tentam cegar a polícia com lasers.
[20] – É sem dúvida para evitar um tal impasse que, em novembro de 2019, o regime iraniano optou por uma repressão muito severa desde as primeiras manifestações.
[21] – “A Bagdad, les manifestants craignent un retour au pire”, L'Orient le jour, 6 de novembro de 2019.
[22] – O longo protesto iraniano de 1978 foi liderado pelos trabalhadores do petróleo, um setor de atividade vital para o regime; o quase total bloqueio da produção e das exportações infligiu um golpe fatal à ditadura do Xá. Entretanto, estes trabalhadores só entraram em greve vários meses após o início do movimento. Ver: Tristan Leoni, La Révolution iranienne. Notes sur l'islam, les femmes et le prolétariat, Entremonde, 2019, 264 p.
[23] – Lawk Ghafuri, “Human rights and economic concerns grow as internet curfew continues across Iraq”, rudaw.net, 11 de novembro de 2019.
[24] – Qassem Soleimani é o comandante da Força Al-Quds, uma unidade de elite da Guarda Revolucionária Islâmica do Irã (o pasdaran) responsável pelas operações externas do regime. Ele faz visitas frequentes ao Iraque.
[25] – Somente atores externos hostis ao Irã, como os Estados Unidos ou Israel, têm interesse em ver a situação no Iraque aumentar (mas até que ponto?); a Arábia Saudita também tem interesse, mas como vizinha pode sofrer consequências infelizes (insegurança, imigração). Entretanto, iniciar conscientemente uma guerra civil é muito mais complicado e incerto do que algumas pessoas pensam. Quanto à pergunta “quem se beneficia do crime?”, não é tão relevante: “Se admitirmos que as conseqüências da ação social não correspondem sistematicamente aos resultados previstos no início, torna-se difícil considerar que podemos deduzir mecanicamente das consequências da ação e daqueles a quem elas ‘beneficiam’ a identidade dos indivíduos ou grupos que estão na origem da ação”, cf. Laure Bardiès, “Pas si élémentaire mon cher Watson!”, DSI, No. 143, Setembro-Outubro 2019, p. 58.
[26] – Os distritos centrais de Bagdá ainda são um pouco mistos do ponto de vista confessional, mas, como no resto do país desde 2003, os cristãos estão começando a ser raros lá.
[27] – Em 16 de novembro, no Irã, após o anúncio surpresa do governo de um aumento no preço da gasolina, surgiram manifestações em várias cidades. Este foi o início de um protesto que durou vários dias e foi duramente reprimido.
[28] – Vários líderes tribais recusaram o convite do Primeiro-Ministro, incluindo os de Kerbala.
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Não somente arde Paris... (Maio de 2019)
Proletarios Internacionalistas
Notas sobre os coletes amarelos
Se há uma imagem que é costumeiramente repetida no movimento dos coletes amarelos é a de manifestações que rompem um cordão policial, ou expulsam a polícia de choque a pedradas, ou simplesmente organizam uma barricada de maneira a bloquear a via e saquear as lojas de luxo, enquanto que de pulmões abertos, cheios de adrenalina, cantam com orgulho o hino La Marseillaise. É uma boa imagem para expressar a natureza confusa e contraditória do movimento. Em qualquer manifestação poderão ser encontradas reivindicações do Referendum de Iniciativa Cidadã (RIC) e da saída da União Europeia para defender a economia nacional, ao mesmo tempo em que algumas bandeiras francesas e regionais ondulam aqui e ali com certa parcimônia. Tudo isto convive no movimento com agressões constantes à propriedade privada através de saques e piquetes de greve, a criação de laços de solidariedade, a apropriação de espaços de encontro e associação proletária: em definitivo, o questionamento prático da democracia. Ao mesmo tempo, é visto em toda parte uma forte reivindicação da nação e de seus símbolos, dentre os quais a Revolução Francesa exerce ao mesmo tempo o papel de símbolo de orgulho patriota e de sublevação contra a tirania e a miséria.
Os coletes amarelos são - se alguém ainda duvidava - um movimento proletário. Como em todo movimento proletário, nele se expressa o proletariado realmente existente e o mundo que ele antecipa. O primeiro advém da confusão atual, de nossa fraqueza enquanto classe, da falta de memória que os vencedores nos expropriaram como vencidos. Porém, parte também da defesa instintiva, inevitável, de algumas necessidades que o capital deve negar para poder produzir-se. Esta defesa de suas necessidades empurra o proletariado a negar, por sua vez, ao capital e seu domínio sobre nossas vidas, e não somente nisso, já que nesse processo o proletariado também se nega, se reafirma como comunidade de luta contra sua própria existência isolada, cidadã, democrática. Esta contradição essencial ao capitalismo, inerente à sua própria reprodução, é o que determina a possibilidade da revolução. Faz dela algo material, físico, alheia às nossas vontades e consciências individuais. É assim que o proletariado antecipa em seu combate um mundo diferente, ao mesmo tempo em que segue arrastando uma parte da merda deste, que fará parte da base de sua própria derrota se não consegue superá-la no processo.
Seja como for, esta contradição não pode ser esquecida por nenhuma análise militante que postule seriamente as características do movimento, seus avanços, limitações e o papel que exercem nele as minorias revolucionárias. Há dois enfoques, duas caras da mesma moeda, que ressurgem geralmente nas análises que são feitas de nossa classe e que nos incapacitam de compreender essa contradição. O primeiro é idealista e reduz o movimento ao que diz e pensa de si mesmo, omitindo o que faz para continuar com a bandeira que agita e que abandona assim que a menor demanda socialdemocrata aparece em seus panfletos. O segundo é objetivista e pretende compreender a natureza do movimento a partir de sua composição sociológica. Com o bisturi na mão, toma indivíduo por indivíduo e o coloca em uma ou outra coluna de acordo com sua renda, sua posição no sistema produtivo, o bairro em que vive ou os estudos que teve. Uma vez desmembrado, costura tudo muito estatisticamente e pretende ver nisso a totalidade: temos aqui, sob esse prisma ideológico, um movimento pequeno-burguês que conseguiu cooptar um proletariado embrutecido em prol da defesa da economia nacional. Voilá: o movimento dos coletes amarelos. O necessário já foi dito.
Junto com esses enfoques, que geralmente vem combinados, apareceu nos últimos meses outro de caráter antifascista, que retoma a visão idealista e objetivista que acabamos de demonstrar para se indignar com tantas bandeiras francesas e tanta Marseillaise. Reduz o movimento aos grupelhos de extrema-direita que o cortejam e se recorda com nostalgia das boas procissões de antigamente, claramente das esquerdas, nas quais a CGT entregava os manifestantes encapuzados à polícia e os “insubmissos” mélenchonistas[1] empunhavam –ali sim, sem problemas- suas bandeiras francesas por uma nova república.
Felizmente, o movimento dos coletes amarelos é outra coisa. Agora é certo, que afirmemos o caráter proletário do movimento, apesar de todas as ideologias e bandeiras que flutuam entre seus protagonistas, não quer dizer que as mesmas não tenham importância ou que não serão determinantes no fim. Pelo contrário, partindo da prática real que determina o movimento e lhe confere seu caráter de classe, percebemos e criticamos todas essas forças do inimigo que atuam para prendê-lo, neutralizá-lo e dar-lhe uma direção que se contrapõe às mesmas necessidades e interesses que determinam o próprio movimento. Sem essa compreensão da realidade não se faz outra coisa a não ser projetar imagens distorcidas do movimento para reduzi-lo a um movimento pequeno-burguês, de classe média, cidadão, de defesa do “verdadeiro povo francês”, dirigido por grupos de direita, etc. Com certeza nós não iremos colaborar nessa projeção espetacular que se une com todos os esforços da burguesia em liquidar esse movimento. Nossa intenção é, justamente, contribuir para impulsionar a potência proletária que a luta dos coletes amarelos contém e denunciar todas as forças que criam obstáculos no desenvolvimento da mesma.
No fim de outubro de 2018, começa a sentir-se um mal-estar geral pelo anúncio do governo Macron de uma subida dos impostos sobre a gasolina. Diante da tentativa da burguesia de fazer-nos pagar pela catástrofe ecológica e social na qual se baseia seu domínio, começam a produzirem-se bloqueios de estradas e piquetes organizados envolta das rotatórias. O movimento ecologista, uma corrente socialdemocrata onde quer que existam, chama a mudar o carro pela bicicleta se dói tanto o aumento do preço da gasolina. Claramente, ir trabalhar de bicicleta às seis da manhã e a 40 quilômetros de distância não é tão fácil. Tampouco é fácil fazer de bicicleta, no comércio mais próximo, que está a 10 quilômetros de distância, a compra do mês para toda uma família, mas isso não parece lhes incomodar.
O começo do movimento, centralizado pela primeira vez nas mobilizações de 17 de novembro, confunde todo mundo. A massividade das manifestações e dos bloqueios de estradas assusta a burguesia. As rotatórias convertem-se em lugares de reunião e discussão. Também se produzem as primeiras tentativas de separar o proletariado. Fala-se de uma revolta do campo contra a cidade, da pequena-burguesia das províncias -poujadista2 por essência- contra a burguesia boêmia3, da reação fanática do petróleo contra os ecólogos progressistas de boa fé e, com maior intensidade que todos os anteriores, dos brancos contra os negros e árabes, da France blanche-d’en-bas4 contra a migração abarrotada nos subúrbios das grandes cidades. Ao mesmo tempo, tanto Le Pe como Mélenchon tentam capitalizar o movimento e declaram seu apoio - quando esse começar a desenvolver-se e chegar a seus picos de maior combatividade, se aterão a um silêncio desconfortante.
Mas os esforços são em vão. Se algo caracteriza esse movimento é sua vitalidade, sua capacidade de resistência ante a repressão física e ideológica, ao menos a mais direta. As seguintes manifestações ou “atos”, uma a cada sábado, serão verdadeiras manifestações proletárias - nem convocadas e nem convocáveis por nenhum aparato do Estado - que vão superar rapidamente a luta contra o imposto na gasolina. O movimento começa a generalizar-se. Começa a falar-se de uma vida muito cara, salários muito baixos, uma miséria e precariedade permanente que não deixam ninguém respirar e põem em dúvida a possibilidade de sobreviver neste mundo. Porém, não há só o falatório. Alguns bloqueios de rodovia tornam-se piquetes contra as grandes plataformas de distribuição de mercadorias, geralmente em consonância com uma parte dos trabalhadores. As primeiras manifestações produzem-se nos bairros mais ricos das grandes cidades e os convertem em cenários ideais para o ataque direto à propriedade privada. Na ilha La Réunion, “departamento ultramar” francês, a luta adquire uma intensidade maior, ainda que mais breve devido à maior repressão. Durante duas semanas os coletes amarelos fecharão o porto, gerando um desabastecimento na ilha que vem acompanhado de saques organizados e distúrbios, assim como do fechamento de comércios, escolas e universidades. A situação torna-se tão incontrolável que o governo tem de impor o toque de recolher e mandar o exército para acabar com a mobilização.
Frente às expressões racistas e anti-imigração que surgem no começo de uma parte do movimento, e que servem de megafones para os grupos de extrema-direita, as lutas em La Réunion vão dar um exemplo de unidade de classe por cima das raças. Depois das primeiras manifestações o Comité Adama Traoré5 chamará a participar no Ato III, a manifestação de 1 de dezembro, que se converterá em uma batalha generalizada contra a polícia. Barricadas, saques, carros incendiados e ataques a comércios e bancos assolam os bairros ricos de Paris. O Arco do Triunfo, um dos maiores símbolos nacionais da República, é saqueado em seu interior e na sua fachada escreve-se: “Os coletes amarelos triunfaram”, “Macron renuncie”, “Aumentar a renda mínima” ou “Justiça para Adama”. É um escândalo completo. Ao mesmo tempo, as forças policiais atacam sem piedade os manifestantes. Somente nesse dia em Paris, atiram-se mais balas de borracha que no ano de 2017 inteiro. O número de feridos é 250, com vários olhos e mãos feridos e um homem em coma, além de mais de 300 detidos, uma cifra que aumentará a quase 2.000 no Ato IV. Depois desta manifestação, o movimento se estende aos colégios e vários deles são bloqueados pelos estudantes, especialmente na zona norte dos subúrbios parisienses. Durante as próximas semanas centenas de institutos serão paralisados ou pelo menos terão suas atividades seriamente perturbadas.
A cenoura e o castigo. Em 5 de dezembro, Macron retira o aumento de imposto na gasolina e no dia 6 o ministro do interior, Castaner, anuncia que 90.000 policiais de choque serão mobilizados para o Ato IV, assim como tanques como os usados no despejo da ZAD em Notre-Dame-des-Landes. No dia seguinte um vídeo é espalhado no qual a polícia humilha algumas dezenas de estudantes de colégios em Mantes-La-Jolie, colocando-os de joelho com suas mãos atrás da cabeça. A repressão da manifestação de 8 de dezembro é tão brutal que cada vez mais se torna insustentável a estratégia do governo de distinguir os casseurs - os violentos - dos “bons e pacíficos cidadãos com coletes amarelos”. O movimento começa a organizar-se contra a repressão. Estendem-se as redes de apoio legal aos detidos e criam-se grupos de médicos de rua, pessoas com algum conhecimento de primeiros socorros que se distinguem na manifestação para ajudar os feridos. E o fato é que o movimento hoje, com três meses desde seu começo, conta com mais de 3.000 feridos, entre os quais se encontram várias dezenas de pessoas que tiveram o olho ferido por uma bala de borracha, ou que tiveram a mão arrancada por uma granada de atordoamento. O nível da repressão supera enormemente os limites do que se está acostumado na região europeia, e isso impulsionou um desenvolvimento massivo da solidariedade com os feridos. Em muitas manifestações, um grande número de pessoas leva bandagens nos olhos ou na cabeça com manchas de sangue falso, como forma de denúncia da violência policial.
Em 10 de dezembro, Macron anuncia um aumento do salário mínimo, que acaba sendo um aumento das ajudas a alguns trabalhos precários. No dia seguinte, produz-se um atentado em Estrasburgo, que é reivindicado pelo Estado Islâmico, o que Macron tentará utilizar como maneira a reprimir o movimento, pedindo que não houvesse manifestação naquele sábado e aproveitando a ocasião para incrementar a presença de forças policiais na rua. No entanto, continuam ocorrendo as mobilizações e o governo tem que desembolsar 300 euros de bônus para cada policial de maneira que não desistam de seu compromisso na repressão dos demonstradores, que oscilam entre enfrentamentos violentos com a tropa de choque e chamadas à solidariedade com o movimento.
Ao contrário das muitas vozes que anunciam o fim do movimento com a subida das ajudas e a retirada do imposto, assim como pela dura repressão e os milhares de detidos, os coletes amarelos não perdem sua vitalidade. O ano de 2019 começará com uma manifestação no dia 5 de janeiro, na qual vários manifestantes utilizam maquinaria de construção para derrubar a porta do ministério da Secretaria de Estado, podendo entrar no edifício e gerar diversos danos. O secretário de Estado tem de ser evacuado. Os sindicatos tentarão capitalizar com o movimento, chamando uma greve no dia 5 de fevereiro, mas a adesão será mínima e a presença dos coletes amarelos bem escassa. Dias depois, no sábado, dia 9 de fevereiro, convoca-se uma manifestação que retoma a linha de não ser comunicada às autoridades, de modo a combater a tendência à democratização e pacificação dos atos anteriores, os quais haviam correspondido com uma realocação para fora dos bairros ricos e uma diminuição nos saques. E funciona. Se qualquer coisa é repetida durante esse ato XIII é que, para serem escutados, o enfrentamento é necessário.
O movimento aprende. As seguintes demonstrações retornarão aos bairros ricos do leste parisiense e terão seu ponto de culminação no ato XVII de 16 de março. Essa convocação é feita durante o fim do “Grande Debate”, um processo de democracia participativa aberto por Macron para tentar - em vão - acalmar o movimento. No começo o “Grande Debate” é simplesmente um motivo para ridicularização, porém a essa altura já começa a tornar-se irritante. O ato XVIII tem como slogan “Ultimatum”, o qual adquire um sentido bem literal: Paris irá tornar-se o cenário de uma batalha generalizada como não se havia visto até então. Tenta-se novamente tomar o Arco do Triunfo, e quando a polícia consegue impedir a raiva proletária dirige-se contra as lojas de luxo e restaurantes nos Champs-Élysées, que arderão durante toda a noite.
A burguesia também aprende. A situação estará tão incontrolável que Macron, dias depois, depõem o chefe da polícia e coloca em seu lugar Didier Lallement, bem conhecido por suas habilidades repressivas. Ao mesmo tempo, a polícia de choque é reforçada com soldados da Operação Sentinela, um corpo militar criado após o ataque a Charlie Hebdo em janeiro de 2015 e especializado na luta contra o terrorismo. Daí em diante, toda manifestação produzida nas proximidades dos Champs-Élysées é proibida e duramente reprimida. Contudo, e ainda que a presença da polícia aumente nas ruas e a repressão recrudesça, nas semanas seguintes chama-se um 1º de maio “amarelo e negro”, em referência à ação conjunta de coletes amarelos e do black bloc, e Paris tornará a arder. Atualmente o número de detidos se eleva a 8.700 pessoas –segundo o Ministério do Interior- e quase 2.000 condenados, dos quais por volta de 40% com cumprimento de tempo em prisão. A isso é preciso somar a colocação em prática da lei anti-casseurs, que escandaliza até mesmo algumas frações da burguesia ao permitir detenções preventivas das pessoas suspeitas de poderem cometer um crime - um aceno horrível ao filme Minority Report - A Nova Lei - durante a demonstração.
Claro que toda esta revolta não surge de nada novo, nem é uma criação única e absolutamente espontânea dos coletes amarelos. Na verdade, a forte combatividade e a capacidade de resistência e apoio mútuo que demonstra o movimento provêm de um aprendizado prévio do proletariado na França. Assim, mantem-se vivas a recordação da revolta dos banlieues de 2005 e as formas de organização que se desdobraram naquele momento6. Por outro lado, as lutas contra as Reformas Trabalhistas em 2016 geraram uma série de experiências e aprendizagens ao interior dos black blocs que não são subestimadas, ao mesmo tempo em que se abriam à pessoas que não haviam participado antes e faziam-se chamadas as militantes de outros países como Alemanha ou Itália a juntarem-se a algumas convocatórias, como foi o caso do 1º de maio de 2018[7].
Paralelamente, no curso destes meses vai-se além das rotatórias e formam-se assembleias por todo o país. As de Saint-Nazaire e Commercy vão funcionar como motor desse processo, fazendo várias chamadas à criação de assembleias e à apropriação de espaços de encontro e associação proletária, fundamentais não somente para discussão e reflexão comum, mas também para construção de laços de solidariedade com os detidos e feridos. Ao mesmo tempo e diante da necessidade de mecanismos de centralização do movimento, inicia-se um processo de coordenação entre distintas assembleias que dará lugar a uma “assembleia de assembleias” no fim de semana do dia 26 e 27 de janeiro, e uma segunda doa dia 5 ao 7 de abril.
O que o movimento diz e pensa de si mesmo é heterogêneo e confuso. Isso é natural e revela seu caráter massivo e genuíno, ao mesmo tempo em que revela a situação de fraqueza que partilha nossa classe nesse período. A ausência de memória proletária e a força atual do cidadanismo faz com que os coletes amarelos se identifiquem mais como o povo contra “os de cima” do que como proletariado contra a burguesia e seus cães. Isso não lhes impede de lutar como tal, como vimos, já que seu próprio desenvolvimento empurra-lhes ao enfrentamento com o Estado e a propriedade privada, porém, sem dúvidas, é uma bandeira que pesa sobre nossas cabeças e que abre as portas às distintas formas de recuperação burguesa.
Ao mesmo tempo, é importante não fazer um bloco homogêneo a partir da ala majoritária do movimento, esquecendo toda luta ao interior do mesmo para clarificar e impor nossos interesses. Sem dúvida a ideologia dominante é a ideologia da classe dominante, inclusive em um processo de luta contra essa mesma classe. Contudo, a vitalidade de um movimento mede-se também pelas minorias que tentam demonstrar e combater as armadilhas da (social)democracia, ao mesmo tempo em que aprofundam a radicalidade do próprio movimento contra o sistema. Por isso é importante destacar vozes como as dos coletes amarelos de Paris Leste, onde se diz claramente que:
“Não somos a “comunidade de destino”, orgulhosa de sua “identidade”, cheia de mitos nacionais, que não foi capaz de resistir à história social. Não somos franceses.
Não somos essa massa de “gente humilde” disposta a juntar-se com seus amos enquanto forem “bem governados”. Não somos o povo.
Não somos este conjunto de indivíduos que devem sua existência somente ao reconhecimento do Estado e a sua perpetuação. Não somos cidadãos.
Nós somos aqueles que são obrigados a vender sua mão de obra para sobreviver, aqueles dos quais a burguesia obtém a maior parte de seus benefícios dominando-nos e explorando-nos. Nós somos os pisoteados, sacrificados e condenados pelo capital, em sua estratégia de sobrevivência. Somos essa força coletiva que abolirá todas as classes sociais. Somos o proletariado”[8].
Porém, antes disso, se há algo que caracteriza os coletes amarelos positivamente é seu rechaço a toda forma de representação. Este é de fato um dos fatores que nutre sua vitalidade como movimento. Em primeiro lugar, o rechaço aos grandes meios de comunicação é total. Denuncia-se seu papel na propaganda ideológica do governo e produzem-se enfrentamentos e inclusive expulsões dos jornalistas dos grandes meios que se deixam ser vistos nas demonstrações.
Ao mesmo tempo, há uma profunda recusa à representação política e sindical. O rechaço aos sindicatos é tão mais notável porque eles têm um grande peso na política francesa. Nos últimos anos de mobilizações, nunca se havia visto tal deslegitimação, embora a criação de cortèges de tête nas lutas contra a Reforma Trabalhista em 2016 vinha anunciando uma busca de autonomia em relação a eles, embora de forma minoritária. Isso é certo mesmo se a declaração da greve “geral” por parte da CGT em 5 de fevereiro, como uma tentativa de canalização sindical da luta, teve apoio por parte das vozes mais visíveis do movimento. A greve da CGT pôs em evidente contradição aqueles que haviam anteriormente rejeitado a presença dos sindicatos e agora davam boas-vindas à suas convocações como se elas fossem uma maneira de estender a luta ao local de trabalho. No entanto, como dissemos antes, a greve teve pouquíssima adesão e o número de coletes amarelos no passeio sindical dessa tarde foi bastante escasso. Nas manifestações os sindicatos, com exceção do esquerdista SUD-Solidaires, e esse timidamente, não se atreviam a aparecer com faixas ou adesivos. De fato, há poucas faixas pré-fabricadas, e as diferentes reivindicações que cada colete amarelo decide escrever nas costas com um simples marcador cumprem sua função. A necessidade de defender a autonomia do movimento está muito presente entre os manifestantes e as tentativas de capitalizá-lo politicamente têm sido um verdadeiro fracasso, assim como a inscrição de uma “lista eleitoral dos coletes amarelos” para as eleições parlamentares europeias ou a organização dos governos municipais para recolher “cadernos de queixas” - um aceno aos cahiers de doléances da Revolução Francesa - com o objetivo de organizar o “Grande Debate”.
Porém, essa rejeição de representação tem sua contrapartida. Apesar de conter esse cordão sanitário contra o enquadramento burguês clássico, ela contém ao mesmo tempo uma negação da comunidade de luta, de nosso ser proletário coletivo. Ela não deriva da comunidade de luta, mas do indivíduo isolado que representa a si mesmo e, portanto, nega a expressão coletiva e suas distintas formas de materialização. É o terreno que dá abertura para a democracia, especialmente a democracia direta. Esconde, de um lado, a ideia de que somente o indivíduo pode representar-se a si mesmo e de que, no fundo, a única maneira de organizar esse conjunto de indivíduos isolados é com formas de democracia direta, votações, processos formais examinados aos detalhes, reivindicações vazias para que nenhum indivíduo fique de fora: em definitivo, se expressa no assembleísmo mais limitante para a ação do movimento. Por outro lado, esta rejeição encontra sua expressão ideológica em um discurso populista pelo qual o povo tem de fazer valer sua soberania ao refundar uma nova forma de democracia. É aqui onde o Referendum de Iniciativa Cidadã mostra-se como um excelente instrumento de recuperação. “Adeus à guerra dos egos e à guerra de poder. Com o RIC ninguém mais tem o poder, é toda a população que o possui”, diz Maxime Nicolle, um dos quais a imprensa declarou “líder” do movimento. Se a ideologia democrática é em si mesma uma das forças burguesas mais arraigadas, uma das últimas barreiras que teremos de superar no processo de constituição de classe, esta ganha nova energia no contexto de debilidade em que nos encontramos, na dificuldade de reconhecermo-nos como proletários e de sentirmo-nos uma só classe a nível mundial. Assim, a defesa democrática da soberania vê-se reforçada na identificação da catástrofe capitalista com o “fenômeno da globalização” e o recuo nacionalista que é dado como resposta por parte da socialdemocracia, seja mais a direita ou mais a esquerda9.
Apesar da majoritária presença do RIC, não quer dizer que não existam vozes que avisam do risco de recuperação que contém. Assim o fazem, por exemplo, os coletes amarelos de Toulouse ao falar de “RICuperação” em seu periódico Le Jaune [O amarelo]:
“O RIC aproveitou essa ilusão. Há de se dizer que, a primeira vista, a proposta era atrativa. Dizia-nos que, com isso, finalmente poderíamos ser escutados diretamente, que poderíamos recuperar o poder sobre nossas vidas. Nós decidiríamos tudo. E mesmo sem lutar, sem arriscar a vida nas rotatórias e nas manifestações, somente votando, nos nossos computadores em nossas salas de estar, usando pantufas e próximos de uma aconchegante lareira! Mas no comércio, quando se tem um produto para vender, mente-se: “Sim, assim que tivermos o RIC, poderemos conseguir tudo”. Isso é falso. Para começar, pedir a burguesia sua opinião para saber se estão de acordo com aumentar nossos salários!, é o cúmulo! Um voto contra os interesses dos capitalistas como, por exemplo, o aumento do salário mínimo por hora seria simplesmente rechaçado. Lembremo-nos do referendum de 2005 [sobre a Constituição Europeia]. E isso sem mencionar a intensa propaganda que sofreríamos se votássemos contra, sozinhos na frente de nossas telas”[10].
O peso do nacional-popular no movimento, um complemento necessário de um discurso democrático, reflete-se na ausência de sua consciência internacionalista. É paradoxal, já que os coletes amarelos foram retomados por proletários de outros países para expressar sua própria luta contra as condições de miséria existentes. Isso ocorreu especialmente na Bélgica, onde a identificação é mais imediata pela proximidade territorial e linguística, porém também no Egito, onde o governo, temeroso de uma extensão do movimento, teve de proibir a venda de coletes amarelos diante do chamado realizado por diferentes grupos para celebrar o aniversário da revolta de 2011 vestidos de coletes amarelos para expressar que é uma mesma luta. Também apareceram coletes amarelos durantes os protestos em Bulgária e Sérvia - igualmente contra o aumento da gasolina - e os do Iraque, que se iniciaram pela intoxicação de dezenas de milhares de pessoas devido à má purificação da água. Contudo, em lugares como Alemanha, Holanda ou Espanha os coletes amarelos foram usados por grupos de extrema-direita - e também por alguns grupos socialdemocratas - sem muito êxito de mobilização. Nesse contexto, apesar da natureza internacionalista do movimento, que é reconhecida por proletários de outras regiões do mundo, o movimento francês parece reorientado em si mesmo, em seu plano nacional, e as referências ao proletariado de outros países brilham por sua ausência, ao contrário do que ocorreu durante a onda internacional de lutas de 2011-2013.
Isto permite contextualizar a convivência - que com o decorrer da mobilização tem diminuído - no movimento com grupos de extrema-direita, junto com as expressões iniciais racistas e contra a imigração. Embora, atualmente, a presença dessas forças seja muito relativa, inflada pela propaganda que lhes dá a imprensa, esse não é o caso das chamadas pela defesa da indústria e comércio nacional, simbolizadas pelo pequeno comércio, e transmitidas pelo chamado a um Frexit. Nessas, onde muitos veem o peso da classe média ou da pequena burguesia, que estaria dirigindo o movimento ou, ao menos, conseguindo introduzir suas próprias reivindicações, nós não vemos senão um proletariado que apenas desperta e que demonstra ao mesmo tempo –um sinal de nossa época- uma clara capacidade de auto-organização e de enfrentamento com o Estado e a propriedade privada, e uma enorme dificuldade para reconhecer-se a nível mundial em uma classe contra um só inimigo: as relações sociais capitalistas encarnadas e defendidas pela burguesia[11].
Porém, de novo, ao interior do movimento ocorre uma luta contra essas tendências nacionalistas, de tal forma que no curso dos últimos meses cada vez são mais fracas, e cada vez mais se pode ouvir mais vozes que reivindicam a natureza internacional do proletariado. Assim, por exemplo, no final de dezembro celebrou-se uma assembleia de centenas de pessoas em Caen, em um edifício ocupado por imigrantes não documentados durante a greve dos ferroviários de 2018, em uma clara identificação da luta dos coletes amarelos e o proletariado imigrante contra o mesmo Estado e o mesmo sistema capitalista. De outro lado, Le Jaune adverte em seu segundo número contra as tentativas de separar o proletariado:
“Depois vem outros proporem-lhe soluções para gerir a crise que acabam esmagando os proles que vem de fora para continuar explorando aos daqui: gestão dura dos fluxos migratórios (feito), caça aos não documentados dentro do território (feito), Frexit, etc. Propõem-nos que nos tranquemos com chaves duplas e que bloqueemos a porta, como se o lobo capitalista não estivesse já entre as ovelhas francesas. Quando se propõem uma resposta nacional a um problema mundial é porque se está preparado para defender-se à custa do resto dos galerianos dessa Terra, e isso é precisamente o que os capitalistas do mundo todo esperam de nós nesses tempos tumultuosos: estarmos divididos e sermos controláveis” [12].
Ainda assim, embora isso tenha um papel que não pode ser subestimado nas limitações do movimento, é a própria democracia que, de uma forma imediata, apresenta-se como o principal fator de recuperação. Pode-se ver uma amostra disso com o efeito gerado pela legalização das manifestações, que começou a acontecer a partir do Ato IX (12 de janeiro), já que até então as convocatórias eram espontâneas e anônimas. A legalização supõe que tem de haver pessoas responsáveis ante as autoridades pelos danos produzidos nela, por isso mesmo os próprios convocadores têm um vivo interesse em pacificar e manter a ordem durante a manifestação. Além disso, isso obriga os coletes amarelos a seguir um trajeto previsto e conhecido pela polícia e a estabelecer um serviço de ordem. Como já dissemos antes, empurradas pela ala mais democrática do movimento, as manifestações em Paris irão deslocar-se dos bairros ricos do leste, salvando as lojas de luxo das expropriações proletárias, mas também afastando os manifestantes dos símbolos do poder, como o Élysées ou a sede patronal. Nessas demonstrações, a ideologia cidadã começa a pesar e os próprios manifestantes viram-se contra os grupos que quebram as vidraças ou até mesmo pintam elas.
Esta tendência do movimento a apagar-se democraticamente, contudo, foi contestada pouco depois pelo Ato XIII (9 de fevereiro), que, como já explicamos, foi convocado com a vontade explícita de romper com esta tendência à legalização, ou seja, de não declarar o trajeto à polícia e nem ter convocadores legais, nem serviço de ordem, assim como para voltar aos bairros ricos em uma nova retomada de combatividade. A partir de janeiro e nos meses que seguem, os coletes amarelos viverão fluxos e refluxos que expressarão com toda claridade tanto um caráter mais combativo e de negação da ordem estabelecida, como momentos de pacificação e democratização nos quais a ala majoritária que descrevemos antes consegue impor-se.
No mesmo terreno de canalização democrática, outro dos riscos do movimento é que se deixe prender por uma ideologia assembleísta. O processo de criação de assembleias e suas tentativas de coordenação são muito positivos, já que respondem a uma necessidade do movimento de dotar-se de estruturas de associação mais estáveis, defender-se da repressão, pensar juntos e criar mecanismos de centralização de escala nacional. Geralmente isso implica, como no caso de Saint-Nazaire, na ocupação de espaços para reunir-se e fazer as assembleias. Contudo, a pressão por fornecer reivindicações concretas, unanimemente refletidas em um papel que representa os coletes amarelos a nível nacional, pesa sobre este esforço de centralização e pode ter o efeito, finalmente, de retirar os demonstradores das ruas de maneira a discutir por horas sobre a maneira de formular uma frase que represente todo mundo. O papel positivo que a organização consciente de debates e discussões desempenha no interior de um movimento não deve ser subestimado de nenhuma maneira, mas é realmente necessário reconhecer que a separação entre a palavra e o feito, a burocratização das assembleias e as acrobacias verbais para fornecer uma ampla representação, implicam na morte dessas assembleias como expressões organizacionais do movimento e sua passagem à contrarrevolução. De fato, é com esse tipo de sentimento que muitos coletes amarelos saíram da segunda “assembleia das assembleias” (5-7 de abril), onde a unidade de ação que se expressa nas manifestações viu-se completamente diluída, e tudo se converteu em malabarismos para criar algumas folhas de demandas concretas onde “há espaço para todo mundo”.
Algumas perspectivas provisórias
As tarefas e atividades que assumimos como revolucionários não estão inscritas nem baseadas em possibilismos, mas vem determinadas pelas próprias necessidades - imediatas e históricas - da luta de nossa classe. Somos conscientes que o mais provável é que o movimento dos coletes amarelos seja liquidado, seja porque todos os limites que criticamos acabem apoderando-se do movimento, ou pelo próprio desgaste e recuo dos protagonistas. No entanto, nosso atuar consciente e voluntário pela revolução social, pela abolição do capitalismo, impulsiona-nos a assumir esse movimento como mais um pequeno episódio na luta histórica contra o capital. E no seio de todos esses episódios as minorias revolucionárias são as que tratam de impulsionar o movimento até suas últimas consequências.
Este pequeno texto faz parte desse impulso, como uma necessidade de nossa classe de fazer o balanço dessa luta, de expressar sua verdadeira ação frente às falsificações de todos os porta-vozes do capital, de demarcar e contrapor-se a todas as forças de nosso inimigo, de aprofundar nas forças e limites que temos.
Se há algo de peculiar nesse movimento é que vem marcando certa mudança nas características das lutas dos últimos anos. Desde Argentina à Grécia, desde o norte da África à própria França, de Brasil aos subúrbios dos Estados Unidos, etc., temos vivido diversos momentos de lutas importantes com a característica comum que se apresentavam como fortes erupções que cessavam rapidamente. O proletariado saía violentamente à rua empurrado pela agudização da catástrofe capitalista e se contrapunha com fúria aos inimigos mais visíveis do capital, porém passados os primeiros momentos, os primeiros dias, as primeiras semanas, quando já não bastava o instinto de classe, quando não se sabia muito bem como prosseguir, a burguesia apresentava todo tipo de medidas - alternância política, gestionismo, repolarização entre frações burguesas, repressão, guerra imperialista... - que restabeleciam a ordem. É certo que estas medidas de apaziguamento encontravam maior resistência por parte do proletariado, porém não ao nível de resistência e permanência dos protestos dos coletes amarelos depois de setes meses do início do movimento. Com fluxos e refluxos o movimento resistiu até agora à repressão, às diversas tentativas de canalização e não se deixou seduzir com migalhas que vem sendo oferecidas pelo Estado francês.
Em contrapartida, a burguesia, que até então era capaz de encerrar as lutas em seus Estados nacionais, vê como estão se rompendo esses muros de contenção que lhe permitiam enfrentar as lutas parte por parte. É certo, como dizíamos que o proletariado na França tem muitas dificuldades para assumir explicitamente o caráter internacionalista de sua luta, contudo em outras regiões do mundo a identificação com a luta dos coletes amarelos expressa abertamente esse caráter internacionalista. Essa realidade mostra claramente que as condições de vida do proletariado mundial tendem a homogeneizarem-se à medida que avança a catástrofe capitalista. Porém, o processo acabou de começar.
É óbvio que, como dizíamos em um texto de alguns anos atrás, hoje é de uma importância capital que as minorias proletárias daqui e dali avancem nesse indispensável processo de coordenação e centralização internacional, que quebremos as divisões país por país, ou pior ainda, cidade por cidade. Por isso temos que reconhecer que nunca foi tão minúscula a força das minorias revolucionárias, que nunca o proletariado teve tanta desorientação, que nunca houve uma contraposição tão grande entre a necessidade de revolução e a incapacidade de assumir essa necessidade. É evidente que dar a volta nessa situação é uma necessidade vital para a perspectiva revolucionária.
De qualquer maneira, esta fora de questão que o movimento dos coletes amarelos faz parte de um processo de despertar de nossa classe a nível internacional, após a derrota da onda de lutas dos anos 70. Diante da perspectiva factível de que esse movimento morrerá cedo ou tarde, se uma recuperação burguesa à altura e intensidade vivida e atingida por ele não for produzida, ele deixará para trás novos laços de solidariedade, talvez algumas estruturas, experiências de luta das quais derivar lições, um novo número de pessoas que, após sua radicalização no movimento, serão aderidas à atividade das minorias revolucionárias apesar do retorno à normalidade. Nossa classe aprende. Ela constrói sua própria memória. Ela desperta.
Não esperaremos sentados por um suposto proletariado metafísico que, liberado de todo pecado terreno, puro no mais profundo de sua alma, saia à rua para anunciar o fim do capitalismo e a chegada de um novo mundo. Não esperamos tampouco que o próprio capitalismo devore a si mesmo para poder gerir o desastre. Deixemos essas profecias religiosas para todos os militantes devotos, para todas as sagradas famílias da esquerda e extrema-esquerda do capital. O proletariado não descerá do céu, o capitalismo não se abolirá a si mesmo, senão que, como sempre, de vez em quando, a alternativa revolucionária aparece e aparecerá na luta de nossa classe, intoxicada pela nocividade capitalista, por todo o veneno que segrega essa sociedade. Nesse combate contra tudo o que nos impede de viver, contra tudo o que nos impossibilita afirmarmo-nos como ser humano, como comunidade humana, onde os pulmões podem tomar um pouco de oxigênio entre tanta poluição e onde a comunidade humana se prefigura como comunidade de luta frente à comunidade do dinheiro. O proletariado está forçado a destruir o capitalismo pela raiz se não quiser que esse destrua todo nosso mundo. Esse proletariado profano e corrompido não descerá do céu, porém tomará o céu de assalto.
Consequentemente, nós atuamos e compelimos todos os companheiros e grupos a defenderem nossos interesses de classe e a combater o enquadramento burguês nesses protestos; à estruturação e organização contra todas as tentativas de canalização democráticas e nacionalistas; a fortalecer e estender os contatos entre nós, a criar redes organizativas em todos os níveis; estruturas para defender-nos da repressão e para discutir sobre como assumir tal ou qual tarefa.
Notas
[1] Referência ao movimento França Insubmissa, liderado atualmente por Jean-Luc Mélenchon. Estender mais sobre isso.
[2] Movimento conservador e corporativista de pequenos comerciantes, liderado por Pierre Poujade nos anos 50, que protestavam contra a extensão de grandes espaços comerciais. Jean-Marie Le Pen viria a se tornar um deputado poujadista antes de fundar o Front National.
[3] Do francês bourgeois bohème, “burguês boêmio”, que faz referência à burguesia progressista e cultivada das cidades.
[4] A “França branca de baixo”, o lixo branco francês.
[5] Trata-se de um grupo organizado contra a violência policial nas banlieues, com um discurso próximo ao racialismo. Tem seu nome em memória de Adama Traoré, um jovem de 24 anos que em 2016 foi assassinado pela polícia enquanto estava detido.
[6] Ver nosso livro La Llama del subúrbio [As chamas do subúrbio] em www.proletariosinternacionalistas.org.
[7] Dizemos isso sem esquecer todas as limitações que têm os black blocs, como uma prática militante hiperespecializada que, ao dar muita importância à confrontação física com a polícia, cai facilmente no espetáculo da violência –vazia de conteúdo de classe e, portanto, facilmente recuperável-, como temos presenciado nas sucessivas contra cúpulas das últimas duas décadas –ver ao respeito o artigo “Contra las cumbres y anticumbres” da revista Comunismo nº47 em https://drive.google.com/file/d/1lF2FiBkCLyTZCrJcU8Qmq8qTgfUX1UFC/view?usp=sharing. Assim também é advertido por um panfleto distribuído durante o 1º de maio deste ano: os saques, os ataques à propriedade urbana, o enfrentamento com a polícia, “nada mais normal e lógico, nada mais são e saudável, e incluso seria desanimador se não ocorresse. Porém, também seria desanimador (por outros motivos, certamente), assim como danoso para a continuação do movimento de oposição à ordem de coisas presente, que simplesmente ocorresse isso e que acabasse ali, que nos limitássemos a uma violência de classe que poderia transformar-se em espetáculo da violência, que não fossemos mais longe, que não aprofundássemos a ruptura, o abismo que nos separa deles, nós, a humanidade em luta e eles, os capitalistas e seu mundo, feito de miséria, de exploração, de guerra e de sofrimento” (“Coletes amarelos (ou não). Por um 1º de maio combativo. Ação direta anticapitalista” em: https://lille.indymedia.org/IMG/pdf/gilets_jaunes_ou_pas_mayday.pdf).
[8] Texto retirado de Guerra de Clases nº9, inverno de 2018-2019: https://www.autistici.org/tridnivalka/category/other-languages/espanol/.
[9] Veja o texto de Barbaria, “Más allá de la extrema derecha” [Para além da extrema-direita] em: http://barbaria.net/2018/12/20/mas-alla-de-la-extrema-derecha/.
[10] O texto original pode ser encontrado em: https://jaune.noblogs.org/files/2019/01/Jaune1-web.pdf e sua tradução ao castelhano no número mencionado mais acima de Guerra de clases.
[11] Dizemos isso não porque a pequena-burguesia não exista como “classe” sociológica, senão porque esta jamais cumpriu o papel de classe no sentido de movimento histórico, de força social, de partido. As duas únicas forças sociais são burguesia e proletariado, revolução e contrarrevolução, constantemente contrapostas como os dois polos da contradição capitalista.
[12] Esse texto em francês pode ser encontrado em: https://jaune.noblogs.org/files/2019/02/Jaune-2.pdf.
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Revolta no Equador (novembro de 2019)
La Oveja Negra
Tradução do texto Revolta no Equador de 2019 publicado na revista La Oveja Negra, na edição de número 66 (novembro de 2019).
Em 1º de outubro de 2019, o Presidente do Equador, Lenín Moreno, anunciou em escala nacional um pacote de medidas de austeridade econômica em acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), que evidentemente, como já sabemos nessas regiões, afetaria as condições de vida e sobrevivência da maioria da população naquele país. Aos empresários reduzem impostos e perdoam milhões de dívidas, enquanto que para as pessoas exploradas há flexibilidade e instabilidade no emprego, demissões, subemprego e maior custo de vida.
Um pequeno texto amplamente divulgado resumiu em quatro pontos como o pacote afetaria o proletariado no Equador:
- "Eliminação dos subsídios da gasolina e diesel extras: isso significa um aumento em todos os produtos e serviços básicos de consumo em geral. O custo de vida aumenta.
- Redução de salários: o funcionário público que tiver um contrato ocasional renovado será 20% menor que o salário atual. Cerca de 40% dos trabalhadores têm esse tipo de contrato.
- Funcionários públicos: doarão compulsoriamente um dia de seu salário por mês ao Estado e terão apenas 15 dias de férias, incluindo fins de semana.
- Modalidades contratuais: a flexibilidade e a instabilidade do trabalho serão priorizadas, beneficiando assim o empregador” (Rede de Imprensa Popular do Equador).
No dia seguinte, a Frente Unitária de Trabalhadores (FUT), a Confederação das Nacionalidades Indígenas do Equador (CONAIE) e a Frente Popular (FP) anunciaram uma greve e uma série de mobilizações imediatas. A Federação Nacional das Cooperativas Públicas de Transporte de Passageiros (FENACOTIP) anunciou a paralisação dos trabalhos em 3 de outubro.
Já no início das manifestações que rejeitaram essas medidas de austeridade, podemos ler em um panfleto a necessidade de sair para protestar, mas também a necessidade de ir além se você “realmente deseja parar de apenas sobreviver”:
“As últimas medidas econômicas do governo equatoriano são medidas de austeridade em tempos de crise capitalista, que foram aplicadas e estão sendo aplicadas pelos governos de direita ou ‘neoliberais’ e pelos governos de esquerda ou ‘socialistas do século XXI’ em todo o mundo, porque é isso que a própria lógica do modo de produção capitalista os determina a fazer, em qual se baseia a (ou vive às custas da) exploração da classe trabalhadora. De fato, em tempos de crise, o capital sempre aplica a mesma política econômica contra nossa classe em todos os lugares: ajuste de cinturões ou maior empobrecimento e aumento da exploração.
No caso específico do último ‘pacote’ de Moreno, o primeiro é alcançado pelo aumento do custo de vida devido ao aumento do preço da gasolina (uma vez que se sabe aqui que ‘se a gasolina aumenta, tudo sobe’); e a segunda, com todas as reformas trabalhistas flexibilizadoras e precarizadoras impostas (redução de salários, das aposentadorias, das férias, do pessoal, contratos flexíveis, teletrabalho etc.).
Portanto, o problema não é apenas o governo de ‘pacote’ ou ‘neoliberal’ de Moreno ou do FMI. O problema fundamental é como o Capital nos ataca direta e esmagadoramente como classe trabalhadora em tempos de crise e como podemos responder. A luta é o caminho, sem dúvida. Mas também é necessário analisar de forma autocrítica e estratégica a luta de nossa classe.
(…) Por enquanto, saia para protestar com os slogans ‘abaixo ao pacote’, ‘abaixo à Moreno’ e ‘abaixo ao FMI’, ‘construa afinidade nas ruas’ e faça tudo isso coletivamente, mais ou menos organizado, mais ou menos autônomo, mais ou menos combativo …é necessário e está bem; mas é necessário ir além (como foi dito hoje à noite em uma assembléia que se convocou por aqui): ‘abaixo ao governo’, ‘abaixo os empresários e os banqueiros’, ‘todos vão embora, nem um único permanece’, ‘Abaixo o capital, abaixo o estado, abaixo os governos e todos os seus lacaios’.
Reverter o ‘pacotaço’ e derrubar Moreno (como Bucaram, Mahuad e Gutiérrez foram derrubados nos anos anteriores) seriam verdadeiras ‘vitórias’ para o possível e novo ‘movimento’ de protestos sociais neste país. Mas, sendo objetivo, aqui e agora não há condições reais e forças sociais, o nível real da luta de classes por isso, embora comece por uma razão. Pode ser que esse governo de empresários e banqueiros se livre dele, mas a luta da classe proletária nas ruas tentará evitá-lo e não será em vão. A luta é o caminho e bem ali, você aprende, principalmente com golpes e derrotas, a fim de transformá-los em seu oponente em batalhas futuras”. (Anônimo. Breve análise do “pacote” e dos próximos protestos neste país a partir de críticas radicais. Quito, 2 de outubro).
Na quinta-feira, 3 de outubro, várias organizações sociais em todo o país convocam para organizar uma greve nacional. O CONAIE, juntamente com os setores do sindicalismo tradicional, apoiam a greve para expressar sua oposição ao pacote de medidas do governo. Este anúncio levou ao início de uma série de mobilizações em diferentes partes do país e assembleias permanentes em vários territórios. A intensificação da Greve em Quito é apoiada por uma massiva mobilização indígena na capital. A revogação imediata do “pacotaço” é exigida, ou seja, do Decreto 883, emitido pelo Governo. Cabe assinalar, no entanto, que de 3 a 7 de outubro, aqueles que sustentaram os protestos e motins nas ruas não foram os povos indígenas, mas as massas proletárias heterogêneas da cidade. Além disso, desde 3 de outubro o governo decretou um estado de emergência e reprimiu brutalmente os manifestantes.
Desde a manhã de 4 de outubro, houve uma presença militar e policial em vários setores do país, tanto para enfrentar os protestos contínuos quanto para garantir o transporte. As transportadoras anunciaram o fim da greve para iniciar o diálogo com o governo. E apesar dessa tentativa de fura greve da máfia dirigente dos transportadores, a greve continuou, incluindo a participação de algumas bases dos mesmos transportadores. Enquanto que, em Guayaquil, saques também foram registrados em algumas lojas.
No dia 5, a CONAIE decretou um “estado de exceção” em todos os territórios indígenas, anunciando a retenção de policiais para serem submetidos à justiça indígena (banho de água gelada, urtiga e chicote). Tais retenções já estavam ocorrendo em lugares como Alausí, onde 47 soldados permaneceram detidos até a chegada da governadora. Ao mesmo tempo, se anuncia uma grande mobilização desde Quito.
No dia 6, na Puente de la Unidad Nacional (Guayaquil), um cerco militar e policial é criado. Em Azuay, a primeira morte é registrada. Em Quito, se recebem doações na sede da CONAIE. À noite, tanques militares entram no centro histórico da capital. O ministro da Defesa Oswaldo Jarrín e a ministra do governo María Paula Romo falam em rede nacional à noite, onde dizem que não são tanques, mas “blindados”, que “não há territórios indígenas”, mas apenas o do Estado nacional, eles ameaçam com “não desafiem as forças armadas”, desqualificam os protestos “violentos” e as “notícias falsas” e justificam o terrorismo de Estado e as mentiras da imprensa.
No dia 7, mais de 20.000 “indígenas chegaram a Quito e foram recebidos com aplausos pela população da cidade. As tentativas de conter o avanço foram inúteis: tanques incendiados, delegacias destruídas e policiais fugindo (…), ao mesmo tempo em que milhares de manifestantes chegaram a pé ou em todos os tipos de veículos à capital equatoriana. Enquanto isso, o presidente Lenín Moreno teve que fugir da capital e mudar a Casa do Governo para a cidade de Guayaquil. Imagens foram divulgadas nas mídias sociais dos prédios do governo evacuados quando o movimento indígena cercou o palácio do governo” (ANRed. Equador: mobilização histórica em Quito faz o governo fugir para Guayaquil). A Assembléia Nacional e a Rádio Pública também foram tomadas.
Fala-se então em insurreição. Mesmo também de “duplo poder”, da “Comuna de Quito”, devido às ocupações, com centros de coleta, panelas comuns, montagens permanentes e barricadas. Com um epicentro no parque “El Arbolito” e a Àgora da Casa da Cultura Equatoriana (CCE) – a poucas quadras da Assembleia Nacional e da Controladoria Geral do Estado – essas ocupações foram mantidas até o último dia da greve.
9 de outubro é o 7º dia da paralisação nacional e uma grande greve geral é convocada. Há fortes confrontos nas ruas e brutal repressão policial a tal ponto que, à noite, a polícia lança bombas de gás lacrimogêneo nos “centros de paz” onde se encontravam mulheres e crianças.
Até então, as massas proletárias, das quais os indígenas são parte fundamental, lançaram-se nas ruas e rodovias do país, com atos de solidariedade e rebelião que a grande mídia tenta cercar, encobrir e falsificar. A Assembléia Nacional (digamos, o Congresso) é temporariamente ocupada, delegacias e outros prédios públicos são ocupados e queimados. Militares e policiais são capturados e seus veículos são incendiados, a luta se espalha em várias cidades com vasos comuns no calor das barricadas, os poços de petróleo continuam ocupados [1] e os governos estão ocupados em algumas províncias da Amazônia e da Serra. Panelaços, barricadas e marchas também são realizados em muitas partes do país. As massas proletárias no campo defendem seus territórios e expulsam os militares, depois descem às cidades para se tornar parte da insurreição. A luta não apenas destruiu o mutismo sórdido da rotina capitalista, mas também quebrou o isolamento e permitiu o encontro rebelde de pessoas que, até uma semana atrás, nunca ousariam se falar ou se aproximar. Assembleias auto-organizadas e redes de solidariedade proliferam.
Compartilhamos trechos de um panfleto daquele dia feito “de onde as batatas queimam”, assinado por “Un@s proletari@s cabread@s de la región ecuatoriana por la revolución comunista anárquica mundial” [Alguns/Algumas proletários/proletárias irritados/irritadas da região equatoriana pela revolução comunista anárquica mundial]:
“Fizemos fugir o presidente fantoche dos empresários e banqueiros ladrões do Palácio Carondelet e tomamos a Assembléia Nacional, por meio de ações diretas maciças e redes de solidariedade de classe, apesar do terrorismo de seu Estado (estado de exceção, repressão policial e militar brutal, centenas de detidos, dezenas de feridos, vários mortos, toque de recolher).
Não sabemos quando ou como a situação atual terminará. Mas sabemos que a luta social continua e deve continuar, tendo claras e firmes as seguintes demandas mínimas e inegociáveis:
Revogar todo o pacote econômico, não apenas o aumento das passagens.
Revogar o estado de exceção e o toque de recolher.
Derrubar todos os “poderes” do governo Moreno, seus chefes e capangas.
Não negociar ou ceder ao Estado dos ricos e poderosos que nos matam de fome e a tiros. Não permitir que a burguesia e os políticos oportunistas da direita ou da esquerda roubem o poder que conquistamos nas ruas nos dias de hoje. Não exigir novas eleições e um novo governo. Chega do mesmo roteiro político de merda. Autogoverno das massas.
Manter as Assembleias em todos os lugares para auto-organizar a mobilização, solidariedade, suprimentos, saúde e autodefesa das massas.
Exigir o retorno de todo o dinheiro roubado por empresários, banqueiros e políticos, a fim de melhorar as condições de vida da classe trabalhadora do campo e da cidade.
Expulsar a Mineração e o FMI.
Libertar os colegas detidos.
Quebrar a barreira da mídia e denunciar o terrorismo econômico e policial do Estado.
Solicitar a solidariedade de classe internacional concreta em todo o mundo.
Proletári@s na luta deste país:
Ganhando ou perdendo, despertamos da letargia histórica, respondemos a ataques de todos os tipos da classe dominante, fizemos coisas que não foram feitas há muitos anos e estamos aprendendo na prática várias lições importantes durante esses dias de intensa luta de classes .
Ganhando ou perdendo, continuemos acendendo a chama da luta proletária para construir e sustentar, a médio e longo prazo, uma força social autônoma, com capacidade e clareza necessárias e suficientes para tomar o poder, não do Estado burguês, que deve ser destruído pela raiz, mas sobre nossas vidas. (…) ¡Vamos hacia la Vida! [Vamos para a vida!]”.
Devido à brutal repressão do dia 9, o dia 10 começa com este cenário de guerra: “7 mortos, dos quais 1 recém-nascido; 95 gravemente feridos, mais de 500 com ferimentos leves; 83 desapareceram, dos quais 47 menores de idade; mais de 800 detidos, dos quais a maioria em delegacias policiais e militares; 57 jornalistas atacados pela polícia; 13 jornalistas presos; 9 meios de comunicação intervertidos; 26 políticos presos; Além disso, é relatada a prisão arbitrária de 14 cidadãos venezuelanos que não participaram das marchas” (Coordenadoria de Contra-Informação do Equador). Por esse motivo, este é um dia de luto, mas também de protestos, de policiais retidos, assembleias, marchas e resistência. Com efeito, no dia 10 na Àgora da CCE em Quito, os indígenas detiveram 8 policiais, solicitando que a pessoa mais velha contatasse o comandante da polícia para interromper a repressão e revogar o Decreto 883. No mesmo lugar foram realizadas cerimônias fúnebres para os manifestantes falecidos. Haviam 31 jornalistas que, segundo o CONAIE, “não estão sequestrados, estão com o povo para garantir o direito à informação”, enquanto a Àgora foi fechada como medida de segurança.
O 11º dia “no Equador foi o nono dia da greve e os equatorianos já haviam enlouquecido. Esse dia começou com a nova tarifa de transporte público [de 25 ctvs. para 35 ctvs. dólares]. Além disso, com a declaração de emergência no setor de flores do país. (…) O presidente da Expoflores, Alejandro Martínez, disse que ‘se as atividades não forem retomadas, serão perdidas cerca de 20 mil toneladas de flores, que chegam a ser mais de 250 milhões de dólares’. A mobilização dos povos indígenas continuou. (…) A produção de petróleo já havia perdido mais de 50% de sua produção. Havia mais de mil detidos, segundo dados da Ouvidoria. Um protesto pacífico estava ocorrendo nos arredores da Assembléia Nacional. Centenas de mulheres indígenas gritaram: ‘Somos mulheres, não somos criminosas’. Nesse dia, vários grupos feministas na capital também se juntaram ao protesto indígena. Mas a polícia (depois de levantar uma bandeira branca para ganhar tempo e obter mais munição) reprimiu manifestantes pacíficos e jogou gás lacrimogêneo. ‘Fomos enganadas’, disse uma mulher Shuar, que contou o que aconteceu na Assembléia. Nas redes sociais, a Polícia denunciou os ataques contra seus membros e explicou que esse tipo de comportamento ‘tinha uma preparação para o combate’. Naquele dia 11 de outubro, em Quito, várias explosões foram ouvidas à noite. O ministro Romo disse que a explosão mais forte ouvida foi produzida por um tanque de gasolina. A área de El Arbolito já era uma área de combate” (La Barra Espaciadora. A crise de outubro, dia a dia).
Apesar do toque de recolher e da repressão, as barricadas cada vez mais organizadas e resistentes de El Arbolito duraram a noite toda até as cinco da manhã.
Em 12 de outubro, aniversário da colonização do continente americano, durante os protestos, ocorreram incidentes na sede do canal Teleamazonas, no jornal El Comercio e na Controladoria Geral. Piquetes, panelaços e marchas também foram feitos em quase todo Quito, especialmente em bairros populares no sul, centro e norte da cidade, o que foi um fato novo durante esses dias. Devido a isso, o governo decretou o toque de recolher em Quito a partir das 15:00 e circulavam rumores de que a Polícia dispersaria violentamente a Àgora da CCE (terror psicológico do estado), enquanto no resto do país (onde também houveram protestos), o toque de recolher foi mantido como antes, ou seja, das 20:00 às 05:00. Anteriormente, indicou-se que se revisaria o decreto que eliminou os subsídios, após o anúncio de que o CONAIE aceitaria o diálogo direto, que também incluía o FUT e o FP. Evidentemente, a conciliação já estava sendo preparada sob o argumento de “evitar mais derramamento de sangue”.
No dia 13, a cidade de Quito acordou sob o toque de recolher que durou até a tarde, quando o governo o suspendeu para que os líderes da CONAIE pudessem se mobilizar para o ponto de encontro. Essa reunião aconteceu durante a noite, após a qual foi obtida a revogação do decreto 883 (que tinha sido a centelha que incendiou o pavio), que finalmente ficaria nulo e sem efeito na terça-feira, 15 de outubro. Uma vitória parcial com um gosto amargo, porque as reformas trabalhistas e o “acordo” com o FMI não foram revogados, os ministros assassinos e o presidente não renunciaram e isso às custas de todos os camaradas mortos, feridos e presos. Naquela mesma noite, os líderes indígenas depuseram as medidas de fato, pediram paz nas ruas e habilitação das estradas do país.
Na segunda-feira, 14 de outubro, começou o tratamento da revogação do decreto 883 (que foi a centelha que acendeu o pavio). O acordo não impediu a extensão das prisões e incursões de pessoas que alimentaram a agitação social na cidade de Quito. Além disso, poderíamos dizer que essa repressão seletiva deriva indiretamente dessas negociações. O CONAIE, em conjunto com os cidadãos, organiza uma mega “limpeza de minga” dos espaços ocupados durante os 11 dias de revolta em Quito, o que significa libertar todo o território preparado para o conflito de barricadas e qualquer registro das revoltas, para deixá-lo ao controle do Estado. De qualquer forma, como nos demais países em que se volta atrás ao desencadeador da revolta, isso não é mais suficiente, porque o problema não é um único aumento ou um pacote de medidas, mas algo muito maior.
Solidariedade
Nestes dias de protesto, com desobediência e solidariedade, o proletariado em luta era nutrido por barricadas, reuniões e assembleias populares. Se auto-organizava para estocar pedras, bicarbonato de sódio e vinagre (para combater o efeito do gás lacrimogêneo), mas também alimentos e bebidas.
Queremos compartilhar um testemunho que nos dá uma ideia da intensidade dos laços daqueles dias:
“Na segunda-feira, um conhecido me disse que, se não conseguimos nos organizar quando o terremoto ocorreu há dois anos, poderíamos fazer isso pior agora, diante da chegada de milhares de pessoas. Ele me perguntou: quem vai pagar por isso? Como será resolvido que eles comam três vezes ao dia pelo menos algo básico? E então eu disse: as comunidades sabem como se organizar. E assim foi. Não estava me referindo apenas às comunidades indígenas, mas às comunidades de seres humanos [no geral]. E, de fato, foi possível para mim descobrir que, quase como por mágica, dezenas de células organizacionais foram formadas para solicitar doações, cozinhar, dar apoio psicológico e emocional, transportar, coletar lixo, tomar cuidado, limpar, distribuir o que é necessário, curar, comunicar-se … Enfim, para tudo o que for necessário.
Eu mesma, de ontem para hoje, faço parte de uma rede de afeto e empatia na qual talvez só nos encontremos apenas por esse período da vida, mas tem sido o suficiente compartilhar essas jornadas, para dar abraços amorosos quando nos despedimos ou enviar abraços por mensagens entre pessoas que nem sequer vimos.
E é a essas comunidades que eu estava me referindo na segunda-feira quando respondi ao meu amigo e ele ouviu cético. E acho que, se há tantas pessoas boas com tanta vontade de ajudar, tantas pessoas se ajudando, tantas pessoas colocando seus corpos nessa luta, é porque todos nós que estamos aqui sabemos que não estamos apenas ajudando, mas que estamos jogando com o futuro. Tão poderosa é a luta que os/as irmãos/irmãs [hermanxs] a apoiam no México, Argentina, Colômbia, Chile, Peru, Bolívia. E é poderoso não apenas porque é maciço e resistente, mas porque torna visível um pensamento de respeito e dignidade, um pensamento que nos acompanha há milhares de anos e, por sua vez, evidencia um sistema de morte que é aquele que deseja subjugar toda a humanidade.
Cada um saberá qual sistema o acompanha: eu sou do sistema da Vida” (Extraído de uma publicação de Facebook. 10 de outubro).
Repressão e criminalização
À repressão brutal nos dias de revolta, devemos acrescentar a subsequente criminalização e perseguição a ela. O governo realizou buscas nas instalações e casas de alguns líderes de organizações sociais, bem como ações judiciais. Até o momento, no Equador, existem 11 mortos, 1.340 feridos e 1.192 detidos da Greve, pelos quais os combates continuam e continuarão.
Depois de espalhar o absurdo de que a revolta foi provocada pela Venezuela (Maduro), FARC e Correa, o Estado equatoriano recorre à carta do “inimigo interno” que classificou como “grupos insurgentes” para justificar sua repressão e terrorismo. Desde 29 de outubro, as Forças Armadas do Equador têm uma nova missão: “será identificá-los, isolá-los e neutralizá-los para serem entregues às autoridades competentes”.
As declarações do diretor de operações do Comando Conjunto, Fabián Fuel, são feitas após o presidente da CONAIE, Jaime Vargas, falar sobre a criação de um “exército próprio” de movimentos indígenas. Por esse motivo, a Procuradoria Geral da República abriu uma investigação contra ele. No entanto, Vargas apontou que “em nenhum momento, em todas as minhas expressões, eu disse um exército armado, nunca disse um exército subversivo”. E ele explicou que o movimento decidiu criar “uma guarda comunitária indígena” para fornecer segurança em seus territórios e que seria “apegada à Constituição”, operando em cooperação entre a justiça comum e a indígena.
A imprensa colabora, como sempre fez, falando de “grupos de estudantes que estavam preparando acampamentos do tipo guerrilha”. E, juntamente com o Estado, eles falam de “células anarquistas” e, é claro, de infiltrados, assim como dias atrás eles falaram em instigação da Venezuela ou de terroristas indígenas, acrescentando combustível ao fogo da xenofobia e racismo já existentes.
Recentemente, no Chile, seu presidente desde o início também fez declarações semelhantes: “Estamos em guerra contra um inimigo poderoso”. Insinuando que por trás da revolta havia alguma mão negra, que poderia ser desfeita em acusações contra a Venezuela de Maduro ou grupos armados clandestinos (mapuche, anarquistas ou a assembleia que eles inventam). No entanto, esse inimigo poderoso que afeta diretamente seus interesses e os de sua classe é o proletariado, não este ou aquele grupo designado ou inventado para garantir a “segurança interna”, isto é, a continuação da sociedade de classes.
Carta do passado
Na brochura Revueltas en Ecuador, feita pela Biblioteca e Livraria La Caldera (Buenos Aires), eles publicaram como uma carta do passado um artigo da revista Comunismo [periódico do GCI], nº 45, do ano 2000, intitulado “Aqueles que lutam contra o capital e o Estado!” (contra o mito da invencibilidade das forças repressivas).
Este artigo descreve as revoltas de 19 anos atrás no Equador e poderia ser uma descrição atual, alterando-se alguns dos nomes próprios. Se extrairmos alguns parágrafos, não é por curiosidade casuística, mas para entender como as lutas acontecem, para aprender com os erros repetidos, para não supor que tudo está começando, em suma, para entender a historicidade dos eventos atuais:
“Em janeiro de este ano [2000] as lutas que se tinham desenvolvido durante todo o ano passado adquiriram uma força inusitada quando proletários do interior começaram a marchar em direção de Quito, radicalizando assim também o movimento preexistente na dita cidade. O governo democrata popular de Mahuad tenta travar os protestos enviando a repressão e diluindo-os pela força. Ao princípio o ataque toma por surpresa os manifestantes: há feridos, há presos e, em primeira instância, dispersão e desorientação. Mas à violência que por cima assalta o proletariado agrícola e urbano responde-se com a violência de baixo: as manifestações não só não se acabam, mas desenvolvem-se de forma mais organizada e fortificam-se, a violência de classe assume-se abertamente. Enquanto o proletariado conquista os poços de petróleo, paralisa o oleoduto trans-equatoriano cortando a distribuição do combustível e impedindo toda exportação, dezenas de milhares de manifestantes enfrentam-se aos militares, cortam os grandes eixos, controlam os acessos das aldeias e cidades e conquistam as ruas de várias cidades do país. Se antes se podia ainda pretender que a protestação estava dirigida contra a presidência e o poder executivo, com a radicalização das manifestações o questionamento do Estado é tão geral que se reconhece publicamente. Proíbem-se as manifestações, atira-se para a rua as forças de choque e o Estado de Sítio é declarado. Mas as manifestações são cada vez mais potentes, o proletariado questiona abertamente a potência estatal no seu conjunto. Vendo-se totalmente questionado e superado o presidente Mahuad designa alguns ministros como culpados, força-os a renunciar, nomeia alguns outros mais progressistas … Mas tudo isto para nada serve, a luta proletária segue com maior intensidade. Consciente do perigo, a burguesia decide sacrificar o próprio presidente e até o Exército e os Sindicatos tentam acalmar o jogo. Dizem que ‘a luta é contra a corrupção’, o FUT – Frente Unitária de Trabalhadores – declara que é necessário castigar a corrupção e formar um governo de Salvação Nacional. […]
Nenhuma força repressiva é então capaz de travar o movimento insurrecional, os poucos militares que tentam fazê-lo são completamente ultrapassados e recuam covardemente perante esta avalanche humana de várias dezenas de milhares de proletários de ambos os sexos, de todas as idades e categorias (‘indígenas’ ou não – mais uma vez nesta discriminação os periodistas afirmam-se como agentes decisivos do Capital e do Estado) que buscam apoderar-se de distintos edifícios públicos: em Quito tomam o Palácio do Governo, o Parlamento, a Corte Suprema de Justiça, a Tesouraria, os Ministérios, o Banco Central, assim como outros edifícios, ao mesmo tempo que chamam a reproduzir isto em todas as cidades que já estão totalmente paralisadas pelo movimento. […]
Dia 23 de janeiro, na rua festeja-se a vitória da insurreição, apesar dos maquiavelos e dos gatopardistas misturados aos manifestantes que continuam insistindo em ‘buscar soluções ao movimento’. Os fabricantes da informação falsificam tudo e falam de ‘um golpe de estado militar apoiado por indígenas!’, ao mesmo tempo que se incita ao racismo anti-indígena. Declara-se formada uma Junta de Salvação Nacional, de fato, um triunvirato constituído por militares, líderes indígenas oficialistas e um membro em voga da corte Suprema, que com um discurso de esquerda tenta restabelecer a ordem [2]. Frente à continuidade do movimento e à incredibilidade do proletariado, opera uma verdadeira frente única de salvação nacional constituída pelos sindicatos, os partidos e tudo o que resta das forças repressivas que apelam à cessação do movimento e ao apoio à Junta. O próprio presidente da CONAIE, António Vargas, declara que ‘o povo equatoriano triunfou, que a Junta de Salvação Nacional não defraudará o país, e que a unidade com as forças armadas era uma experiência nova para a América Latina’. Mas perante a incredibilidade generalizada, essa Junta apenas dura algumas horas, o poder, de fato, permanece na rua, apesar dos esforços dos reorganizadores do Estado capitalista, dentro dos quais os jornalistas, que jogam as suas cartas mais fortes ocultando, desinformando, tergiversando aproveitando a falta de novas iniciativas e directivas do proletariado, assim como os apelos a voltar para casa, declara-se (especialmente pela boca do general Carlos Mendoza em nome dos militares) que o ‘poder’ do presidente destituído passa para as mãos do vice-presidente Gustavo Noboa, que, como aparece evidente a todos os protagonistas, imporá a mesma política econômica que o seu predecessor. O rechaço do proletariado a tais ‘soluções’ continua explícito. Na rua as consignas são de total repúdio a todas as tentativas que provêm abertamente do Estado. […]
A CONAIE, organização indigenista, que, como vimos, aparecia como interlocutor representante do movimento, pela boca do seu presidente António Vargas, apoia ‘a solução’ (o indigenismo sempre atua contra a unificação do proletariado) pactuada pelos partidos, exército e sindicatos, apesar de, para manter uma certa credibilidade, também fala da ‘traição’ de Mendoza. Todos os aparatos do Estado Burguês voltam a unificar-se e para isso assimilam-se proletários indígenas inconsequentes. O descontentamento e a desorientação na rua é geral, o sentimento de ter sido enganado de novo é absoluto, mas o golpe que significaram as declarações dos chefes vendidos foi forte e procura desarticular, ao menos temporariamente, o movimento. A imprensa dirá satisfeita (de ter cumprido o seu dever de ordem) que ‘os indígenas voltam às suas casas e às suas terras’. Depois de duas semanas de luta aberta contra o Estado, o regresso a casa tem um gosto amargo. Mas o proletariado, que sentiu de maneira concreta que podia enfrentar o estado e desgarrá-lo, já não será tão facilmente mantido em submissão. Será muito laborioso, apesar de todos os esforços feitos pelos fabricantes da opinião pública, catapultar a sua consciência da força experimentada”.
Queremos adicionar uma nota e uma atualização a esta edição presente:
Quando nos referimos ao indigenismo, não estamos nos referindo a ser indígena, mas à ideologia do indigenismo que supõe que, além das classes sociais, haveria grupos que estariam fora do referido antagonismo. É claro que existem diferenças, no entanto, vivemos em condições materiais definidas por nossa classe social, elas nos atacam igualmente e teremos que lutar juntos: proletários indígenas e proletários branco-mestiços contra burgueses indígenas e burgueses brancos-mestiços. Lutar não para “igualar” classes e raças, mas para aboli-las.
Essa ideologia, não por acaso, é reproduzida principalmente por pessoas não indígenas e é negada pelos fatos quando a paz social é rompida. Quem é indígena e quem não é nesses países onde todos os oprimidos são descendentes de povos indígenas, imigrantes pobres ou uma mistura de ambos?
Por outro lado, as propostas de um indigenismo separatista são uma possibilidade incapaz de oferecer uma resposta à exploração e à opressão geral. Os povos indígenas não têm pátria, nem o resto do proletariado. Talvez o mais interessante seja que os povos indígenas já saibam disso [3].
Enquanto escrevemos este boletim, Jaime Froilan Vargas, líder indígena Schuar e atual presidente da CONAIE, com o fogo da barricada extinto, fantasia sobre a presidência equatoriana. Ele até antecipou como serão as coisas quando ele governar o país: “não nos reunimos para defender nossas ideologias políticas partidárias, mas para trabalhar, pensar, discutir e debater um processo importante: um novo modelo econômico para o nosso país”. A conciliação contra o proletariado em luta leva esse líder, em 31 de outubro, a propor um “novo modelo econômico” para o Equador ao governo assassino de Moreno, nada mais e nada menos do que na Conferência Episcopal, onde delegados do Governo e a ONU se reúnem. “Esta proposta de novo modelo econômico e social, é do povo, pertence ao povo, e ao desenvolvimento do país”, evidenciando a natureza reformista e oportunista do indigenismo.
Breve balanço
Compartilhamos abaixo extratos de Breve balanço e perspectiva das jornadas de luta proletária em outubro de 2019, no calor dos últimos eventos e debates a esse respeito. Assinado por “Un@s proletari@s cabread@s de la región ecuatoriana por la revolución comunista anárquica mundial” [Alguns/Algumas proletários/proletárias irritados/irritadas da região equatoriana pela revolução comunista anárquica mundial] (Quito, 17 de outubro de 2019):
“Se fez o que se poderia ser feito, o que as forças realmente existentes permitiram fazer, nem mais nem menos; concretamente, obrigar a abolição parcial das mais recentes medidas de austeridade capitalista ou do ‘pacote’ imposto pelo governo Moreno (decreto executivo 883), desde as ruas conquistadas pela luta dia após dia e noite após noite. Mas, como Marx disse, um passo adiante do movimento real vale mais de uma dúzia de programas.
Essa vitória parcial de 13 de outubro (com certo sabor de derrota por nossos mortos e pela permanência do atual governo de ladrões e assassinos e suas desastrosas reformas trabalhistas) foi o resultado de todas as ações diretas das massas realizadas desde 3 de outubro: se tomaram instituições governamentais, poços de petróleo, estradas foram paralisadas, houveram marchas e panelaços, piquetes e barricadas, alguns comércios foram saqueados, regimentos policiais e tanques de guerra foram queimados, policiais e militares foram capturados e retidos, o presidente fugiu para Guayaquil, a Comuna foi estabelecida em Quito como epicentro da Greve nacional … Com essas ações, em 11 dias eles fizeram o que não fizeram em 11 anos. 11 dias de colapso parcial, temporário e precário, mas real, da normalidade capitalista, especialmente dentro dos próprios protestos: colapso do trabalho assalariado e movimento de mercadorias (por uma razão que foi a greve), de propriedade privada e dinheiro, substituindo-os por solidariedade e gratuidade (nos centros de coleta e refeições comunitárias); ao qual era acompanhado o tempo todo pela discussão e tomada de decisões coletivas nas assembleias, e pela corajosa autodefesa das barricadas contra a repressão brutal dos cães de guarda uniformizados dos ricos e poderosos. (…)
Os mortos e feridos em combate pelo terrorismo de Estado também não são pouca coisa. Eles não foram ‘mortes acidentais’, foram crimes de Estado. Nem perdão nem esquecimento! Por esse motivo, negá-los ou torná-los menos é uma falta de respeito e até uma demonstração de cinismo em relação a eles, seus entes queridos e seus colegas. Uma atitude péssima e censurável, não apenas de alguns direitistas, mas também de alguns esquerdistas locais. Pelo contrário, o mínimo que deve ser feito nesses momentos de ‘pós-guerra’ das classes (porque o que aconteceu aqui foi uma guerra de classes que ainda não terminou) é: mostrar solidariedade aos camaradas detidos e às famílias dos camaradas caídos; denunciar ativamente e se opor ao terrorismo assassino do Estado/governo, que atualmente está realizando uma repressão seletiva como vingança contra membros de organizações sociais que participaram da greve, motivo pelo qual é nosso dever cuidar de nós mesmos; estar alerta e evitar novas medidas de composição e austeridade ‘direcionadas’ (novo decreto executivo); estar atento também ao início das privatizações para se opor a elas e às mobilizações anunciadas para o final deste mês contra as reformas trabalhistas de flexibilização/precarização ainda em vigor; e manter a mobilização e organização social que ocorreram espontaneamente para ‘acumulá-la’, radicalizá-la e generalizá-la a médio e longo prazo, com uma perspectiva autônoma e revolucionária. Nesse sentido, isso está apenas começando. A luta continua. Até o fim. Porque não se trata de sobreviver menos mal, mas de viver de verdade. E não se trata de mudar o mestre, mas de deixar de tê-lo.
(…) da resistência e dignidade que somente a luta concede, dizemos: pelos nossos mortos e nossas vidas, nem um minuto de silêncio, uma vida de combate! A solidariedade é a nossa melhor arma e os fará tremer de novo!”.
Um mês após a greve nacional …
Este é um resumo das Notas críticas sobre a situação atual no Equador, um mês após a Greve Nacional, de ambos os lados da luta de classes, assinada pelos “Un@s proletari@s cabread@s de la región ecuatoriana por la revolución comunista anárquica mundial” [Alguns/Algumas proletários/proletárias irritados/irritadas da região equatoriana pela revolução comunista anárquica mundial] (Quito, 8 de novembro de 2019) [4]. Do lado do governo ou do Estado Burguês:
Está a repressão seletiva, jurídica e policial e da mídia, contra líderes indígenas, sindicatos e estudantes, incluindo membros de brigadas médicas que participaram da greve, como vingança e “punição exemplar”. Também se fala em “19 grupos violentos” e “células anarquistas” (inexistentes), que eles estão rastreando e vão erradicar, dizem eles.
Economicamente falando, as reformas trabalhistas foram ratificadas: cortes ou demissões de pessoal; redução de salários, de férias e de aposentadorias; modificação da semana de 40 horas; contratos flexíveis, etc. E o orçamento do estado para a Universidade pública será reduzido. O governo acaba de propor uma “lei de crescimento econômico” que consiste principalmente na eliminação de impostos e tarifas para beneficiar direta e exclusivamente a burguesia importadora, exportadora, agroindustrial e de construção. Tentando compensar isso, eliminando e reduzindo outros impostos menores sobre certos insumos.
O processo de privatização de empresas públicas continua avançando silenciosamente e a mídia oficial (uma das quais, Teleamazonas, pertence a um dos maiores bancos do país, o Banco Pichincha) continua desinformando e mentindo todos os dias.
Do lado dos movimentos sociais ou do proletariado em luta:
Se está lutando pelos 1.192 detidos (incluindo menores), pelos 1.340 feridos e pelos 11 mortos na Greve.
Resta criticar o movimento indígena e o movimento sindical que oscilam entre o diálogo com o governo e o anúncio de novas medidas ou mobilizações. A crítica radical é que não se trata de mudar o modelo econômico (e muito menos por meios eleitorais, como certamente acontecerá em 2021), mas de mudar o sistema social na sua totalidade e na sua raiz, porque o problema subjacente não é o “neoliberalismo” ou o FMI, mas o capitalismo.
Existem diferenças, tensões, conflitos e transbordamentos entre bases e líderes, no CONAIE e em outras organizações, antes, durante e depois da Greve. Este não é um fato menor. Ao contrário. O transbordamento da liderança pelas bases é fundamental para a radicalização da luta social.
Existem novas organizações e processos, como assembleias de bases auto-convocadas em Quito (por exemplo, a Assembleia Anticapitalista de Quito da qual atualmente participamos), Cuenca, Loja, Cotopaxi, Chimborazo, que por sua vez propõem formar, fortalecer e articular as assembleias territoriais em todos os lugares (bairros populares, universidades públicas, comunidades indígenas, locais de trabalho, etc.).
Como conclusão: a Greve terminou, mas a luta social continua e deve continuar até as últimas consequências. A chave para isso é agitar e fortalecer a auto-organização, mobilização e radicalização das bases proletárias da cidade e do campo, as bases indígenas e mestiças, fora e contra as instituições estatais, sindicatos, partidos, representações, negociações e eleições. Dizer que a luta continua e deve continuar até as últimas consequências significa que a luta é para tomar e mudar tudo, pela revolução social total e internacional e não pelas reformas nacionalistas estatistas, populistas e “pluri”.
Falando mais especificamente, isso se aplica a todas as lutas atuais e futuras por demandas específicas de vários setores explorados, porque estas não se imploram aos ricos e poderosos que nos matam de fome, depressão e tiros, mas são arrancadas de suas mãos, tornam-se generalizadas, se unem e radicalizam-se até se tornarem uma revolução social.
Enquanto explorados e oprimidos deste país, não nos jogamos nas ruas ou arriscamos nossas peles na greve nacional e depois nos contentamos com as mesmas migalhas de sempre. Estamos fartos de todo esse sistema de merda que sofremos diariamente. Nós não somos ninguém e queremos tudo. Estamos voltando à vida e não negociaremos com o sangue de nossos mortos. A luta continua e deve continuar até as últimas consequências, isto é, até que a revolução social seja realizada e não uma reforma econômica e política.
Notas:
[1] – O Equador parou de produzir 63.250 barris de petróleo por dia devido à ocupação dos poços. Pelo menos três campos de petróleo suspenderam suas operações quando várias instalações foram ocupadas por “pessoas fora da operação”, conforme divulgado na segunda-feira, 7 de setembro, pelo Ministério da Energia.
[2] – Especificamente, a Junta Nacional Militar de Salvação Cívica era composta por Lucio Gutiérrez (que em breve seria substituído por Mendoza), líder de um grupo de oficiais do exército, Antonio Vargas, presidente da CONAIE, e Carlos Solórzano Constatini, ex-presidente da Suprema Corte da Justiça.
[3] – Veja os artigos Los mapuche no son chilenos ni argentinos, nosotros tampoco y ¿Pueblos originarios? em La Oveja Negra, nº 50 e 21, respectivamente.
[4] – Para ler este panfleto completo e os anteriores da revolta em Quito, visite: http://proletariosrevolucionarios.blogspot.com/.
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CONVENÇÃO CONSTITUINTE OU ASSEMBLÉIAS TERRITORIAIS AUTÔNOMAS?
I
A rebelião do 18/10 foi espontânea, popular, massiva e anárquica. A “válvula de descompressão” que se tenta instalar desde cima é hierárquica, elitista, institucional e “democrática”.
De fato, parece que esta insurreição a nível nacional quase não tem precedentes históricos. Talvez duas explosões com as quais notoriamente tem mais em comum seriam as de abril de 1957 em Valparaíso, Concepción e Santiago, e o movimento das ocupações em junho/maio de 1968 na França.
No primeiro movimento, o proletariado dessas três cidades se levantou espontaneamente com uma leve discrepância temporal (30 de março em Valparaíso, 1 de abril em Concepción e 2 de abril em Santiago) por causa do aumento de preços do transporte, desencadeando uma insurreição intensa e breve que, para ser derrotada, obrigou a retirada da polícia das ruas e colocar o Exército. Dezenas de mortos, e o Governo recuou o aumento [1].
No segundo, a forte repressão ao movimento estudantil gerou uma greve geral espontânea, boicotada pelos partidos burgueses (sobretudo pelo Partido “Comunista” Francês) e seus sindicatos. Após um mês de uma verdadeira explosão popular de criatividade e combates na rua com a polícia, o movimento começa a decair quando se reorganiza o partido da ordem incluindo manifestações massivas pela paz social, e finalmente chegando a acordos de reformas econômicas entre os patrões, os sindicatos e o governo. Um ou dois mortos em todo o processo (as vidas valem menos quanto mais se adentra no Terceiro mundo), e o estouro de 68 adquire uma dimensão global (EUA., Córdoba, México, Japão, Tchecoslováquia e um grande etc.) [2].
Porém, nenhuma revolta é igual a outra - ainda que em todas elas se produza uma suspensão da temporalidade e da normalidade instalada pela ordem social - e a de 18/10 parece ter sido um acontecimento único. Embora o “estouro” fosse previsível há muito tempo (como afirmam agora vários generais depois da batalha), era impossível calcular quando e como iria se produzir, e menos ainda que há um mês e meio desta irrupção, este ataque horizontal e multiforme contra a normalidade capitalista, iríamos continuar nas ruas apesar de tudo.
De toda forma, se olharmos a outros processos atuais como os protestos em Hong Kong e na França, parece que nesta nova onda global de rebeliões contra o sistema de dominação as insurreições já não tem no horizonte uma “conquista do poder” (tal como se entendia desde a visão das revoluções burguesas: através da captura do poder estatal), senão que são verdadeiras “insurreições permanentes”, que ao mesmo tempo que desafiam o poder, tratam de constituir uma comunidade humana que prefigura outras formas de vida.
II
O que é sim uma manobra previsível e quase “de regra” é a resposta orquestrada de cima. Depois de 3 semanas da “declaração de Guerra” feita pelo Presidente bilionário com as desastrosas consequências conhecidas por todos, pudemos ver reunida num Palácio toda a “classe política” - curioso conceito pois a rigor são todas expressões da política de uma só classe, a burguesa, apesar de que por vezes políticos profissionais tendem a constituir uma espécie de casta separada -, que se unificou bem rápido suportando uma forte pressão entre a rebelião popular por um lado e as exigências da Economia e da máfia estatal-militar do outro, para poder proclamar de madrugada a assinatura do “Acordo pela Paz e a Nova Constituição”. Todos juntos no esforço de relegitimar o Estado, o capitalismo, o “modelo chileno”, e sem pronunciar nenhuma palavra sobre o esclarecimento e castigo às práticas massivas e sistemáticas de violação de direitos humanos por parte de Carabineros, ao mando do infame Diretor-Geral Mario Rozas, e das quais são responsáveis também Piñera, Chadwick, Iturriaga e Espina. Obviamente, quando se está negociando com criminais de lesa humanidade lhes reconhece como interlocutores válidos e sua responsabilidade política e criminal permanece à sombra. Nisso o cacarejado Acordo mostra a marca própria da classe dominante chilena, tomando como modelo as negociações inter-burguesas dos finais da década de 80 que pavimentaram o caminho à “transição”.
III
Alguns analistas oficiais falam abertamente que o objetivo dos acordos negociados e anunciados em 15 de novembro é a “Pacificação” do conflito, ao qual julgam desde já como relativamente bem-sucedido. O Ministro Blumel aponta que a cada dia há menos manifestações e detidos. Porém, o proletariado juvenil não abandona a rua, aprendeu a lutar massivamente contra os capangas do GOPE/FFEE (o “Comando da Selva” na cidade) [NT: Grupo de Operaciones Policiales Especiales e Prefectura de Fuerzas Especiales, respectivamente], atacou e derrubou os piores símbolos monumentais da dominação dentro do território reconquistado todos os dias “pela horda” e, além de adrenalina e espírito de luta, tem clara consciência de que o que se alcançou foi graças à ação direta das massas, não a negociações, acordos, votos nem urnas.
O jornal “El Mercurio”, de 21 de novembro, também avalia um sucesso relativo no trabalho de contenção política “constitucional” como efeito de dito acordo e opina que as discrepâncias observadas “aparecem em geral canalizadas no âmbito da política e dentro de uma estrutura institucional”. Porém, reclama amargamente da “normalização” da violência: “Diariamente se conhecem novos saques a locais comerciais e até a centros médicos. Manifestações de estudantes seguem alterando o funcionamento do metrô, e até ontem haviam sido detectadas novas evasões massivas. Em resumo, perigosamente, começam a suceder-se as agressões em massa à funcionários policiais”.
O órgão de direcionamento da política burguesa que é o jornal “El Mercurio” conclui chamando a atenção para os “legitimadores” da violência popular. E já se estão vendo tentativas de conduzir ações por parte do Ministério do Interior pela Lei de Segurança do Estado contra quem fez agitação a favor da derrubada do governo.
IV
Poderá a farsa “constituinte” que se anuncia, que tanto entusiasmo causa a todos os fetichistas jurídicos e sociais-democratas de bom coração, conter e processar as energias da rebelião popular? Poderão domar a acracia para convertê-la em democracia?
Acreditamos que não será tão fácil, porém dependerá de como nos organizemos a partir de agora, desde o contrapoder gerado espontaneamente nas ruas, e os objetivos que nos estabelecemos como classe/espécie, de fora e contra todas as parcelas de “poder separado”.
De qualquer modo, o que temos claro é que as assembleias territoriais são órgãos criados pelas comunidades em luta a partir de 18 de outubro. Nosso lugar é ali, onde teremos que por um lado discutir abertamente com aqueles que abraçam mais ou menos conscientemente posições institucionalistas e sociais-democratas, que se expressam até agora em um sentimento majoritário a favor de um “processo constituinte”.
Porém, não se trata somente disso: o maior potencial das assembleias territoriais, na medida em que mantenham sua autonomia, atuando por fora e contra o Estado, tem a ver com questões e tarefas de ordem prática (autodefesa, alimentação, comunicações, cuidado de crianças e adultos mais velhos) que têm de ser levadas aos seus limites para poder elaborar, a partir delas, os objetivos comunizadores.
As assembleias são o espaço a partir do qual podem surgir novas formas de relação social, que superem e mandem à lixeira da história as relações sociais capitalistas. Faz-se necessário coordená-las todas.
V
Este acordo torna evidente a tendência da sociedade atual ao “politicismo” [3]: o que aparece sempre na superfície, na ponta do iceberg da sociedade, é o sistema de dominação em sua face de “instituições” políticas e democracia representativa. Marx disse claramente que “as revoluções não se fazem com leis”, porém a cidadania esquerdista/democrática sonha em mudar o país através de um grande “Pacto Social”. Moldando seus “sonhos” na grande Mesa da Lei, acreditam que a base econômica e social do sistema mudará como se seguisse a varinha mágica do “poder constituinte”.
Uma prova evidente disso é que a classe dominante aposta em abater a tensão com medidas policiais e “constituintes”, porém permanece claramente obscuro tudo com relação à “agenda social” com a qual se prometia resolver as graves injustiças e abusos contra os quais as pessoas se rebelaram em massa há um mês.
Contudo, está claro para alguns analistas oficiais que a reinstalação da Paz Social depende de ambas as agendas: “No horizonte imediato aparecem dois desafios. O mais urgente é a capacidade da classe política de poder construir um acordo entorno das pensões, do salário mínimo e do endividamento, para citar algumas das demandas mais sentidas pelos manifestantes. Se não houver resposta rápida para isso, o movimento pode se reativar. O outro desafio é como garantir a mais ampla participação com respeito ao plebiscito”.
VI
“Espontaneidade” não é o contrário de organização consciente. Segundo Marx, “o partido proletário nasce espontaneamente do terreno histórico da sociedade moderna”. Obviamente que esse partido histórico nada tem a ver com o Partido-instituição que a social-democracia tradicional e então a radicalizada ou leninista legaram à história, em uma concepção que chegou a ser dominante, na qual se contrapõe “espontaneidade” e “consciência”. O movimento proletário revolucionário é, de fato, “espontâneo”, porém não somente no sentido de que, quando se manifesta (Rússia 1917 ou Espanha 1936), é uma revolução sem chefes, que não espera ordens de cima, mas, além disso no sentido de que “esses movimentos do proletariado estão totalmente determinados pela situação que essa classe ocupa no conjunto das relações sociais fundamentais da sociedade moderna e por uma conjuntura particular que, durante um determinado período, lhe proporciona a oportunidade de intervir no cenário” [4].
A consciência não se opõe a esta espontaneidade - ao contrário do que acreditou Kautsky na II Internacional e seu discípulo Lenin na III Internacional, com a tese de que é necessário introduzir ao proletariado uma “consciência externa” -, senão que “o proletariado adquire, porque a necessita, a consciência de si mesmo, ou seja, a representação clara de sua situação, de suas relações com as outras classes e de seu papel” e “por sua situação nas relações de produção capitalistas, a classe trabalhadora é a única classe que porta, enquanto classe, a consciência socialista” [5].
A rebelião chilena foi iniciada pelo proletariado juvenil, porém, ao acender o pavio e se estender imediatamente a todo o país, foi assumida pelo conjunto do povo. Onde ainda não conseguiu se expressar de maneira forte é nos centros produtivos, nos lugares de trabalho, salvo algumas exceções, com movimentos e iniciativas “corporativas”, em geral controladas pelos sindicatos. Não é preciso ser “obreirista” para se dar conta de que isso tem sido uma limitação vital do movimento até agora.
O que está claro é que em um mês de luta o nível de consciência aumentou notavelmente, como sempre se disse que tende a acontecer nestes processos, e da crítica ao modelo - o chamado “neoliberalismo” - se passa à crítica do sistema (capitalista), ao seu modo de vida e às nocividades sistemáticas que este gera.
De fato, o que floresce nas ruas desde 18 de outubro não é nada menos que a vida, em suas diversas expressões. Não somente não é acidental que não existam “chefes”, senão que é de profunda importância que o maior ícone do movimento é um animal não-humano: o lendário cachorro que por anos sempre nos acompanhou nas ruas e que é conhecido como o “Negro Matapacos”.
A revolução social dá uma possibilidade à humanidade para reconciliar-se consigo mesma, com os outros animais e com a natureza.
VII
Com um mês do início da rebelião, algumas coisas estão ficando claras. Se pôs à mostra o caráter terrorista do Estado, e se demonstrou que o único poder de nossa classe está nas ruas, através de protestos massivos e uma “primeira linha” de centenas de jovens que colocam o peito frente à repressão e que aprenderam a se defender e atacar individual e coletivamente, garantindo assim que milhares possam seguir na rua apesar das brutais investidas da polícia.
O que está em falta é uma maior presença de propaganda e reivindicações dirigidas a exigir a liberdade da grande quantidade de companheires que foram trancafiades nas cadeias através de prisões preventivas e que sofreram uma crueldade evidente por parte da Acusação e dos Tribunais.
É necessário exigir de imediato sua liberação incondicional sem importar o tipo de delito do qual foram acusados. E como contrapartida, sem cair em concessão de nenhuma confiança ao Estado, devemos exigir esclarecimento e castigo por todas as violações de direitos humanos cometidas por militares e policiais, e, com base em seu caráter generalizado e sistemático, subir a exigência de responsabilidade aos níveis mais altos do governo e do Estado.
VIII
Muitos e muitas companheires anticapitalistas (porém não necessariamente antiautoritáries) veem com bons olhos o espaço “constituinte”. Apontam, por exemplo, que “embora a Assembleia não será o que colocará um fim ao modo de produção capitalista no Chile, é a instância em que, por um lado, se for alcançada a reversão do acordo firmado pelo partido da ordem, abrirá o caminho para pôr fim ao período político e iniciar um novo com a classe trabalhadora como protagonista avançando muito mais rápido do que o fez nas últimas décadas; e, por outro, poderia permitir conquistar e consagrar uma série de demandas que nasceram nos últimos anos de mobilizações sociais. Essas conquistas devem materializar-se, já que dessa maneira se prova que a luta da frutos, que somente com organização se avança”.
Não concordamos: ficou explícito mais uma vez que o caminho para pôr fim à dominação capitalista/estatal/patriarcal não é a integração das reivindicações populares na esfera política especializada, senão que a ação direta das massas nas ruas e praças do país. Por que teria de se ir “provar” isso através da aprovação de leis e constituições que são precisamente a linguagem do Estado que estamos tentando suprimir e destituir? E se a ideia é “integrar a classe trabalhadora” (entendida no sentido mais obreirista e tradicional), por que é o espaço “constituinte” e não a luta frontal e direta o que poderia convocá-los?
Nós não nos separaremos das assembleias territoriais pelo fato de que nelas se expressa a demanda de Assembleia Constituinte. Porém, estamos certos de que esse não é nosso terreno.
O que faremos será propor nesses espaços a abolição da ordem social existente através de demandas destituintes, começando pela exigência de dissolução dos Carabineros do Chile e em especial de seu “Comando Selva” (GOPE e FFEE), abolição do SENAME [NT: detenção de menores], liberdade a todos e todas preses da revolta, etc.
A partir disso, nosso programa de abolições (do Estado, do dinheiro, da polícia) começará a expressar-se com toda claridade e coerência.
Notas:
[1] Sobre o 2 de abril de 1957 existe um livro muito bem documentado do historiador Pedro Milos na LOM [NT: editora chilena], e uma breve reportagem em Comunismo Difuso Nº 2-3.
[2] Sobre o 68 na França, ver o livro Situacionistas y enragés en el movimiento de las ocupaciones, de René Viénet, disponível online no Archivo Situacionista Hispano. Sobre o novo cenário global aberto esse ano, ver ‘El Comienzo de una época’ em Internacional Situacionista Nº 12, setembro de 1969.
[3] Sobre os dois desvios clássicos e simétricos da concepção social-democrata da transição ao socialismo, gestionismo e o politicismo, ver o livro La contrarrevolución rusa y el desarrollo del capitalismo, do Grupo Comunista Internacionalista, em especial ‘El politicismo contra la revolución’ (p.27). Ali se afirma que: “Para os politicistas, a economia é realmente um assunto separado e por isso, apesar de serem tão ‘revolucionários’ na política, não somente são muito reformistas (contrarrevolucionários) no socioeconômico (nenhum ataque ao capital, senão a busca de sua centralização jurídico-estatal), senão que terminam sem exceção fazendo entrar pela janela o que diziam expulsar pela porta: o gestionismo”.
[4] Denis Authier, prefácio a Leon Trotsky (2002) Informe de la delegación siberiana. Trotsky contra Lenin. Madrid: Ediciones Espartaco Internacional. P.13.
[5] Ibid., p.14.
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NOTAS SOBRE A REVOLUÇÃO QUE COMEÇA
1.
A luta de classes, isto é, a manifestação de interesses antagônicos
dentro da sociedade, nunca deixa de existir nem de perfurar as bases
desse sistema de morte, não importa o quanto tentem enterrá-la ou
escondê-la os ideólogos de todos os tipos ou as castas governantes do
dia. Uma imensidão de conflitos, que opõem os interesses vitais da
humanidade explorada ao da classe capitalista, surge constante e
espontaneamente por todos os lados. No entanto, há períodos em que estes
estouram com inusitada intensidade, deixando-se perceber seu autêntico
conteúdo de classe, após anos em que este último parecia ter-se diluído
em dezenas de categorias e identidades sociologescas e parciais.
2.
Por espontaneidade não entendemos que o movimento que nega o
Estado/Capital surja do nada, nem que careça de consciência ou de uma
organização determinada, senão que, ao contrário, se levanta do seio da
sociedade atual, sem necessidade, apesar de e contra os pretendidos
líderes, chefes ou partidos políticos que, assim como pregaram e pregam
diversas seitas sociais-democratas, lhe injetariam “de fora” a
consciência “socialista” para “conduzi-lo” a um horizonte
ideologicamente fixo.
3. No Chile, esta proliferação de
conflitos sociais, embora durante certos períodos incrementasse
notoriamente sua frequência e força, não se encaixava em um movimento
com características insurrecionais. Explosões começadas por protestos
estudantis (2001, 2005-6, 2011) foram as experiências mais parecidas com
o que vimos no último 18 de outubro. Jornadas extensas e massivas de
protestos, que incluíam a paralisação de atividades e tomada de locais
educativos (universidades e escolas secundárias, principalmente),
conseguiam gerar simpatia e solidariedade no resto da classe, porém sem
transcender os limites setoriais nem superar os canais burocráticos
(principalmente a CONFECH no contexto estudantil [NT: Confederación de
Estudiantes de Chile, a maior organização estudantil do Chile] e a CUT
no terreno sindical tradicional). Ainda assim, é o proletariado
adolescente e juvenil – fundamentalmente os e as estudantes
secundaristas – quem se mostra menos fácil de domesticar, transcendendo
além disso seus próprios limites enquanto “juventude”, como parcela
artificialmente separada da classe.
4. Precisamente em
2019, começando com a rejeição pontual de estratégias legais que
endureciam a repressão a este setor do proletariado, tanto pela lei Aula
Segura como pela proposta de verificação de identidade de menores de
idade por parte da polícia, foi crescendo em intensidade a combatividade
estudantil, o que levou a enfrentamentos diários no meio do ano com a
repressão policial no Instituto Nacional, no próprio centro da cidade,
deixando vários registros de brutalidade policial e sua correspondente
resposta juvenil. A luta, longe de enfraquecer-se, começou a
estender-se, contagiou de raiva e decisão toda uma classe que muitos
julgavam morta ou definitivamente derrotada.
5. O
proletariado, fortemente animado, além disso, pelo movimento
desenvolvido no Equador algumas semanas antes contra uma série de
medidas governamentais que encareciam a vida em geral, explora aquele
histórico na sexta-feira 18, após uma semana de evasões massivas no
metrô começadas por parte de estudantes secundaristas.
6.
A bola de neve não se deteve e se transformou, com uma velocidade
surpreendente, em uma gigantesca avalanche. No dia seguinte, todas as
cidades do país veem suas ruas encherem-se de manifestantes furiosos,
que solidarizam com seus irmãos da capital, porém, ao mesmo tempo,
demonstram que a alta da passagem foi somente a faísca que acendeu este
impressionante incêndio. “Não são 30 pesos, são 30 anos”, “O Chile
despertou!”, “Até que valha a pena viver!”, são alguns dos lemas mais
práticos que se agitam nas jornadas de revolta, mostrando a rejeição
geral a toda miséria que produz o Capital.
“Então,
sim, em 18 de outubro foi o proletariado que removeu a espessa fumaça
da sociedade capitalista. Longe do discurso de uma suposta
transversalidade que nos uniria como ‘chilenos’, ‘cidadãos’, ou supostas
‘minorias’ unidas precisamente em função de sua fragmentação, o
movimento gerado a partir da explosão expressa um conteúdo claramente
proletário e de rechaço explícito ao Capital”.
7.
É uma revolta proletária? Para muitos e muitas, falar de “proletariado”
pode soar estranho ou doutrinal. E não são poucas as razões para se
considerar assim: lamentavelmente, quem costumava e costuma (cada vez
menos, de qualquer maneira) utilizar essas palavras em sua linguagem
política são as seitas derivadas da social-democracia, ou suas variantes
equivalentes no anarquismo oficial, que reduzem a teoria revolucionária
e seus conceitos a esquemas rígidos, dogmáticos e inúteis. Porém, não
se trata de dar definições impecáveis aqui, mas de compreender os
elementos
básicos e essenciais que nos permitem explicar nosso momento histórico.
Compõe o proletariado a imensa massa humana que deve vender seu esforço
físico e mental à classe capitalista, de maneira a obter em troca o
mínimo que lhe permita reproduzir-se como mão de obra e estimular o
consumo de mercadorias. Somos a classe social que faz funcionar as
engrenagens produtivas da economia capitalista, porém que não possui nem
controla os meios de produção. Contudo, ao mesmo tempo, o proletariado
só existe quando toma consciência de sua condição e luta por sua
liberação, isso é, sua autoabolição, através do ataque às relações
sociais e às instituições que o mantém dominado e a afirmação de seus
interesses verdadeiramente humanos, não definidas nem mediadas pelas
necessidades mercantis.
8.
Então, sim, em 18 de outubro foi o proletariado que removeu a espessa
fumaça da sociedade capitalista. Longe do discurso de uma suposta
transversalidade que nos uniria como “chilenos”, “cidadãos” ou supostas
“minorias” unidas precisamente em função de sua fragmentação, o
movimento gerado a partir do estouro expressa um conteúdo claramente
proletário e de rejeição explícita ao Capital. Afirmar isso, por outro
lado, não tem nada a ver com promover uma leitura esquemática e
reducionista do conflito. Há relações sociais de dominação que geram e
organizam outras formas de exploração e o enfrentamento radical e
integral contra o Capital requer um ataque simultâneo e efetivo a todas
elas, pois é essa rede que sustenta a miséria atual. É impossível
dissociar o Estado do Capital e das relações patriarcais que permitem a
subsistência desta sociedade baseada na exploração.
9.
Em poucas semanas, este movimento explosivo de rejeição generalizada tem
mudado e amadurecido. De uma raiva inicial, lucidamente dirigida contra
a infraestrutura estatal e capitalista, incluindo pilhagens de centros
comerciais, como as grandes cadeias de farmácias, supermercados, lojas
de varejo e instituições estatais profundamente desprezadas, como o
Compin (encarregado de pagar as licenças médicas), várias
municipalidades, praças de pedágio, monumentos e estátuas que prestam
homenagem a heróis da burguesia e da pilhagem colonial, etc., passou-se
rapidamente à formação de organismos autônomos nos territórios, as
Asambleas Territoriales [Assembleias Territoriais], que coordenavam
diversos aspectos da luta social nesse nível, experiências que continuam
se expandindo, coordenando-se e se fortalecendo. Além disso, as formas
dos protestos de rua também vão desenvolvendo-se para poder fazer frente
a uma polícia cada vez mais enlouquecida, destacando a organização das
equipes de primeiros socorros, que prestam uma ajuda vital no próprio
cerne dos enfrentamentos com a repressão. No mesmo contexto da revolta,
surgem também experiências de lutas mais específicas que se veem
notoriamente potenciadas, como a denúncia do saque das águas perpetrado
por diversos tipos de indústrias, ou o boicote massivo ao processo de
rendição da Prueba de Selección Universitaria que, depois de anos sendo
alvo das críticas realizadas principalmente pelo movimento estudantil
secundário, por fim em 2020 recebe seu golpe de graça, mas não sem antes
essa ação receber a infame condenação de todo o Partido da Ordem, de
direita a esquerda.
Boicote à PSU, 2019. Imagem: Dedvi Missene. [1]
10.
Contudo, existe uma série de obstáculos e limites contra os quais se
choca nosso movimento, e que precisamente se relacionam com a falta de
claridade de seu conteúdo de classe e da forma em que esse se expressa.
11. O
discurso nacionalista, a necessária rejeição à política que se
confunde, as vezes, com o desprezo à teoria revolucionária e à nossa
história de combates como classe e, sobretudo, a falta de crítica à
democracia, que leva muitos a celebrarem o plebiscito de 26 de abril,
firmado pelo Partido da Ordem para colocar panos frios no movimento,
constituem flancos que acabarão enfraquecendo-nos e nos derrotando se
não os enfrentarmos explícita e concretamente.
12. Esse
enfraquecimento e derrota passa precisamente pela separação dos setores
que ainda creem nestas vias estatais e democráticas do resto do
movimento que se negará a deixar as ruas. O Estado não exercerá um
massacre de maiores proporções até que o movimento se encontre
efetivamente fragmentado pela defesa das “conquistas” administrativas
dos primeiros e a necessidade de manter a revolta dos segundos; quando o
próprio “desenvolvimento econômico do país” que o Partido da Ordem
apoia é posto em questão.
13. Em 18 de outubro se infligiu
um ferimento sobre a normalidade capitalista de tal maneira que
dificilmente essa poderá cicatrizar-se completamente. De uma imponente
revolta inicial, passamos hoje por um momento que parece irreversível,
com a ordem social profundamente perturbada, que entrevê o advento de um
real processo revolucionário. Porém, não nos enganaremos, a crise e
derrota do Capital corresponderá sempre no final das contas à luta de
nós mesmos pela nossa emancipação total e definitiva de nossa condição
de explorades.
14. Portanto, depende de nós, como classe
explorada, como classe proletária, ir além das perspectivas sombrias
estabelecidas pela sociedade capitalista e construir uma comunidade
humana solidária e livre de toda exploração.
A
partir do estouro da revolta que sacudiu esse território em 18 de
outubro do ano passado, e que continua remexendo-o esporadicamente até o
dia de hoje, tornou-se inegável que o que desatou a paralisação de
grande parte da infraestrutura da normalidade capitalista foi o uso de
uma violência massiva e inusitada; violência que nossa classe utilizou
em seu conjunto. Contudo, embora tenha sido nossa classe que inundou as
ruas, enfrentou a polícia e derrotou os mecanismos que permitiam o
funcionamento ininterrupto de nossa servidão cotidiana, é inquestionável
o papel-chave que teve o proletariado juvenil, tanto no desenvolvimento
da revolta como no prelúdio desta.
A ideologia dominante nos diz
que a rebeldia é uma reação própria da juventude contra a ordem des
adultes, etapa que seria seguida pela passividade e resignação da
suposta maturidade própria da idade adulta, de tal maneira que é
popularmente conhecida a suposta relação entre juventude e rebeldia. No
entanto, a verdade é que, de um modo que escapa à compreensão burguesa
do mundo e da sociedade, esta velha premissa é particularmente certa
para a juventude de nossa época.
É que, para dinamizar sua
existência através do tempo e perpetuar sua reprodução, o Capital acabou
com várias das antigas condições materiais que possibilitavam aos
explorados de 15 ou 30 anos atrás formarem-se como força de trabalho e
integrarem-se com certa eficácia no mercado de trabalho e, com base
nisso, solucionar materialmente sua existência. Em outras palavras, hoje
o Capital é incapaz de prover à sua força de trabalho mais jovem as
mesmas condições que asseguraram às gerações anteriores um mínimo de
estabilidade na qual apoiar-se. Isso se traduz em trabalhos cada vez
mais precários e instáveis para o proletariado em geral, porém
especialmente para jovens; existem milhões de jovens profissionais
incapazes de vender sua força de trabalho especializada e obrigades a
trabalhar em qualquer coisa; situação na qual a única maneira que os e
as jovens podem garantir-se um teto é coabitando com outres em condições
similares às suas, pois nem sua renda nem o custo da habitação lhes
permitiria viver minimamente parecido com como o faziam seus pais em sua
idade. Com diferentes nuances e particularidades, as condições que
antes serviam de justificação para a existência da exploração
capitalista, já que esta provia o conforto e o sustento para aqueles que
se integravam nela, desaparecem em todo o globo. Junto com isso, a
deterioração cada vez mais evidente e progressiva da biosfera – produto
da mesma devastação capitalista – não poderia senão acrescentar entre os
e as jovens a perspectiva de que não há um futuro possível para eles.
Essa
precarização progressiva das condições de vida des proletáries mais
jovens se mostra ainda mais brutal em países como Chile. Se somarmos a
condição de precariedade que caracteriza as famílias proletárias das
gerações anteriores nessa região com a precarização crescente com a qual
são confrontados seus jovens, qualquer perspectiva de um futuro nessas
mesmas condições torna-se fumaça. Assim, à farsa burguesa do futuro, sua
ideologia do esforço e da recompensa ao sacrifício, que queria fazer da
juventude o combustível com o qual seguir dinamizando a decadente
máquina capitalista, a juventude proletária responde com uma rejeição
saudável e intransigente.
Para nós, que colocamos atenção na
dinâmica da reprodução capitalista e da luta de classes ligada a essa,
essa rejeição em conjunto às condições existentes já se entrevia na
multiplicidade de práticas difusas que a juventude dessa região vinha
manifestando há vários anos. Porém, focando no tema que nos concerne
aqui, foi nas escolas secundárias onde essa rejeição intransigente
prefigurou, melhor que em outros lugares, a ruptura que se aproximava
contra a normalidade e que varreria com a cotidianidade tal como a
conhecíamos até então. Antes do estouro essa rejeição se manifestava há
muito tempo na violência disruptiva e antipolicial na qual centenas de
jovens se organizavam para sair às ruas, cortar o trânsito e enfrentar a
polícia com demandas difusas ou, melhor, sem nenhuma demanda em
particular além da própria subversão da ordem existente.
Mesmo que
o discurso da burguesia apontasse que eles não eram afetados
diretamente pela alta do transporte, foi a juventude dessas mesmas
escolas secundárias quem começou a se organizar para adotar a única
atitude lúcida frente ao aprofundamento da miséria e a precarização a
qual o Capital local nos submete diariamente. Estes jovens, dotados da
lucidez e coragem que já haviam adquirido lutando, fosse organizando-se
para enfrentar a polícia ou na ação espontânea que se supõe para
resistir todes juntes a entrada dos pacos e das pacas [NT: paco –
polícia chilena] em suas escolas secundárias; reencontrados graças a
essa luta com seu sentido comunitário e a constatação de sua própria
potência, sentindo-se capazes de tudo, decidem organizar-se para fazer
concreto aquilo que o sentido comum majoritário somente podia fazer na
imaginação: a evasão massiva da cobrança da passagem do transporte
público mais complexo e seguro de Santiago e que milhões de pessoas são
obrigadas a pagar diariamente. Somente alguns dias depois, o
reconhecimento daquela mesma potência e sentido comunitário se
espalharia por toda a classe.
Aquela consciência que os
acostumados às velhas tradições de esquerdas sentiam tanta falta, de
repente se manifestou por todas as partes com uma irrupção violenta que
trouxe de volta à cena quem nunca se foi verdadeiramente, pois sua
existência perdurará enquanto existir a sociedade de classes, a classe
herdeira da exploração de todas as épocas: o proletariado e sua
juventude. E embora seja verdade que foi a iniciativa des secundaristas
que incendiou o rastilho que somente alguns dias depois detonaria a
normalidade capitalista, a juventude que tem protagonizado a revolta é
imensamente mais ampla que os meros estudantes, secundaristas e
universitáries incluídes. Pelo contrário, tem se tratado do amplo
espectro de juventudes que mencionávamos no começo: todes aqueles mais
jovens dentre o proletariado, para os quais não há futuro nem certezas
sob essas condições de existência.
Esta
consciência demonstrou estar mais presente que nunca no estouro da
revolta; de repente, os atos da juventude pareciam evidenciar que esta
havia entendido desde sempre que essa ordem de coisas não merece senão
seu desprezo; que a polícia não existe para nos proteger, senão que nos
protegemos entre todes quando atuamos contra essa; que o transporte
público não existe para nos facilitar a vida, senão que faz parte da
engrenagem que nos leva à inércia e a servidão; que não há nada de
honrado em pagar pelas mercadorias que nos oferece o consumo permitido,
senão que recuperamos parte do que nos roubam cotidianamente quando as
saqueamos; que o progresso que nos falam não é para nós, senão que é o
progresso do capital as nossas custas; que a solidariedade, que até
pouco nos era desconhecida na prática, nos permite a apropriação
coletiva de um mundo que nos era alheio e nos mostra agora que qualquer
coisa é possível quando atuamos juntes.
Assim, a megamáquina que
nos foi apresentada desde sempre como a garantia de nossa sobrevivência e
futuro, permanentemente recriada pelos anúncios da televisão e da
internet, pareceu ser aos olhos de todes aquele esquema ao qual
estávamos submetidos relutantemente e com o qual teríamos rompido muito
antes se tão somente tivéssemos recebido o empurrão que necessitávamos.
A
ação espontânea, por vezes tão desprezada, demonstrou que aquilo que,
aparentemente, não compreendíamos conscientemente de forma completa
esteve sempre ali, de maneira latente, como uma intuição, e que somente
se necessitava das condições práticas que propicia uma revolta desse
tamanho para trazê-los à tona. Pois aquela consciência não é meramente
teórica, nem se insere de fora, senão que surge da própria prática da
luta. Nenhum de nós teria previsto a magnitude dessa rejeição se não
houvéssemos presenciado a massividade da luta na rua, dos saques, dos
símbolos do poder vandalizados etc., nem teria constatado o potencial
comunitário que vive em nós se não houvéssemos experimentado seu
surgimento precisamente a partir destas ações, realizadas em sua maioria
pela juventude proletária. O que veio depois, como a necessidade de
organização, a propaganda, as assembleias territoriais etc., surgiu
depois desta primeira constatação.
Estas conclusões não pretendem
ser substitutas de nenhuma maneira ao que a juventude proletária pudesse
dizer por si mesma sobre suas ações, uma vez que estas foram
suficientemente eloquentes para tornar seu conteúdo explícito em seus
atos. E isso porque as revoluções e revoltas sempre são uma clarificação
em atos dos problemas e contradições previamente existentes das
sociedades contra as quais se levantam. Com respeito às conclusões que o
Capital e seus agentes tirarão disso, deixemos que os economistas
chorem seus milhões perdidos, os urbanistas por suas paisagens
inabitáveis destruídas, deixemos que os pensadores contratados busquem
as razões aparentes do que lhes parece o absurdo da revolta, que os
conservadores de todo tipo sofram por suas igrejas e templos que agora
se iluminam; a burguesia e seus lacaios armados pouco a pouco estão
compreendendo a principal razão que têm para nos temer: tomamos
consciência de que somos a força que move essa sociedade e que,
portanto, somos seu perigo mortal.
De nossa parte, acreditamos que
o papel de uma publicação como essa não é somente dar razão aos
rebeldes, senão também contribuir para esclarecer suas razões; elucidar
teoricamente a verdade já contida em sua atividade prática. É em sua
particularidade prática que a violência cobra sentido, seja defendendo
uma manifestação ou evidenciando através de atos a rejeição à dominação
social. E é dessa perspectiva, em sua dimensão prática, que a violência
deve ser avaliada.
Não é preciso fazer apologia à violência para
admitir que grande parte disso, que de repente parecia óbvio, foi graças
as fagulhas da violência juvenil e proletária que pareceram iluminar
aquilo que há muito tempo pareciamos sentir como parte do problema.
Dessa forma, a resignação somente precisou de uma faísca para
transformar esse desprezo passivo em uma ofensiva aberta contra a
violência que nos é imposta e que, de agora em diante, nós revidamos.